Juan Vicente Piqueras – Papoulas

No antigo campo de batalha
onde morreram milhares de meninos
cresce novamente o trigo, salpicado
aqui e ali de ardentes papoulas.

E dois amantes, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que aqui então morreram,
hoje fazem amor no semeado.

Deitam o trigo. Calcam as papoulas.

Trad.: Nelson Santander

Amapolas

Sobre el antiguo campo de batalla
donde murieron miles de muchachos
vuelve a crecer el trigo, salpicado
aquí y allá de ardientes amapolas.

Y dos enamorados, que tendrán
más o menos la edad de los soldados
que aquí entonces murieron,
hoy hacen el amor en el sembrado.

Tumban el trigo. Aplastan amapolas.

Louise Glück – Outubro

1.

É inverno outra vez, faz frio outra vez,
Frank não escorregou no gelo,
ele não se curou, não se plantaram
as sementes da primavera

a noite não terminou,
o gelo derretido não
inundou as calhas estreitas

meu corpo não foi
resgatado, não era seguro

não se formou a cicatriz, invisível
sobre a lesão

terror e frio,
eles não cessaram, o jardim dos fundos
não foi preparado nem semeado –

lembro-me de como a terra sentiu, roxa e densa,
em rígidas fileiras, as sementes que não foram plantadas,
as videiras que não escalaram o paredão sul.

não consigo ouvir a voz dela
nos lamentos do vento, assobiando sobre os terrenos descobertos

já não me importa
o som que ela faz

quando eu fui silenciada, quando primeiro pareceu
inútil descrever aquele som

que soa como algo que não pode ser mudado –

a noite não terminou, a terra não era
segura quando foi semeada

nós não plantamos as sementes,
não éramos necessários para a terra,

as videiras, foram elas colhidas?

.
2.

Verão após o fim do verão,
bálsamo após violência:
Não faz nenhum bem
para mim ser boa agora;
a violência me transformou.

Alvorada. As baixas colinas cintilam
ocres e em chamas, até os campos cintilam.
Eu sei o que vejo; sol que poderia ser
o sol de agosto, restituindo
tudo o que foi levado.

Você ouve essa voz? Esta é a voz da minha mente;
você não pode tocar meu corpo agora.
ele mudou certa vez, endureceu,
não lhe peça para responder novamente.

Um dia como um dia de verão.
Excepcionalmente parado. As alongadas sombras dos carvalhos
quase roxas nos caminhos de cascalhos.
E, ao entardecer, calor. Noite como uma noite de verão.

Não me faz nenhum bem; a violência me transformou.
Meu corpo arrefeceu como os campos desmatados;
agora só tenho a minha mente, atenta e cautelosa,
com a sensação de estar sendo testada.

Uma vez mais, o sol nasce como nasceu no verão;
dádiva, bálsamo após violência.
Bálsamo depois da muda das folhas, depois que os campos
foram colhidos e revolvidos.

Diga-me que este é o futuro,
eu não acredito em você.
Diga-me que estou vivendo,
eu não acredito em você.

.
3.

Havia nevado. Lembro-me da
música que saía de uma janela aberta.

Venha até mim, disse o mundo.
Isso não quer dizer que
ele falou em frases exatas
mas que eu percebi a beleza desta maneira.

Nascer do sol. Uma película de umidade
em cada criatura viva. Piscinas de luz fria
formaram-se nas calhas.

Eu estava
na porta de entrada,
por mais ridículo que isso pareça agora.

O que os outros encontraram na arte,
eu encontrei na natureza. O que os outros encontraram
no amor humano, eu encontrei na natureza.
É muito simples. Mas não havia uma voz lá.

O inverno tinha acabado. Na lama descongelada,
partes de verde surgiam por toda parte.

Venha até mim, disse o mundo. Eu estava em pé
em meu casaco de lã numa espécie de portal brilhante –
Eu já posso finalmente dizer
há muito tempo; isso me dá um prazer considerável. Beleza,
a curadora, a professora –

a morte não pode me prejudicar
mais do que você me prejudicou,
minha amada vida.

.
4.

A luz mudou
O dó modulou para um tom mais escuro agora
E as canções da manhã soam ensaiadas

Esta é a luz do outono, não a luz da primavera.
A luz do outono: você não será poupada.

