ruas têm coração de pedra
não espere nada do seu amor por elas
a não ser cimento, asfalto
e uma família nova
na casa de um velho conhecido
quando menos se espera
uma rua muda de sentido
ruas têm coração de pedra
não espere nada do seu amor por elas
a não ser cimento, asfalto
e uma família nova
na casa de um velho conhecido
quando menos se espera
uma rua muda de sentido
olhar para o alto.
tão alto que se tenha
um torcicolo eterno
e nunca mais se possa
olhar direto para o próximo.
IV
Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:
A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,
até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo
pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.
I
A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo
solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo
— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo
como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.
IV
Também já estive aí, no não lugar
onde você agora não se encontra.
Também não me encontrei.
Aliás, foi justamente contra
a tal necessidade de seguir alguma
rota que jurei lutar. Lutei, perdi,
e pronto: agora estou aqui,
a alguns centímetros do meu próprio umbigo
Se tudo correr bem, também a tua derrota
vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.
ii
Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.
II
Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.