
REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 01/12/2017
Não há nada mais triste
do que um cão em guarda
ao cadáver do seu dono.
Eu não tenho cão.
Será que ainda estou vivo?
data da última gravação: 8/10/98, 17h09
Na “Apresentação” de Socráticas – obra da qual foi extraído o poema acima – Alfredo Bosi esclarece:
As Socráticas, publicadas postumamente, soam como um recado joco-sério aos que ficaram, e que são convidados (como queria o primeiro dos filósofos) a aprender a morrer com a mesma dignidade dos que souberam viver. “Dúvida” é um poema encontrado por Dora [esposa de José Paulo Paes] no computador do poeta. Sabe-se que foi composto na véspera de sua morte. Pronto e perfeito como tudo o que saía de suas mãos. Avulso embora, o poema convém no espírito e na letra ao corpo destas Socráticas. Daí, a justeza da sua inclusão no livro derradeiro de José Paulo Paes.
Vários dos seus amigos mortos dão hoje nome a ruas e praças.
Ele próprio se sente um pouco póstumo quando conversa com gente
jovem.
Dos passeios, raros, a melhor parte é a volta para casa.
As pessoas lhe parecem barulhentas e vulgares. Ele sabe de
antemão tudo quanto possam dizer.
Nos sonhos, os dias da infância são cada vez mais nítidos e fatos
aparentemente banais do seu passado assumem uma
significância que intriga.
O vivido e o sonhado se misturam agora sem lhe causar
espécie.
É como se anunciassem um estado de coisas cuja possível iminência
não traz susto.
Só curiosidade. E um estranho sentimento de justeza.
Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.
E nem havia mais onde encontrá-lo:
o Belas Artes fechara
a redação de O Dia sumira-se no ar
as pensões eram terrenos baldios.
Desarvorado me sentei à mesa
de uma confeitaria na esperança — vã —
de que algum sobrevivente de outros tempos
viesse dar notícias dele.
Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:
livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
fugaz
inatingível
Beleza Adolescente.
O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.
Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.
Mal saíra do casulo
para mostrar ao sol
o esplendor de suas asas
um pé distraído a pisou.
(A visão de beleza
dura um só instante
inesquecível.)
meu deus
minha pátria
minha família
minha casa
meu clube
meu carro
minha mulher
minha escova de dentes
meus calos
minha vida
meu câncer
meus vermes
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