Mia Couto – A Luz da Dor

O meu modo de saber é adoecendo.

A uns, a ideia surge em luz.
A mim, se declara
uma pontada no peito.

O advento da dor,
o deflagrar da súbita febre
e eu sei que o meu corpo sabe.

Um dia destes
me desconhecerei vivo
desfalecido de aguda sapiência.

Até lá
repartirei com um anjo
o doce milagre da refeição.

Mia Couto – Falta de Reza

Por insuficiência de reza,
por falsidade de crença
meu anjo me culpou
e vaticinou eterna penitência.

Mas não ajoelho
nem peço desculpa.
Não quero um deus
que vigie os vivos
e peça contas aos mortos.

Um deus amigo
que me chame por tu
e que espere por mim
para um copo de riso e abraços:
esse é o deus que eu quero ter.

Um deus
que nem precise de existir.