Ana Martins Marques – Batata Quente

Se eu te entregasse agora o meu amor
aceso como ele está,
como ele está, pesado,
você o trocaria rapidamente de mão,
você o guardaria um pouco na esquerda,
um pouco na direita,
por quanto tempo antes de o passar adiante?

Republicação: poema publicado no blog originalmente em 23/10/2017

Vinicius de Moraes – Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Eduardo Affonso – Labereda temporã

É possível voltar a se apaixonar com meio século de vida? Acreditar em amor eterno depois de amores eternos terem durado tão pouco? Em amor sem traição depois de ter traído tanto?

E por que querer de novo a ansiedade diante do telefone que não toca, da carta que não chega, da campainha que não soa? Agora, bem sei, seria diferente — não há mais cartas, quem chama é o porteiro, pelo interfone. Mas abriríamos quantas vezes a caixa de entrada dos e-mails, verificaríamos de quantos em quantos segundos se a mensagem foi visualizada?

Drummond derrapou na curva dos 50; Borges, na dos 75; Niemeyer, perto dos 100. Eram gênios, e aos gênios são concedidos dons inacessíveis aos mortais. Como o de transformar sílaba e concreto em poesia — logo, também, resignação em esperança.

Para a maioria de nós, entretanto, a paixão não sobrevive ao advento do juízo, dos cabelos brancos, do direito de estacionar nas melhores vagas e de furar a fila nos bancos. É que, assim como os ossos se tornam menos densos, o coração enrijece. Se enche de sangue mais vagarosamente. Não consegue acelerar nas subidas íngremes que a geografia do desejo nos reserva.
Já teremos, nessa idade, descoberto que há a paixão e a paixão. São, ambas, substantivos femininos, mas tão diferentes entre si quanto duas mulheres podem ser. Uma é “sentimento, entusiasmo, predileção ou amor tão intensos que se sobrepõem à lucidez e ofuscam a razão”. É a paixão de Riobaldo, de Anna Karenina, de Florentino Ariza. A outra, “sofrimento, martírio”, como a paixão de Cristo.

Vivenciamos as duas, misturadas, impelidos pelos hormônios, pelo relógio biológico, pela urgência de “Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.” Fernando Pessoa pode ter sido contido e prosaico nos seus parcos amores, mas Álvaro de Campos sabia o que era estar apaixonado.
A paixão é mais fácil quando a carne é firme e, paradoxalmente, fraca. Quando os olhos enxergam melhor e veem menos. Quando a memória é perfeita e, ainda assim, se esquece tudo com maior facilidade.

Aprendemos a distinguir a paixão adolescente — essa vocação para idealizar, essa aventura de estar à deriva — do amor maduro, cheio de compreensão pelos defeitos do outro, ancorado do porto seguro do companheirismo. Cada um viria a seu tempo, cada um teria sua ocasião — como o tempo de plantar, o tempo de colher.
Mas e quando os batimentos cardíacos aceleram e não há cloridrato de propafenona ou chá de casca de limão que deem jeito? Quando a ansiedade não baixa nem com o combo de maracujina, Netflix e diazepam? A única coisa a fazer é aparar a barba, cortar o cabelo e tocar um tango argentino.

Peguei aqui: https://lulacerda.ig.com.br/opiniao-por-eduardo-affonso-labareda-tempora/?fbclid=IwAR2w9537UhgIsu9RByq0GOUDxQ923J-eH0QO1mAaTI_7KW980yrBDSF2RjQ

Manuel António Pina – Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo.Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Rui Caeiro – “Ainda atacas…”

Ainda atacas
como pode atacar um amor já ido
lá de vez em quando ainda atacas
irrompes num súbito alarme
sacodes-me de alto a baixo
impiedosa
mente
sacodes
me
e devagar te afastas
como um sol a por
se

in http://editora-alambique.blogspot.com.br/2014/08/blog-post.html 

Idea Vilariño – Ou foram nove

Talvez tivemos só sete noites
não sei
não as contei
como poderia ter feito.
Talvez não mais que seis
ou foram nove.
Não sei,
mas valeram a pena
como o amor mais duradouro.
Talvez
com quatro ou cinco noites dessas,
mas precisamente como essas,
talvez
seja possível viver
como de um longo amor
uma vida inteira.

