Cecilia Meireles – Cântico VI

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Ferreira Gullar – Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Frank O’Hara – Autobiographia Literaria

Quando era menino eu
brincava sozinho num
canto do pátio da escola
sem ninguém.

Odiava bonecas e
odiava jogos, os bichos eram
hostis e os pássaros
fugiam.

Se alguém me procurava
eu me escondia atrás de uma
árvore e gritava “Sou
um órfão.”

E olha eu aqui, o
centro de toda beleza!
escrevendo estes versos!
Imagina!

Trad.: Paulo Henriques Britto

 

Autobiographia literaria

When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out “I am
an orphan.”

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!

Maya Angelou – Ainda assim me Levanto

Você pode me inscrever na história
Com as mentiras amargas que contar
Você pode me arrastar no pó,
Ainda assim, como pó, vou me levantar

Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu caminho como se eu tivesse
Petróleo jorrando na sala de estar

Assim como a lua ou o sol
Com a certeza das ondas no mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar

Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído,
Ombros curvados como lágrimas,
Com a alma a gritar enfraquecida?

Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal
Só porque eu rio como se tivesse
Minas de ouro no quintal

Você pode me fuzilar com palavras
E me retalhar com seu olhar
Pode me matar com seu ódio
Ainda assim, como ar, vou me levantar

Minha sensualidade o agita
E você, surpreso, se admira
Ao me ver dançar como se tivesse
Diamantes na altura da virilha?

Das choças dessa história escandalosa
Eu me levanto
De um passado que se ancora doloroso
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e irrequieto
Indo e vindo contra as marés eu me elevo
Esquecendo noites de terror e medo
Eu me levanto
Numa luz incomumente clara de manhã cedo
Eu me levanto
Trazendo os dons dos meus antepassados
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto

Trad.: Francesca Angiolillo

Emily Dickinson – Morri pela Beleza

Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –

“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o Mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –

E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –

Trad.: Augusto de Campos

 

I died for Beauty – but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –

He questioned softly “Why I failed”?
“For Beauty”, I replied –
“And I – for Truth – Themself are One –
We Brethren, are”, He said –

And so, as Kinsmen, met a Night –
We talked between the Rooms –
Until the Moss had reached our lips –
And covered up – our names –

Wislawa Szymborska – O Terrorista, Ele Observa

A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de entrar;
alguns de sair.

O terrorista já passou para o outro lado da rua.
A distância o livra de todo mal
e a vista, bom, é como no cinema:

Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Uns jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,
e aquele mais alto entra.

Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.
Só que aquele ônibus a encobre de repente.

Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Se ela foi tola de entrar ou não
vai se saber quando os carregarem para fora.

Treze e dezenove.
Parece que ninguém mais entra.
Aliás, um gordo careca sai.
Mas remexe os bolsos como se procurasse algo
e às treze e vinte menos dez segundos
ele volta para buscar a droga das luvas.

São treze e vinte.
O tempo, como ele se arrasta.
Deve ser agora.
Ainda não.
É agora.
A bomba, ela explode.

Trad.: Regina Przybycien

Ana Martins Marques – Batata Quente

Se eu te entregasse agora o meu amor
aceso como ele está,
como ele está, pesado,
você o trocaria rapidamente de mão,
você o guardaria um pouco na esquerda,
um pouco na direita,
por quanto tempo antes de o passar adiante?

Raymond Carver – O que o Médico Disse

Ele disse não parece bom
ele disse parece mau aliás muito mau
ele disse eu contei trinta e dois deles em um pulmão antes
de parar de contar
eu disse fico feliz não ia querer saber
que tem mais do que isso lá
ele disse por acaso você é religioso você se ajoelha
em bosques na floresta e se permite pedir ajuda
quando encontra uma cachoeira
a névoa soprando contra seu rosto seus braços
você para e pede clareza nesses momentos
eu disse não mas pretendo começar hoje mesmo
ele disse sinto muito ele disse
gostaria de ter outro tipo de notícia para dar
eu disse Amém e ele disse algo mais
que eu não entendi e sem saber mais o que fazer
e sem querer que ele precisasse repetir aquilo
e que eu realmente precisasse digeri-lo
apenas olhei para ele
por um minuto e ele olhou de volta foi então
que me ergui num salto e apertei a mão daquele homem que
acabara de me dar
algo que ninguém no mundo jamais tinha me dado
talvez eu tenha até agradecido por força do hábito