Adam Zagajewski – Amizades impossíveis

Por exemplo, com alguém que já não existe mais,
que vive apenas nas cartas amareladas.

Ou longas caminhadas à beira de um córrego,
cujas profundezas guardam xícaras de porcelana

ocultas — e conversas sobre filosofia
com um tímido estudante ou um carteiro.

Um transeunte de olhar altivo
a quem você nunca conhecerá.

Amizade com este mundo cada vez mais perfeito
(se não fosse pelo cheiro salgado de sangue).

O velho que lhe faz lembrar alguém
tomando café em St.-Lazare.

Rostos passando rapidamente
nos trens urbanos —

as felizes faces de viajantes que se dirigem talvez
para um esplêndido baile, ou para uma decapitação.

E a amizade consigo mesmo
— pois, afinal de contas, você não sabe quem é.

Trad.: Nelson Santander a partir da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

Impossible Friendships

For example, with someone who no longer is,
who exists only in yellowed letters.

Or long walks beside a stream,
whose depths hold hidden

porcelain cups—and the talks about philosophy
with a timid student or the postman.

A passerby with proud eyes
whom you’ll never know.

Friendship with this world, ever more perfect
(if not for the salty smell of blood).

The old man sipping coffee
in St.-Lazare, who reminds you of someone.

Faces flashing by
in local trains—

the happy faces of travelers headed perhaps
for a splendid ball, or a beheading.

And friendship with yourself
—since after all you don’t know who you are.

Adam Zagajewski – Um breve poema

Eu ouvia cânticos gregorianos
num carro em alta velocidade
em uma rodovia na França.
As árvores passavam velozes. As vozes dos monges
entoavam preces a um deus invisível
(ao amanhecer de uma capela tremendo de frio).
Domine, exaudi orationem meum,
vozes graves rogavam calmamente
como se a salvação estivesse crescendo no jardim.
Para onde eu ia? Onde o sol se escondia?
Minha vida estava em farrapos
nos dois lados da estrada, frágil como um mapa de papel.
Com os doces monges
percorri o caminho em direção às nuvens, ao azul profundo,
pesado, denso,
rumo ao futuro, ao abismo,
sorvendo duras lágrimas de granizo.
Longe da aurora. Longe de casa.
Em lugar de paredes — chapa de metal.
Em vez de vigília — vôo.
Viagem em vez de lembrança.
Um breve poema em vez de um hino.
Uma pequena e cansada estrela corria
mais à frente
e o asfalto da rodovia brilhava,
mostrando onde estava a terra,
e onde espreitava a navalha do horizonte
e a aranha negra da tarde
e da noite, viúva de tantas esperanças.

Trad.: Nelson Santander da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

A Quick Poem

I was listening to Gregorian chants
in a speeding car
on a highway in France.
The trees rushed past. Monks’ voices
sang praises to an unseen god
(at dawn in a chapel trembling with cold).
Domine, exaudi orationem meum,
male voices pleaded calmly
as if salvation were just growing in the garden.
Where was I going? Where was the sun hiding?
My life lay tattered
on both sides of the road, brittle as a paper map.
With the sweet monks
I made my way toward the clouds, deep blue,
heavy, dense,
toward the future, the abyss,
gulping hard tears of hail.
Far from dawn. Far from home.
In place of walls — sheet metal.
Instead of a vigil — a flight.
Travel instead of remembrance.
A quick poem instead of a hymn.
A small, tired star raced
up ahead
and the highway’s asphalt shone,
showing where the earth was,
where the horizon’s razor lay in wait,
and the black spider of evening
and night, widow of so many dreams.

(translated by Clare Cavanagh)

Adam Zagajewski – Os três anjos

De súbito, três anjos apareceram
aqui ao pé da padaria na Rua de São Jorge;
mais um inquérito sociológico,
suspirou um homem enfadado.
Não, começou por explicar, com paciência, o primeiro anjo,
gostaríamos só de saber
em que é que se tornaram as vossas vidas,
que sabor têm os dias e porque é que as noites
estão marcadas pelo desassossego e pelo medo.