As canções mudaram; o indizível
penetrou nelas.

Esta é a luz do outono, não a luz que diz
que eu renasci.

Não o despontar da primavera: eu me esforcei, eu sofri, eu me libertei.
Este é o presente, uma alegoria da dissipação.

Tanta coisa mudou. E mesmo assim você teve sorte:
o ideal arde em você como uma febre.
Ou não como uma febre, como um segundo coração.

As canções mudaram, mas ainda são muito bonitas, de fato.
Elas se concentram em um espaço menor, o espaço da mente.
E são agora sombrias, desoladoras e angustiantes.

E, no entanto, as notas se repetem. Elas emergem estranhamente
antecipando o silêncio.
Os ouvidos se habituam a elas.
Os olhos se habituam às desaparições.

Você não será poupada, nem o que você ama será poupado.

Um vento chegou e partiu, desmantelando a mente;
deixou em seu rastro uma estranha lucidez.

Como você é privilegiada por se apegar
apaixonadamente àquilo que ama;
A desesperança não a destruiu.

Maestro, doloroso:

Esta é a luz do outono; ela se virou contra nós.
Certamente é um privilégio aproximar-se do fim
ainda acreditando em algo.

.
5.

É verdade que não há beleza suficiente no mundo.
É igualmente verdade que não sou competente para restaura-la.
Tampouco há sinceridade, e aqui acho que posso ser útil.

Estou
no trabalho, embora esteja em silêncio.

A insípida

miséria do mundo
nos limita de ambos os lados, um beco

ladeado por árvores; somos

companheiros aqui, sem falar,
cada qual com seus próprios pensamentos;

por trás das árvores, portões
de ferro de casas particulares,
as salas fechadas

de certa forma desertas, abandonadas

como se fosse um dever
do artista criar
esperança, mas por quê? por quê?

a própria palavra
falso, um dispositivo para refutar
a percepção – No cruzamento,

luzes ornamentais da estação.
Eu fui jovem aqui. Andando
de metrô com meu livrinho
como se me defendesse

desse mesmo mundo:

você não está sozinha,
dizia o poema,
no túnel escuro.

.
6.

O clarão do dia se torna
o clarão da noite;
o fogo se torna o espelho.

Minha amiga, a terra é amarga; acho
que o sol falhou com ela.
Amarga ou fatigada, é difícil dizer.

Entre ela e o sol,
algo se quebrou.
Ela quer, agora, ser deixada em paz;
Acho que devemos desistir
de recorrer a ela por afirmação.

Acima dos campos,
acima dos telhados das casas da vila,
o brilho que tornou possível toda forma de vida
se transforma em frias estrelas.

Fique quieto e observe:
elas nada dão, mas nada pedem.

Do fundo da amarga
desgraça, frieza e aridez da terra,

minha amiga, a lua emerge:
ela está linda esta noite, mas quando ela não é linda?

Trad.: Nelson Santander
.
.

N. do T.: Outubro: uma possível interpretação.

Na primeira seção do poema temos a chegada do inverno. Uma série de eventos é narrada por meio de anáforas em formas negativas. Não há pontuação, indicando tratar-se de fluxo do pensamento da narradora. Há evidências de que a narradora sofreu um trauma (uma queda? um acidente? um divórcio? um estupro?). A primeira seção – a chegada do inverno – parece se passar no imediato pós-trauma, pois a narradora parece ainda aturdida: “as videiras, foram elas colhidas?”

Na segunda seção, a narradora começa a se recuperar. Embora mencione o verão o tempo todo, certamente não estamos nessa estação do ano (a própria narradora o afirma ao dizer que está no “verão após o fim do verão”), mas os versos parecem indicar um certo conforto e estado de espírito próprio dos dias luminosos do verão, como lenitivo para o trauma experimentado recentemente (“Verão após o fim do verão, / bálsamo após violência”; “você não pode tocar meu corpo agora./ ele mudou certa vez, endureceu,/ não lhe peça para responder novamente”; “a violência me transformou. / Meu corpo arrefeceu como os campos desmatados;”; “Uma vez mais, o sol nasce como nasceu no verão; / dádiva, bálsamo após violência.” Há esperança aqui, mas ela é extremamente débil: “Diga-me que este é o futuro, / eu não acredito em você. / Diga-me que estou vivendo, / eu não acredito em você.”

