Joyce Sutphen – Como acabamos juntos

Ele era bom em uma emergência, calmo
no meio de uma tormenta. Acidentes
não o surpreendiam; ele estava sempre

pronto para o que quer que surgisse. Você
podia contar com ele; você podia fazer
um acordo que ele cumpriria, mesmo se você

não pudesse. Os acordos dele eram impossíveis;
os acordos dele eram feitos para você falhar,
e ao falhar você se encontraria em algum

tipo de emergência, num lugar em que você não
queria estar, e ele era bom em colocá-lo
de volta ao chão, de volta a seus pés.

Eu o escolhi pelo que ele não podia me dar,
e ele me escolheu porque eu não pediria
até que estivesse desesperada e só ele pudesse ajudar.

Trad.: Nelson Santander

How We Ended Up Together

He was good in an emergency, calm
in the middle of a storm. Accidents
didn’t surprise him; he was always

ready for whatever came along. You
could count on him; you could make
a deal and he would keep it, even if you

couldn’t. His deals were impossible;
his deals were meant to make you fail,
and failing you found yourself in some

sort of emergency, someplace you didn’t
want to be, and he was good at getting
you back to the ground, back to your feet.

I chose him for what he could not give me,
and he chose me because I would not ask
until I was desperate and only he could help.

Daniel Filipe – A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incômodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a umidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o diretor da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congênita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogênio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade noturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas
Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher e o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atônito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o clímax
e a polícia poderá cumprir o seu dever

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais


É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE


Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anônima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é ótimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspetores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anônimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado


SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resolve-la
para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as “Crônicas marcianas”
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

Billy Collins – Como se para demonstrar um eclipse

Pego uma laranja de um cesto de vime
e a coloco na mesa
para representar o sol.
Depois, na outra ponta,
uma bola de gude azul e branca
se torna a terra
perto da qual eu coloco a pequena lua de uma aspirina.

Pego uma taça no armário,
abro uma garrafa de vinho,
sento-me em uma cadeira de espaldar alto,
um deus benevolente presidindo
um mito da criação em miniatura,

e começo a entoar
um cântico caseiro de gratidão
por este pequeno arranjo perfeito,
por não deixar a terra muito quente ou fria
por não fazê-la girar muito rápido ou devagar

de modo que o pomar das laranjeiras
e a coruja se tornem possíveis,
isso sem falar nas ondas do mar,
no recreio das nuvens, nos gansos em vôo,

e no Z do raio sobre um lago escuro.
Então eu encho meu copo novamente
e dou graças pela truta,
pelo carvalho e pela pena amarela,

cantando o aposento repleto de sombras,
enquanto o sol e a terra e a lua
circundam uns aos outros em suas órbitas impecáveis
e eu fico cada vez mais ébrio de gratidão.

Trad.: Nelson Santander

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As If to Demonstrate an Eclipse

I pick an orange from a wicker basket
and place it on the table
to represent the sun.
Then down at the other end
a blue and white marble
becomes the earth
and nearby I lay the little moon of an aspirin.

I get a glass from a cabinet,
open a bottle of wine,
then I sit in a ladder-back chair,
a benevolent god presiding
over a miniature creation myth,

and I begin to sing
a homemade canticle of thanks
for this perfect little arrangement,
for not making the earth too hot or cold
not making it spin too fast or slow

so that the grove of orange trees
and the owl become possible,
not to mention the rolling wave,
the play of clouds, geese in flight,

and the Z of lightning on a dark lake.
Then I fill my glass again
and give thanks for the trout,
the oak, and the yellow feather,

singing the room full of shadows,
as sun and earth and moon
circle one another in their impeccable orbits
and I get more and more cockeyed with gratitude.

Joan Margarit – Arcadi Volodos: Sonata D894

É uma música modesta
como um jantar na cozinha,
hospitaleira como ter tido filhos.
Compadece-se do corpo
que a maré arrasta
à praia invernal de cada um.
Que franqueza nas notas mais abruptas
dizendo-me: é amor
também aquilo que parece hostil.
Quando se extingue o eco do piano,
o que escutei ainda me estremece.
A música de Schubert
é uma forma de caridade.

Trad.: Nelson Santander

Arkadi Volodos: Sonada D894

Es una música modesta
como una cena en la cocina,
hospitalaria como haber tenido hijos.
Se compadece de este cuerpo
que la marea arrastra
a la playa invernal de cada uno.
Qué franqueza en las notas más abruptas
diciéndome: es amor
también aquello que parece hostil.
Cuando el eco del piano se ha extinguido,
lo que he escuchado me estremece aún.
La música de Schubert
es una forma de la caridad.

