Thiago de Mello – Madrugada camponesa

para os trabalhadores do MST, em 1999

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Madrugada da esperança,
Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.

Amazonas, 62,
Santiago, 63.

Thiago de Mello, – 30/03/1926 + 14/01/2022

Thiago de Mello – O Morto

Qual a verdade que o morto
conheceu, além dos muros,
e lhe fez cerrar os lábios
estrangulando a palavra
porventura essencial?
Enfim livre da cegueira,
que paisagem contemplou
para que o rosto lhe turve
tão rude ruga de mágoa?
Soube talvez que melhor
fora mostrar-se de todo:
desvelar inteira a face,
seus amores e seus ódios,
e não (de medo) exilar-se
no recôncavo do sonho,
onde fundava universos
em que só fulgisse a luz
de fabulárias auroras.
Certo lhe amarga saber
que inútil fora o tormento
de escolher entre dois rumos;
que o soberbo privilégio
sobre a pedra, sobre o pássaro,
de assombrar-se antes si mesmo,
está proscrito. Que agora
irmanados inexistem.
Dói-lhe esta mágoa profunda:
a de perceber-se enigma
e não se ter decifrado.
Talvez a mágoa do morto
seja mais funda: saber
ter sido apenas um erro
no pensamento de Deus.