Terceira seção: estamos no momento imediatamente posterior ao fim do inverno (primavera, portanto), mas ainda faz frio (“Havia nevado”). Nessa seção, a narradora já começa a sentir o chamado para a vida (“‘Venha até mim’, disse o mundo”). Seu lenitivo parece ser a natureza, vazada de beleza: “O que os outros encontraram na arte, / eu encontrei na natureza. / O que os outros encontraram / no amor humano, eu encontrei na natureza.”; A “beleza”, que é a “curadora” a “professora” (ou seja, a que ensina alguma lição). Nesta seção, a narradora parece estar aliviada, tanto que já se refere ao trauma como algo que aconteceu “há muito tempo”. Não que ela tenha esquecido: “a morte não pode me prejudicar / mais do que você me prejudicou, minha amada vida.”

Quarta seção: a narradora se esforça em convencer-nos de que a estação aqui é o outono, e não a primavera (o outono, com toda sua carga metafórica de desolação, tristeza, desesperança). Não parece ser o caso, pois a primavera sucede o inverno – o inverno do trauma. E ela ainda parece estar no imediato pós-trauma, pois toda a narrativa é vazada de tristeza, perda e angústia. Até a natureza agora parece carregada de notas melancólicas: “As canções mudaram; o indizível / penetrou nelas.” Por isso a insistência em chamar de outono a primavera: “Esta é a luz do outono, não a luz da primavera”; “Esta é a luz do outono, não a luz que diz / que eu renasci.”; “Não o despontar da primavera: ‘eu me esforcei, eu sofri, eu me libertei.’ / Este é o presente, uma alegoria da dissipação.”. E como estamos na primavera, uma luz de esperança parece começar a brilhar. Ela ainda é tênue, mas parece estar lá: “Tanta coisa mudou. E mesmo assim você teve sorte: / o ideal arde em você como uma febre. / Ou não como uma febre, como um segundo coração. // As canções mudaram, mas ainda são muito bonitas, de fato.”; “A desesperança não a destruiu.”

A quinta seção parece se constituir em um espaço para a consolidação e superação do trauma. Ela é marcada por versos que, embora não esqueçam o quanto o mundo pode ser cruel (“A insípida // miséria do mundo / nos limita de ambos os lados, (…)”), indicam um estado de contemplação, como se a narradora tentasse, para além da dor, entender o que aconteceu. A narradora conclui que “não há beleza suficiente no mundo” e que ela não é dotada de competência para restaura-la. Ela, porém, justifica a natureza, que não tem o “dever (…) de criar esperança”. Nos versos finais desta seção, em que narradora se lembra de quando era jovem e solitária na cidade, a arte surge como uma espécie de escudo psicológico invisível para as dores do mundo: “Eu fui jovem aqui. Andando / de metrô com meu livrinho / como se me defendesse // desse mesmo mundo: // você não está sozinha, / dizia o poema, / no túnel escuro.” Aparentemente, a narradora conclui que esse escudo não funcionou, não evitou que ela fosse ferida pelo mundo. Por isso, a arte é substituída, no presente, pela beleza da natureza, como se viu na terceira e como se verá na última seção do poema.

A sexta e última seção do poema parece demarcar o renascimento emocional da narradora, a superação do trauma. Verão? Parece que sim. Os versos assim o insinuam: “O clarão do dia (…)”; “Acima dos campos, / acima dos telhados das casas da vila, / o brilho que tornou possível toda forma de vida (…)”. O trauma deixou marcas profundas na narradora, mas ela sobreviveu e começa a ver as coisas de outra forma, menos romântica mas também ligeiramente menos pessimista. Ela já não tem a mesma ingenuidade de antes e está perfeitamente consciente de que o mundo (“a terra”) é um lugar “amargo” ou “fatigado’, um lugar de “amarga / desgraça, frieza e aridez”. Tanto é assim, que ela desaconselha que se recorra a ele “por afirmação”. O sol? Bom, o brilho do sol de verão se transformou no brilho de “frias estrelas”. Apesar de tudo isso, ainda há beleza no mundo – representada, no poema, pelo nascer da lua. E a beleza, como já afirmou a narradora, é “curadora”. Portanto, a menção à beleza da lua nascendo naquela noite – o que coincide com o fim do poema – parece marcar o início de uma nova fase na vida da narradora, que parece ter chegado à conclusão de que, apesar de tudo, a vida vale a pena ser vivida, pois ela está repleta de beleza; a beleza “curadora”, “professora” – seja ela a arte ou a natureza – sempre está presente. A beleza é perene: “ela (a lua) está linda esta noite, mas quando ela não é linda?”