Jorge Valdés Díaz-Vélez – Matzhevá

/   Em um livro do meu pai, leio
a frase: «A ti, que me lês».
É o título de uma elegia
escrita há dois séculos, ou um sopro
de solitude que se elevou
ao leitor imaginário de 
fora dos círculos do tempo.
Essa linha guarda em cada sílaba
a fresca impressão de sua veemência:
ser uma semente indócil em algum dia
limítrofe ao de agora, garrafa
de aflição lançada por alguém
como qualquer um de nós.
É, junto com a tarde, um epitáfio,
um grito que vem de muito longe,
e que hoje, 29 de fevereiro
de 2000, faz estremecer minhas mãos.
Invoco-a em voz baixa, e ela me ilumina
como uma prece no cativeiro;
pronuncio-a a quem estiver me ouvindo
virar esta página com frio.

Trad.: Nelson Santander

Matzhevá

   En un libro de mi padre, leo
la frase: «A ti, que me estás leyendo».
Es el título de una elegía
escrita hace dos siglos, o un hálito
de la soledumbre que ha subido
al lector imaginario desde
fuera de los círculos del tiempo.
Esa línea guarda en cada sílaba
la fresca impresión de su vehemencia:
ser semilla indócil algún día
limítrofe al de ahora, botella
de quebranto lanzada por alguien
igual a cualquiera de nosotros.
Es, junto a la tarde, un epitafio,
un grito que llega de muy lejos,
y hoy, a 29 de febrero
de 2000, estremece mis manos.
La invoco en voz baja, me ilumina
como una oración en cautiverio;
la digo a quien estuviera oyéndome
doblar esta página con frío.

Jane Routh — Um lugar

Quando você viveu toda sua vida adulta em um só lugar,
você derrubou árvores. Você as plantou muito próximas
ou bloqueavam a visão ou algumas adoeceram. Como nós,

elas crescem até os vinte anos, e depois engrossam. Isso se aplica
aos freixos e às bétulas, mas não aos carvalhos: eles são
atrofiados. Você nunca sabe a forma que um carvalho assumirá.

Você joga as toras no fogão sem se arrepender, embora
ainda sejam reconhecíveis – aquela bétula perto da cozinha,
e até mesmo este tronco de eucalipto do jardim.

Eu ainda planto árvores, embora saiba que não verei
como elas irão crescer e não consiga nem imaginar
as formas que elas poderão ostentar contra o céu invernal.

*

As calhas estão entupidas, cheias de curtas vogais.
Vamos enterrar meu vizinho amanhã, meu aniversário.
Há previsão de frio, depois, de neve. Veremos.

Quando você vive em um lugar há tanto tempo, há alguém
que você conhece em cada fileira. Da maneira como se resolveu,
meus amigos ficaram do outro lado, junto ao muro.

O carro funerário tem que ir pelo caminho mais longo, através da charneca.
É mais perto a pé, embora ainda pareça distante do mundo,
a igreja em sua depressão, as paredes de pedra.

*

Quando você viveu sua vida em uma comunidade
e se reúne com seus vizinhos para um enterro,
você pensa o mesmo que todo os que ali estão:
aquele é o Tom? – continua bonito, embora o casaco
esteja muito justo nos ombros. Nós polimos nossos óculos,
seguramos o hinário com o braço estendido.
George está completamente grisalho agora. Ruby também.
Um de nós será o próximo: o que alguém lembra
que dissemos uma vez já passou e se repetiu.
Logo todos nós seremos histórias – apenas histórias, sem nomes.

*

Um leque perfeito preservado na neve
onde um faisão pressionou sua cauda aberta
para a decolagem. O túmulo fica bem ao lado da trilha.

Quando você viveu a maior parte de sua vida com as mesmas pessoas,
compartilhando com elas o mesmo tempo e cortes de energia e inundações,
elas começam a transmitir suas histórias que mantêm a mortalidade longe.
Você deve se lembrar dos nomes
embora até mesmo o narrador se esqueça: a quem pertencia o campo superior
acima do cemitério naquela época, Billy Morphet?
ou ao irmão dele? de qualquer maneira, ele e o coveiro
estavam fumando um cigarro, ambos encostados na parede,
quando Jimmy Read apareceu. Sem nada dizer,
ele entra na cova, deita-se e fica imóvel
– reflita sobre isso, ele deitado ali, escutando –
o coveiro quase cai sobre ele com o choque.

Lembre-se, ele diria depois, são seis pés… é uma longa descida.

*

Quando você conhece um lugar por toda a vida, não precisa de mapas;
todos os nomes têm suas formas e suas texturas:
Helks, Jacksons Pasture, Perry Moor – mesmo os campos
têm nomes: Robins Close, Parrocks Meadow.

