José Paulo Paes – Dúvida

Não há nada mais triste
do que um cão em guarda
ao cadáver do seu dono.

Eu não tenho cão.
Será que ainda estou vivo?

              data da última gravação: 8/10/98, 17h09

Na “Apresentação” de Socráticas – obra da qual foi extraído o poema acima – Alfredo Bosi esclarece:

As Socráticas, publicadas postumamente, soam como um recado joco-sério aos que ficaram, e que são convidados (como queria o primeiro dos filósofos) a aprender a morrer com a mesma dignidade dos que souberam viver. “Dúvida” é um poema encontrado por Dora [esposa de José Paulo Paes] no computador do poeta. Sabe-se que foi composto na véspera de sua morte. Pronto e perfeito como tudo o que saía de suas mãos. Avulso embora, o poema convém no espírito e na letra ao corpo destas Socráticas. Daí, a justeza da sua inclusão no livro derradeiro de José Paulo Paes.

José Paulo Paes – De malas prontas

Vários dos seus amigos mortos dão hoje nome a ruas e praças.
Ele próprio se sente um pouco póstumo quando conversa com gente
  jovem.
Dos passeios, raros, a melhor parte é a volta para casa.
As pessoas lhe parecem barulhentas e vulgares. Ele sabe de
  antemão tudo quanto possam dizer.
Nos sonhos, os dias da infância são cada vez mais nítidos e fatos
  aparentemente banais do seu passado assumem uma
  significância que intriga.
O vivido e o sonhado se misturam agora sem lhe causar
  espécie.
É como se anunciassem um estado de coisas cuja possível iminência
  não traz susto.
Só curiosidade. E um estranho sentimento de justeza.

José Paulo Paes – Glauco

Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.

E nem havia mais onde encontrá-lo:
o Belas Artes fechara
a redação de O Dia sumira-se no ar
as pensões eram terrenos baldios.

Desarvorado me sentei à mesa
de uma confeitaria na esperança — vã —
de que algum sobrevivente de outros tempos
viesse dar notícias dele.

Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:

livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
     fugaz
        inatingível
              Beleza Adolescente.

José Paulo Paes – Elogio da Memória

O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.

Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.

 

Conheça outros livros de José Paulo Paes clicando nesse link