October
.
1.

Is it winter again, is it cold again,
didn’t Frank just slip on the ice,
didn’t he heal, weren’t the spring seeds planted

didn’t the night end,
didn’t the melting ice
flood the narrow gutters

wasn’t my body
rescued, wasn’t it safe

didn’t the scar form, invisible
above the injury

terror and cold,
didn’t they just end, wasn’t the back garden
harrowed and planted-

I remember how the earth felt, red and dense,
in stiff rows, weren’t the seeds planted,
didn’t vines climb the south wall

I can’t hear your voice
for the wind’s cries, whistling over the bare ground

I no longer care
what sound it makes

when was I silenced, when did it first seem
pointless to describe that sound

what it sounds like can’t change what it is-

didn’t the night end, wasn’t the earth
safe when it was planted

didn’t we plant the seeds,
weren’t we necessary to the earth,

the vines, were they harvested?

.
2.

Summer after summer has ended,
balm after violence:
it does me no good
to be good to me now;
violence has changed me.

Daybreak. The low hills shine
ochre and fire, even the fields shine.
I know what I see; sun that could be
the August sun, returning
everything that was taken away-

You hear this voice? This is my mind’s voice;
you can’t touch my body now.
It has changed once, it has hardened,
don’t ask it to respond again.

A day like a day in summer.
Exceptionally still. The long shadows of the maples
nearly mauve on the gravel paths.
And in the evening, warmth. Night like a night in summer.

It does me no good; violence has changed me.
My body has grown cold like the stripped fields;
now there is only my mind, cautious and wary,
with the sense it is being tested.

Once more, the sun rises as it rose in summer;
bounty, balm after violence.
Balm after the leaves have changed, after the fields
have been harvested and turned.

Tell me this is the future,
I won’t believe you.
Tell me I’m living,
I won’t believe you.

.
3.

Snow had fallen. I remember
music from an open window.

Come to me, said the world.
This is not to say
it spoke in exact sentences
but that I perceived beauty in this manner.

Sunrise. A film of moisture
on each living thing. Pools of cold light
formed in the gutters.

I stood
at the doorway,
ridiculous as it now seems.

What others found in art,
I found in nature. What others found
in human love, I found in nature.
Very simple. But there was no voice there.

Winter was over. In the thawed dirt,
bits of green were showing.

Come to me, said the world. I was standing
in my wool coat at a kind of bright portal –
I can finally say
long ago; it gives me considerable pleasure. Beauty
the healer, the teacher-

death cannot harm me
more than you have harmed me,
my beloved life.

.
4.

The light has changed;
middle C is tuned darker now.
And the songs of morning sound over-rehearsed.

This is the light of autumn, not the light of spring.
The light of autumn: you will not be spared.

The songs have changed; the unspeakable
has entered them.

This is the light of autumn, not the light that says
I am reborn.

Not the spring dawn: I strained, I suffered, I was delivered.
This is the present, an allegory of waste.

So much has changed. And still, you are fortunate:
the ideal burns in you like a fever.
Or not like a fever, like a second heart.

The songs have changed, but really they are still quite beautiful.
They have been concentrated in a smaller space, the space of the mind.
They are dark, now, with desolation and anguish.

And yet the notes recur. They hover oddly
in anticipation of silence.
The ear gets used to them.
The eye gets used to disappearances.

You will not be spared, nor will what you hope be spared.
A wind has come and gone, taking apart the mind;
it has left in its wake a strange lucidity.

How privileged you are, to be still passionately
clinging to what you love;
the forfeit of hope has not destroyed you.

Maestoso, doloroso:

This is the light of autumn; it has turned on us.
Surely it is a privilege to approach the end
still believing in something.