Mas quem foi Jackson? quem foi Robin? – você não sabe nada
sobre eles, as pedras datadas que eles colocaram sobre suas soleiras
sobreviveram a eles como sabiam que sobreviveriam –
mas sem denomina-los. Apenas o ano e as iniciais.

O único grande carvalho no topo da Floresta Velha
rio acima – quem o plantou? Ou foi um gaio-azul?
Desde que Ken instalou para mim a sebe à beira da estrada no ano passado,
quem por ali passa pode ver as árvores que plantei há vinte anos

como se fossem novas e repentinas. Já ouvi dizer que as chamam de Ken’s Wood
– não Jane’s. Elas parecem adoráveis da estrada,
troncos fortes e retos e muito mais além do terreno elevado.
Espalhei sementes de dedaleira entre elas, e alhos-selvagens também.

Trad.: Nelson Santander

One Place

When you’ve lived all your adult life in one place,
you fell trees. You planted them too close
or blocked the view or some sickened. Like us

they go for height till they’re twenty, then thicken. That’s true
of the ash and the birch, but not oak: they’re
stunted. You never know how an oak will shape up.

You drop logs in the stove without regret, though
they’re recognisable still – that birch by the kitchen,
and even this length of eucalypt from the garden.

I’m still planting trees, though I know I’ll not see
how they’ll grow and can’t even imagine
the shapes they might make against winter sky.

*

Downspouts are busy, full of short vowels.
We’re burying my neighbour tomorrow, my birthday.
Ice is forecast, then snow. We’ll see.

When you’ve lived in one place so long, there’s someone
you know in every row. The way it’s worked out,
my friends are at the far side, by the wall.

The hearse has to go the long way, over the moor.
It’s nearer on foot, though it still feels removed from the world,
the church in its hollow, the stone walls.

*

When you’ve lived your life in one parish
and gather with neighbours for a burial,
you think the same thoughts as everyone else:
is that Tom? – still handsome, though that coat’s
tight on the shoulders. We polish our glasses,
hold hymn sheets out at arm’s length.
George is completely white now. Ruby is too.
One of us will be the next: what someone remembers
we said one time passed round and repeated.
Then all of us will be stories – just stories, no names.
*
A perfect fan preserved in the snow
where a pheasant pressed down its spread tail
for take-off. The grave’s right next to the footpath.

When you’ve lived most of your life with the same people
sharing your weather and power cuts and floods,
they start to pass on their tales that keep mortality at bay.
You’re supposed to remember the names
though even the teller forgets: who was it had the top field
above the graveyard in those days, Billy Morphet?
or his brother? anyway, he and the gravedigger
were having a smoke, the two of them up by the wall,
when Jimmy Read comes along. He doesn’t let on:
he gets in the hole and lies down and keeps quiet
– just think on it, laid there, listening out –
the gravedigger nearly falls in on top with the shock.

Mind you, he said after, six foot… it’s a long way down.

*

When you know a place lifelong, you’ve no need of maps;
every name has its shapes and its feel underfoot:
Helks, Jacksons Pasture, Perry Moor – even the fields
have names: Robins Close, Parrocks Meadow.

But who was Jackson? who was Robin? – you know nothing
of them, the datestones they set over their doorways
outlasting them as they knew they would –
but not calling them up. Just the year, just initials.

The one great oak at the top of the Old Wood
above the river – who planted that? Or was it a jay?
Since Ken laid the roadside hedge for me last year,
passers-by can see the trees I planted twenty years ago

as if they’re new and sudden. I’ve heard it called Ken’s Wood
– not Jane’s. They look lovely from the road,
strong trunks and straight and more beyond on rising ground.
I scattered foxglove seeds among them, and ramsons too.

Ana Martins Marques – Relâmpagos

O pensamento
é um pornógrafo
e quase só de palavras
se faz o amor

e no entanto não se embaraça
o pensamento com os cabelos
como os meus cabelos
se embaraçavam nos seus

e não se misturam as palavras
com as palavras como na boca
a saliva se mistura
com a saliva

nem as línguas que falamos
deixam gosto na língua

ou eu teria ainda na minha
o sal da sua

nem anoitece na memória
aos poucos como anoitecia
naquele quarto estreito

já fui um ser de duas cabeças
e ancas
já tive quatro pernas duas bocas
tive quatro braços e mãos
e vinte dedos das mãos
e dois sexos e dois corações
pulsando
simultâneos

já tive só palavras rápidas
como relâmpagos
atravessando a pele

o que foi feito das palavras
que trocamos?

o que foi feito desse ser
desajustado para o mundo?

o que ficou além da cicatriz
dos relâmpagos?