Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

IV

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:

A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,

até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo

pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.

Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

I

A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo

solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo

— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo

como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.

Paulo Henriques Britto – de “Dez Sonetóides Mancos”

IV

Também já estive aí, no não lugar
onde você agora não se encontra.
Também não me encontrei.

Aliás, foi justamente contra
a tal necessidade de seguir alguma
rota que jurei lutar. Lutei, perdi,

e pronto: agora estou aqui,
a alguns centímetros do meu próprio umbigo

Se tudo correr bem, também a tua derrota
vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

ii

Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.

Paulo Henriques Britto – De “Duas Bagatelas”

II

Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.