Joshua Poteat – Ferrotipia

Trad.: Nelson Santander

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TINTYPE


Whole forests went to sea

disguised as ships.



Whole seas went to forest



disguised as time.


Luis Alberto de Cuenca – O véu protetor

Amanheceu e nós estávamos dentro
da vil realidade, o que não pode
ser bom. Melhor seria que passassem
logo as horas inúteis em que o dia
proscreve a aventura com as normas
do tédio laboral, e que voltassem
a noite e as suas estrelas a envolver-nos
no seu véu fantástico e a dar-nos
a inútil sensação de estarmos vivos.

Trad.: Miguel Filipe Mochila

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 27/05/2019

Jim Harrison – Transformação

Nenhum lugar é o mesmo de ontem.
Nenhum de nós é o mesmo de ontem.
Por fim, morremos pela exaustão da transformação.
Este júbilo celular em declínio é compartilhado
pelo vento, insetos, aves, ursos e rios,
e talvez pelos buracos negros no espaço galáctico
onde nossas almas serão todas reunidas em um invisível
dedal de antimatéria. Mas não vamos nos precipitar.
Sim, as árvores se desgastam à medida que crescem as papadas
sob meu queixo, as mãos enrugadas que tentaram estrangular
um agressor de esposas na cidade de Nova York, em 1957.
Giramos com a terra, recuperando o fôlego
como alguém diferente, nossos cérebros macios e mal treinados,
exceto para observar-nos desaparecer na distância.
Ainda assim, amamos fazer música desse enigma.

Trad.: Nelson Santander

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Becoming

Nowhere is it the same place as yesterday.
None of us is the same person as yesterday.
We finally die from the exhaustion of becoming.
This downward cellular jubilance is shared
by the wind, bugs, birds, bears and rivers,
and perhaps the black holes in galactic space
where our souls will all be gathered in an invisible
thimble of antimatter. But we’re getting ahead of ourselves.
Yes, trees wear out as the wattles under my chin
grow, the wrinkled hands that tried to strangle
a wife beater in New York City in 1957.
We whirl with the earth, catching our breath
as someone else, our soft brains ill-trained
except to watch ourselves disappear into the distance.
Still, we love to make music of this puzzle.

Gonçalo M. Tavares – uma síntese disto tudo

é porque existe o desejo, o olfato, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
– os que nos vão sobrevive no tempo –
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhamos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no ato de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

Aqui: http://encontradordebelezas.blogspot.com/2011/03/uma-sintese-disto-tudo-salvacao-e.html

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/05/2019. Toda vez que leio este poema, lembro-me da hoje célebre frase de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”

Amadeu Baptista – Sentido

Deixou de fazer sentido voltar
Para casa para comer sozinho,
Para dormir sozinho, para viver
Sozinho. Nenhum cão me espera,

Nenhuma jarra onde tenhas posto
Um ramo de rosas amarelas,
Um lenço perfumado, uma almofada
Em que tenham ficado as tuas marcas

De sono agitado. Deixou de fazer
Sentido ter em frente este horizonte
De pedras que o mar já não contém,

Este tecido de espuma a desfazer-se.
O que aqui ardia já não arde
E a noite é sempre longa e mutilada.

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Ian Hamilton – Última Valsa

De onde estamos quase conseguimos identificar
Os rostos destas pessoas que não conhecemos:
Um semi-círculo sombreado
Ao redor do enorme aparelho de TV doado
Que domina nossa ala.

A ‘Última Valsa’ espalha-se sobre eles
Iluminando
Amistosos, exaustos sorrisos. E nós,
Como se nos importássemos, também sorrimos.

Para cada alma perdida, nesta hora tardia,
Um sedado espasmo de felicidade.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/05/2019

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Last Waltz

From where we sit, we can just about identify
The faces of these people we don’t know:
A shadowed semi-circle
Ranged around the huge, donated television set
That dominates the ward.

The ‘Last Waltz’ floods over them
Illuminating
Fond, exhausted smiles. And we,
As if we cared, are smiling too.

To each lost soul, at this late hour
A medicated pang of happiness.

Laura Gilpin – Canção Noturna

E quando ela
acordou de repente
no quarto vazio
gritando mãe, mãe,

a lua, observando
à distância, ergueu-se
sobre a sua cama
e lá permaneceu,
até que ela
adormecesse.

Trad.: Nelson Santander

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Night Song

And when she
woke suddenly
in the empty room
crying mother, mother,

the moon, watching
at a distance, rose
over her bed
and stayed there
until she was
asleep.

Raymond Carver – Fragmento final

E você teve o que queria
desta vida, apesar de tudo?
Tive.
E o que você queria?
Dizer que fui amado, me sentir
amado sobre a terra.*

Trad.: Cide Piquet

* N. do T.: “Late Fragment” foi publicado no último livro de poesia de Carver, intitulado “A New Path to the Waterfall”, que foi lançado postumamente em 1989. O poema é breve, mas impactante, e muitas vezes é considerado como uma reflexão sobre a vida e a mortalidade. O contexto em que foi escrito envolve a batalha do autor contra o câncer de pulmão, que eventualmente tirou sua vida em 1988. “Late Fragment” foi um dos últimos poemas que Carver escreveu antes de sua morte, e essa proximidade com sua própria mortalidade acrescenta uma profundidade emocional e uma sensação de urgência ao poema.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no site originalmente em 13/05/2019

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Raymond Carver – Late Fragment

And did you get what
you wanted from this life, even so?
I did.
And what did you want?
To call myself beloved, to feel myself
beloved on the earth.

Timothy Joshua – A distância

Você está tão distante, 
que meu sol se tornou sua lua.
E como estrelas continuam a roubar nossa luz,
não posso deixar de me perguntar se os céus que
compartilhamos ainda são os mesmos.

Trad.: Nelson Santander

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Long distance

You are so far away,
that my sun has become your moon.
And as stars continue to steal our light,
I cannot help but wonder if the skies that we
share are still the same.

Joan Margarit – Monumentos

O vazio que sentes, cada vez com mais força,
é o dos traidores.
Também os monumentos, por dentro, são vazios,
com as entranhas cheias de ferrugem e de morte:
escuros e corroídos pela história,
é tão sinistro seu interior
como arrogante o gesto que no ar
desenha a personagem.
À medida que os amigos nos traem
– e a morte é também uma traição –
nos vamos convertendo em monumentos.
Por fora, ainda resta um resquício de eloquência,
sobretudo ao falar com alguém jovem,
mas a voz ressoa no vazio,
perdida entre os vergalhões de uma oculta estrutura
que se desgasta em finas camadas de ferrugem.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/05/2019

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Joan Margarit – Monumentos

El vacío que sientes cada vez con más fuerza
es el de los traidores.
También los monumentos, por dentro, están vacíos,
con las entrañas llenas de óxido y de muerte:
oscuros y podridos por la historia,
es tan siniestro su interior
como arrogante el gesto que en el aire
dibuja el personaje.
Según van traicionando los amigos
—y la muerte es también una traición—
nos vamos convirtiendo en monumentos.
Por fuera queda un resto de elocuencia,
sobre todo al hablar con alguien joven,
pero la voz resuena en el vacío,
perdida entre los hierros de un oculto entramado
que se deshoja en leves capas de óxido.