.
5.

It is true there is not enough beauty in the world.
It is also true that I am not competent to restore it.
Neither is there candor, and here I may be of some use.

I am
at work, though I am silent.

The bland

misery of the world
bounds us on either side, an alley

lined with trees; we are

companions here, not speaking,
each with his own thoughts;

behind the trees, iron
gates of the private houses,
the shuttered rooms

somehow deserted, abandoned,

as though it were the artist’s
duty to create
hope, but out of what? what?

the word itself
false, a device to refute
perception-At the intersection,

ornamental lights of the season.
I was young here. Riding
the subway with my small book
as though to defend myself against

this same world:

you are not alone,
the poem said,
in the dark tunnel.

.
6.

The brightness of the day becomes
the brightness of the night;
the fire becomes the mirror.

My friend the earth is bitter; I think
sunlight has failed her.
Bitter or weary, it is hard to say.

Between herself and the sun,
something has ended.
She wants, now, to be left alone;
I think we must give up
turning to her for affirmation.

Above the fields,
above the roofs of the village houses,
the brilliance that made all life possible
becomes the cold stars.

Lie still and watch:
they give nothing but ask nothing.

From within the earth’s
bitter disgrace, coldness and barrenness

my friend the moon rises:
she is beautiful tonight, but when is she not beautiful?

Raquel Lanseros – A propósito de Eros

De todas as terrenas servidões
que aprisionam meu afã neste cárcere
confesso-me devedora da carne
e de todos os seus íntimos vaivéns
que me fazem mais feliz
       e menos livre.

Às vezes, porém,
a escravidão se mostra soberana
e me sinto senhora do destino.
  Porque sei amar, porque provei da fruta
  e nunca maldisse o seu sabor agridoce,
  porque posso oferecer meu coração intacto
  se o caminho se digna em requere-lo,
  porque suporto em pé, com humilde firmeza,
  o rigor deste fogo que enlouquece.

Neste fragor mudo em que todos somos
rufiões, vagabundos, despossuídos e presos
não existem vencedores nem vencidos
e a manhã não arrenda a ganância do ontem.

Que não entre na batalha quem sucumba
ante o rancor pequeno das humilhações.
Sabei, são necessárias enormes doses
de grandeza de espírito e coragem
nas silenciosas lides da paixão humana.

A recompensa, em troca, é substancial.
 Ser súdito tão só da natureza,
  não temer a morte nem o esquecimento,
   não aceitar da vida nenhuma esmola,
    não conformar-se com menos que tudo.

Trad.: Nelson Santander

A propósito de Eros

De todas las terrenas servidumbres
que aprisionan mi afán en esta cárcel
me confieso deudora de la carne
y de todos sus íntimos vaivenes
que me hacen más feliz
       y menos libre.

A veces, sin embargo,
la esclavitud se muestra soberana
y me siento señora del destino.
  Porque sé amar, porque probé la fruta
  y no maldije nunca su sabor agridulce,
  porque puedo ofrecer mi corazón intacto
  si el camino se digna requerirlo,
  porque resisto en pie, con humilde firmeza,
  el rigor de este fuego que enloquece.

En este fragor mudo en el que todos somos
rufianes, vagabundos, desposeídos y presos
no existen vencedores ni vencidos
y mañana no arrienda la ganancia de ayer.

Que no entre en la batalla quien sucumba
ante el rencor pequeño de las humillaciones.
Sabed, son necesarias descomunales dosis
de grandeza de espíritu y coraje
en las lides calladas de la pasión humana.

La recompensa, en cambio, es sustanciosa.
 Ser súbdito tan sólo de la naturaleza,
  no temer a la muerte ni al olvido,
   no aceptarle a la vida una limosna,
    no conformarse con menos que todo.

Jorge Valdés Díaz-Vélez – O material do relâmpago

Calculaste em detalhes cada passo,
sutil, há muitos séculos. Finalmente
teu marido viajou e as crianças
foram dormir com os avós.
Estás agora sozinha e eufórica
voltaste-te a se maquiar e vestiste-te
de preto rigoroso e perfumaste
tua mínima porção de lingerie.
Estás tremendo, dizes a ti mesma, mas nada
te fará voltar atrás. Olhas tua imagem
levantada nos saltos, desafiadora.
Tu e a noite são jovens e belas
como uma tempestade que se aproxima.