É verdade, pelo medo, interveio uma adorável mulher
de olhos de sonho; mas eu sei o porquê.
As obras do pensamento humano soçobraram
e precisam de ajuda e apoio,
que não conseguem encontrar. Senhor, veja
– chamou “senhor” ao anjo! –
o exemplo de Wittgenstein. Os nossos sábios
e líderes são tristes e loucos
e sabem ainda menos do que nós,
pessoas comuns (mas ela não era
comum).

E também, disse um garoto
que andava a aprender a tocar violino, as tardes
são apenas uma maleta oca,
uma caixa vazia de mistérios,
enquanto de madrugada o cosmos parece completamente
alheio e seco, como a tela da televisão.
E para além disto não há muitos
que amem a música pela música em si.

Falaram também outros e as queixas multiplicavam,
compondo uma crescente sonata de raiva.
Se os senhores querem saber a verdade
– gritou um estudante alto, que
há pouco perdera a mãe – nós já estamos fartos
de morte e crueldade, doenças, perseguições
e longos períodos de um tédio imóvel
como o olho duma serpente. Temos tão pouca terra,
e demasiado fogo. Não sabemos quem somos.
Erramos pelo bosque e as estrelas negras
movem-se preguiçosas por cima de nós, como
se fossem apenas um sonho nosso.


E contudo, disse timidamente o segundo anjo,
há sempre um pouco de alegria e até a beleza
fica mesmo à mão, sob a casca
de cada hora, no coração calado da meditação,
e em cada um de vós esconde-se um homem
universal, forte, invencível.
As rosas bravas conservam por vezes o cheiro
da infância e nos dias feriados as garotas
saem para dar um passeio como sempre fizeram,
e na maneira como entrelaçam os cachecóis coloridos
há algo de imortal.
A memória vive no mar, no galope do sangue,
nas negras e queimadas pedras, nos poemas
e em toda a conversa serena.
O mundo é o mesmo de sempre,
cheio de sombras e de expectativa.

Podia ter falado ainda mais, mas a multidão crescia
e espalhavam-se
ondas de surda fúria,
até que por fim os enviados levantaram suavemente
voo, e no ar, ao afastarem-se,
docemente repetiam: paz é o que vos desejamos, paz
aos vivos e aos mortos e aos que ainda estão por nascer.
Só o terceiro anjo é que não proferiu palavra,
porque era o anjo do longo silêncio.

Trad.: Marco Bruno (com a revisão de Jorge Sousa Braga)

Adam Zagajewski – Conversa com Friedrich Nietzsche

Excelentíssimo Senhor Friedrich,
tenho a impressão de estar a ver agora o senhor,
no terraço do sanatório, ao amanhecer,
com o nevoeiro a cair e o canto a rebentar
nas gargantas dos pássaros.

Não muito alto, a cabeça como um projétil,
o senhor está a escrever um novo livro
e uma estranha energia flui de si:
parece que vejo os seus pensamentos como se fossem
grandes exércitos em parada

O senhor sabe que morreu a morena Anne Frank
e os seus colegas de escola e amigos, rapazes e raparigas,
os coetâneos, e as amigas dos seus amigos
e os seus primos.

Quero perguntar-lhe o que é que são as palavras, o que é
a claridade, porque é que as palavras continuam a queimar
passados cem anos, embora a terra
seja tão pesada.

É óbvio que não existe nexo entre a iluminação
e a obscura dor da crueldade.
Existem pelo menos dois reinos,
mas é possível que haja ainda mais.

No caso, porém, de não haver Deus e de nenhuma força
estabelecer conexões entre elementos antagônicos,
o que é que são então as palavras e qual é a origem
da sua luz interior?

E qual a origem da alegria? E qual o destino do nada?
Qual a morada do perdão?
Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar do dia
enquanto os grandes continuam a crescer?

Trad.: Marco Bruno