Trad.: Nelson Santander

Idea Vilariño – O fueron nueve

Tal vez tuvimos sólo siete noches
no sé
no las conté
cómo hubiera podido.
Tal vez no más que seis
o fueron nueve.
No sé
pero valieron
como el más largo amor.
Tal vez
de cuatro o cinco noches como esas
pero precisamente como esas
tal vez
pueda vivirse
como de un largo amor
toda una vida.

Eira Stenberg – Falar de Amor

Falar de amor,
do que não se pode falar –
desse beco sem saída que é o espelho
onde alguém pende de cabeça
em uma árvore invisível
com as pernas cingindo um ramo
como se lutasse contra a gravidade
e abrisse a boca
sem emitir som algum.

Ou falar
como se o amor fosse uma porta
e o pesar sua chave
e por detrás da porta uma árvore em chamas
agora visível,
um feto esticasse as pernas e emergisse
na superfície,
e te falasse, trovador
que joga tua cabeça de uma mão para a outra
como um dado,
e te entregasse uma folha fresca
encerrado o dilúvio.

Trad.: Nelson Santander

Eira Stenberg – Hablar de amor

Hablar de amor,
de lo que no se puede hablar –
de ese callejón sin salida que es el espejo
de donde alguien pende de cabeza
en un árbol invisible
con las piernas atenazando una rama
como si luchase contra la gravedad
y abriese la boca
sin emitir sonido alguno.

O hablar
como si el amor fuese una puerta
y el pesar su llave
y detrás de la puerta un árbol en llamas
ahora visible,
un feto estirase las piernas y emergiese
a la superficie,
y te hablase, juglar
que arrojas tu cabeza de una mano a la otra
como un dado,
y te tendiese una hoja fresca
acabado el diluvio.

Rosa Leveroni i Valls – De “Epigramas e Canções”

Eu levo dentro de mim
para fazer-me companhia
a solidão apenas.
A solidão imensa
do amor infinito
que queria ser terra,
ar e sol, mar e estrela,
para que fosses mais meu,
para que eu fosse mais tua.

Trad.: Nelson Santander

Rosa Leveroni i Valls – De “Epigrames i cançons”

Jo porto dintre meu
per fer-me companyia
la solitud només.
La solitud immensa
de l’estimar infinit
que voldria ésser terra,
aire i sol, mar i estrella,
perquè fossis més meu,
perquè jo fos més teva.

Yehuda Amichai – Na história do nosso amor

Na história do nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

Trad.: Millôr Fernandes

Pedro Salinas – De “La voz a ti debida” [39]

A tua forma de amar
é deixar-me que te queiras.
O sim com que tu te rendes
é o silêncio. Teus beijos
são oferecer-me os lábios
para que eu possa beija-los.
Jamais palavras, abraços,
me dirão que existias,
que me quiseste: jamais.
Dizem-mo as folhas brancas,
mapas, augúrios, chamadas;
tu, não.
E fico abraçado a ti
sem perguntar-te, de medo
que não seja verdadeiro
que tu vives e me ama.
E fico abraçado a ti
sem olhar e sem tocar-te.
Não desejo que descubras
com perguntas, com carícias,
essa solidão imensa
de somente eu te amar.

Trad.: Nelson Santander

 

Pedro Salinas – La voz a ti debida [39]

La forma de querer tú
es dejarme que te quiera.
El sí con que te me rindes
es el silencio. Tus besos
son ofrecerme los labios
para que los bese yo.
Jamás palabras, abrazos,
me dirán que tú existías,
que me quisiste: jamás.
Me lo dicen hojas blancas,
mapas, augurios, teléfonos;
tú, no.
Y estoy abrazado a ti
sin preguntarte, de miedo
a que no sea verdad
que tú vives y me quieres.
Y estoy abrazado a ti
sin mirar y sin tocarte.
No vaya a ser que descubra
con preguntas, con caricias,
esa soledad inmensa
de quererte sólo yo.