Trad.: Nelson Santander

Materia del relámpago

Calculaste al detalle cada paso,
sutil, desde hace siglos. Finalmente
tu esposo está de viaje y tus pequeñas
se fueron a dormir con sus abuelos.
Así que ahora estás sola y con euforia
te has vuelto a maquillar y te has vestido
de negro riguroso y perfumado
tu mínima porción de lencería.
Estás temblando, te dices, pero nada
te hará volver atrás. Miras tu imagen
alzada en los tacones, desafiante.
Tú y la noche son jóvenes y hermosas
como una tempestad que se aproxima.

Carlos Drummond de Andrade – Dentaduras duplas

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos…
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?…)

Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada…
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

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T. S. Eliot – A Viagem dos Magos

 “Foi um frio que nos colheu
Na pior quadra do ano
Para uma viagem, e longa era a viagem:
Os caminhos enlameados e o tempo adverso
Em pleno coração do inverno.”
E os camelos escoriados, o casco em chagas, indóceis,
Jaziam em meio à neve derretida.
Foram momentos em que recordamos
Os palácios estivais sobre os penhascos, os terraços,
As sedosas meninas que nos traziam afrodisíacos.
E depois os cameleiros que imprecavam e maldiziam
E desertavam, e exigiam fêmeas e aguardente.
E os fogos da noite em bruxuleio, a falta de apriscos,
As cidades hostis, as vilas inóspitas,
As aldeias sujas e tudo a preços absurdos.
Foi uma rude quadra para nós.
Ao fim preferimos viajar à noite,
Dormindo entre uma e outra vigília,
Com vozes que cantavam em nosso ouvido, dizendo
Que tudo aquilo era loucura.

 E eis que alcançamos pela aurora um vale ameno,
Úmido, sob a linha da neve, impregnado de aromas silvestres,
Com o regato e um moinho a fustigar as trevas,
E três árvores recortadas contra o céu baixo,
E um velho cavalo branco a galope pelo prado.
E chegamos depois a uma taverna com parras sobre as vigas;
Seis mãos se viam pela porta entreaberta
A disputar peças de prata com seus dados,
E pés que golpeavam os odres já vazios.
Mas nenhuma informação nos deram, e então seguimos
Para chegarmos ao crepúsculo, sequer um instante antes,
E encontrarmos o lugar; foi (podeis dizer) satisfatório.

 Tudo isso há muito tempo se passou, recordo,
E outra vez o farei, mas considerai
Isto considerai
Isto: percorremos toda aquela estrada
Rumo ao Nascimento ou à Morte? Um nascimento, é certo,
Tínhamos prova, não dúvidas. Nascimento e morte contemplei,
Mas os pensara diferentes; tal Nascimento era, para nós,
Amarga e áspera agonia, como a Morte, nossa morte.
Regressamos às nossas plagas, estes Reinos,
Porém aqui não mais à vontade, na antiga ordem divina,
Onde um povo estranho se agarra aos próprios deuses.
Uma outra morte me será bem-vinda.

Trad.: Ivan Junqueira

Journey of the Magi

 “A cold coming we had of it,
Just the worst time of the year
For a journey, and such a long journey:
The ways deep and the weather sharp,
The very dead of winter.”
And the camels galled, sore-footed, refractory,
Lying down in the melting snow.
There were times we regretted
The summer palaces on slopes, the terraces,
And the silken girls bringing sherbet.
Then the camel men cursing and grumbling
And running away, and wanting their liquor and women,
And the night-fires going out, and the lack of shelters,
And the cities hostile and the towns unfriendly
And the villages dirty and charging high prices:
A hard time we had of it.
At the end we preferred to travel all night,
Sleeping in snatches,
With the voices singing in our ears, saying
That this was all folly.

 Then at dawn we came down to a temperate valley,
Wet, below the snow line, smelling of vegetation;
With a running stream and a water-mill beating the darkness,
And three trees on the low sky,
And an old white horse galloped away in the meadow.
Then we came to a tavern with vine-leaves over the lintel,
Six hands at an open door dicing for pieces of silver,
And feet kicking the empty wine-skins.
But there was no information, and so we continued
And arriving at evening, not a moment too soon
Finding the place; it was (you may say) satisfactory.

 All this was a long time ago, I remember,
And I would do it again, but set down
This set down
This: were we led all that way for
Birth or Death? There was a birth, certainly,
We had evidence and no doubt. I had seen birth and death,
But had thought they were different; this Birth was
Hard and bitter agony for us, like Death, our death.
We returned to our places, these Kingdoms,
But no longer at ease here, in the old dispensation,
With an alien people clutching their gods.
I should be glad of another death.

Blas de Otero – Ímpeto

Mas nem tudo há de ser ruína e vazio
E nem tudo escombro ou descongelação.
Por cima deste ombro levo o céu,
e por cima deste outro, um vasto rio

de entusiasmo. E meu corpo no meio,
árvore luzente gritando do chão.
E, entre raízes mortais, sofreguidão,
meu coração desperto, raio sombrio.

Somente o anseio me vence. Mas avanço
sem duvidar, sobre abismos infinitos,
com a mão estendida: se não alcanço

com minha mão, hei de alcançar com gritos!
e sigo, sempre, de pé, e assim, me lanço
às águas dos apetites que habito.

Trad.: Nelson Santander

Ímpetu

Mas no todo ha de ser ruina y vacío.
No todo desescombro ni deshielo.
Encima de este hombro llevo el cielo,
y encima de este otro, un ancho río

de entusiasmo. Y, en medio, el cuerpo mío,
árbol de luz gritando desde el suelo.
Y, entre raíz mortal, fronda de anhelo,
mi corazón en pie, rayo sombrío.

Sólo el ansia me vence. Pero avanzo
sin dudar, sobre abismos infinitos,
con la mano tendida: si no alcanzo

con la mano, ¡ya alcanzaré con gritos!
y sigo, siempre, en pie, y así, me lanzo
al mar, desde una fronda de apetitos.

Mary Oliver – O quarto signo do zodíaco

1.
Porque eu deveria ter ficado surpresa?
Caçadores percorrem a floresta
sem um som.
O caçador, armado com seu rifle,
a raposa com seus pés de seda,
a serpente em seu império de músculos —
todos se movem em silêncio,
famintos, cuidadosos, atentos.
Exatamente como o câncer
entrou na floresta do meu corpo,
sem um som.

2.
A questão é,
como será
depois do último dia?
Irei flutuar
pelo céu
ou me desgastarei
na terra ou em um rio —
sem lembrar de nada?
Quão desesperada eu ficaria
se não conseguisse lembrar-me
do nascer do sol, se não conseguisse
lembrar-me das árvores, rios; se não conseguisse
nem mesmo lembrar-me, amado,
do seu amado nome?

3.
Eu sei, você nunca pretendeu ser deste mundo.
Mas está nele do mesmo jeito.

Então por que não começar imediatamente?

Quero dizer, pertencendo a ele.
Há tanto o que admirar, sobre o que chorar.

E sobre o que escrever músicas ou poemas.

Abençoe os pés que a levam para lá e para cá.
Abençoe os olhos e os ouvidos que ouvem.
Abençoe a língua, a maravilha do paladar.
Abençoe o toque.

Você poderia viver cem anos, já aconteceu.
Ou não.
Estou falando da plataforma afortunada
de muitos anos,
nenhum dos quais, penso, eu já desperdicei.
Você precisa de um empurrão?
Você precisa de um pouco de escuridão para prosseguir?
Deixe-me, então, ser urgente como um punhal,
e lembra-la de Keats,
que de tão único de propósito e pensamento, por um tempo
teve uma vida inteira.

4.
No final da tarde de ontem, sob o calor,
todas as frágeis flores azuis em floração
nos arbustos no quintal ao lado haviam
tombado dos arbustos e jaziam
enrugadas e desvanecentes no gramado. Mas
esta manhã os arbustos estavam cheios de
flores azuis novamente. Nenhuma delas
remanescia na grama. Como, eu
me questionei, elas rolaram de volta para os
ramos, que ferozmente queriam,
como todos nós, apenas um pouco mais de
vida?

Trad.: Nelson Santander

The fourth sign of the zodiac

1.
Why should I have been surprised?
Hunters walk the forest
without a sound.
The hunter, strapped to his rifle,
the fox on his feet of silk,
the serpent on his empire of muscles —
all move in a stillness,
hungry, careful, intent.
Just as the cancer
entered the forest of my body,
without a sound.

2.
The question is,
what will it be like
after the last day?
Will I float
into the sky
or will I fray
within the earth or a river —
remembering nothing?
How desperate I would be
if I couldn’t remember
the sun rising, if I couldn’t
remember trees, rivers; if I couldn’t
even remember, beloved,
your beloved name.

3.
I know, you never intended to be in this world.
But you’re in it all the same.

So why not get started immediately.

I mean, belonging to it.
There is so much to admire, to weep over.

And to write music or poems about.

Bless the feet that take you to and fro.
Bless the eyes and the listening ears.
Bless the tongue, the marvel of taste.
Bless touching.

You could live a hundred years, it’s happened.
Or not.
I am speaking from the fortunate platform
of many years,
none of which, I think, I ever wasted.
Do you need a prod?
Do you need a little darkness to get you going?
Let me be urgent as a knife, then,
and remind you of Keats,
so single of purpose and thinking, for a while,
he had a lifetime.

4.
Late yesterday afternoon, in the heat,
all the fragile blue flowers in bloom
in the shrubs in the yard next door had
tumbled from the shrubs and lay
wrinkled and fading in the grass. But
this morning the shrubs were full of
the blue flowers again. There wasn’t
a single one on the grass. How, I
wondered, did they roll back up to
the branches, that fiercely wanting,
as we all do, just a little more of
life?

Robert Hayden – Aqueles domingos de inverno

Também aos domingos
meu pai acordava cedo
e vestia suas roupas no frio azul escuro,
depois, com as mãos rachadas doloridas
do trabalho no tempo durante a semana, ele fazia
os fogos empilhados arderem. Ninguém nunca o agradeceu.

Eu acordava e ouvia o
frio se partindo em fragmentos.
Quando as salas ficavam aquecidas, ele me chamava,
e lentamente eu me levantava e me vestia,
temendo a raiva crônica daquela casa,

Falava indiferentemente
com ele,
que havia expulsado o frio
e também engraxado meus sapatos bons.
O que sabia eu, o que sabia eu
dos ofícios austeros e solitários do amor?

Trad.: Nelson Santander

Those Winter Sundays

Sundays too
my father got up early
and put his clothes on in the blue black cold,
then with cracked hands that ached
from labor in the weekday weather made
banked fires blaze. No one ever thanked him.

I’d wake and hear the
cold splintering, breaking.
When the rooms were warm, he’d call,
and slowly I would rise and dress,
fearing the chronic angers of that house,

Speaking indifferently
to him,
who had driven out the cold
and polished my good shoes as well.
What did I know, what did I know
of love’s austere and lonely offices?

Marisa de la Peña – O tempo que nos resta

“Somos o tempo que nos resta”
J. M. Caballero Bonald.

É isso o que somos: o tempo que nos resta,
o último batimento interrompido,
a palavra não dita,
o deserto cruzado,
e o caminho sem nome
que deixamos para trás.

Somos o abandono, a intempérie,
as luzes apagadas,
e as portas, fechadas para sempre,
ao fim de um adeus forjado nos costumes.

Mas somos o tempo que nos resta,
a voz que não se apaga,
a enxada que ainda golpeia, sem se render,
o poema não escrito,
a ópera inacabada de Puccini,
a derrota assumida, mastigada.
E o que nos resta para viver.

Trad.: Nelson Santander

El tiempo que nos queda

“Somos el tiempo que nos queda”
J. M. Caballero Bonald.

Eso somos: el tiempo que nos queda,
el último latido detenido,
la palabra no dicha,
el desierto cruzado,
y la senda sin nombre
que dejamos atrás.

Somos el abandono, la intemperie,
las luces apagadas,
y las puertas, cerradas para siempre,
tras un adiós forjado en la costumbre.

Pero somos el tiempo que nos queda,
la voz que no se apaga,
la azada que aún golpea, sin rendirse,
el poema no escrito,
la ópera inacabada de Puccini,
la derrota asumida, masticada,
y aquello que nos queda por vivir.