Nelson Santander – O ano novo inalcançável

Meu xará Nelson Motta costuma afirmar, sem firulas, que a música americana é a melhor do mundo. O jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical, teatrólogo e letrista paulista radicado no Rio de Janeiro dispensa apresentações: sua extensa produção em todos os quadrantes da atividade musical – da produção à composição, passando pela crítica e história da música – lhe conferem um certo estatuto privilegiado para falar sobre o tema. Se ele diz que a música americana é a melhor do planeta, não sou eu quem irá contradita-lo.

É uma afirmação ousada, concordo. Afinal, todo país conta com artistas capazes de engendrar uma gama de produções artísticas de alta qualidade. Mas não dá para negar que, por uma série de razões (que vão da riqueza econômica do país mais rico do planeta à diversidade cultural que se verifica entre as diversas regiões do país, passando por um sistema educacional que incentiva as atividades voltadas às artes), a produção cultural americana é farta e diversificada. Em um ambiente assim, quase darwiniano, é enorme a possibilidade de que novos artistas talentosos possam surgir. Por sua visibilidade, o campo musical é onde essa profusão se revela com maior clareza: do rock ao jazz, do country à música clássica, do pop ao blues, não há nenhuma forma de expressão musical que os americanos não dominem com maestria. Nos estilos mais populares – mesmo no pop -, melodias sofisticadas costumam vir de par com letras muito bem escritas.

É o caso da pequena pérola chamada This Year, do The White Buffalo – nome artístico do cantor compositor americano Jake Smith -, que publiquei pela primeira vez no blog há dois anos, e à qual eu sempre retorno nos finais de ano. Pouco conhecido do público brasileiro – e mesmo do grande público americano -, Jake Smith já tem uma sólida carreira musical, iniciada com o lançamento de seu primeiro álbum – Hogtied Like a Rodeo – em 2002. Os fãs da série Sons of Anarchy talvez o conheçam porque várias canções interpretadas (e algumas compostas) por ele fizeram parte da trilha sonora do seriado (“Come Join The Murder”,  “Matador”, “Damned”, “Wish It Was True”, “House of the Rising Sun” (com os The Forest Rangers), “The Whistler”, “Set My Body Free”, “Sweet Hereafter”, “Oh Darling, what have I done” e “Bohemian Rhapsody” (também com os The Forest Rangers).

Para alguém que topa com o seu trabalho pela primeira vez, duas coisas impressionam: primeiro, o vozeirão e a técnica vocal do cara. Realmente, é assombroso como ele canta bem. E segundo, a qualidade das suas canções. Influenciado por dois gêneros aparentemente inconciliáveis – o country (o estilo musical favorito de seus pais) e o punk rock, mais rock, soul, folk, blues – suas melodias são belas e variadas. Muitas vezes, imprevisíveis. Sobre suas letras, o artista costuma dizer que, por apreciar “músicas realmente honestas”, como as de Bob Dylan, Leonard Cohen, Elliot Smith e Kris Kristofferson, seu objetivo ao escrever é sempre abordar os temas “de uma forma real, de uma forma honesta”:

“Eu entro em cada personagem e o empurro o mais longe que posso. Por exemplo, “If I Lost My Eyes” é uma canção do novo álbum (ele se refere ao álbum de 2019, “Darkest Darks, Lightest Lights”), é muito sombria e baseada na ideia de que se você perder suas faculdades mentais, seu companheiro ficará com você, ele preencherá esse vazio?” (https://www.musicradar.com/news/the-white-buffalo-youre-just-trying-to-hit-people-in-the-heart-with-songs)

This Year é a nona canção do álbum Shadows, Greys & Evil Ways (um puta álbum, diga-se de passagem). Trata-se de um folk-rock cuja melodia e arranjos seguem, em termos de cadência e força, a história contada na letra, emprestando à canção um sentido mais completo. A letra acompanha por um ano a história da vida de um típico looser americano. Jake Smith se vale da passagem das estações (inverno, primavera, verão, outono e inverno novamente) para indicar o estado de espírito do personagem que conta sua história em primeira pessoa.

O ciclo se inicia com a virada do ano (que ocorre no inverno norte-americano). A força do compositor já pode ser sentida nos primeiros versos que, embora descrevam a euforia típica que toma conta das pessoas nas festas de fim de ano, revelam que se trata de uma falsa felicidade – pelo menos do ponto de vista do personagem que fala de si e de suas agruras. Sob esse aspecto, são reveladoras, nessa primeira parte, os versos “O ano novo veio com o mesmo velho elenco”, “Nós dançamos e bebemos como se ele fosse o último” e “Vamos nos concentrar nesta noite única / E apenas torcer para que cheguemos em casa vivos”.

Com a chegada da primavera – que marca, psicologicamente, o início efetivo do ano dos EUA após a temporada de inverno -, o personagem parece se animar. Para demonstrar o novo estado de espírito do homem, o compositor enfileira versos que, sem explicitar a leveza de espírito do personagem, mostram que ele está atento ao que ocorre ao seu redor:

Os dias ficam mais longos, e as noites mais curtas
A mãe acorda um pouco mais radiante do que antes
O gelo derrete e os jardins florescem
O ar fresco e os campos são adoráveis
A grama e os narcisos fazem cócegas em nossos pés
As flores, elas desabrocham e os pássaros, eles cantam
Preenchendo o dia com as melodias que eles produzem

Mas nosso depressivo personagem, embora perceba a beleza da nova estação, não se deixa afetar muito por ela. Conquanto flores e pássaros cantem na sua frente, ele não sente “mais vontade de cantar”, pois, para ele “as estações mudam”, mas ele não muda “em nada”. De toda forma, mesmo consciente de estar sujeito a erros e acertos, ele acredita ser possível “melhorar” e ser “diferente” no ano que se inicia.

O verão é a única estação do ano em que o personagem parece se livrar de seu estado depressivo e acreditar que tudo pode realmente mudar para melhor. É o que ele afirma, peremptoriamente e não sem uma ponta de desconfiança, após descrever como as pessoas e coisas se comportam na estação do ano mais alegre:

Oh, o futuro, o futuro parece promissor
Eu até acho que posso acertar tudo, afinal

Mas chega, então, o “melancólico outono”, soprando “para longe os ventos do verão”. A metáfora não é gratuita. A chegada do outono que expulsa o verão marca o início da derrocada anual do personagem. Jake Smith se vale como nunca dos efeitos causados pelo outono no clima e na natureza para explicitar os dramas internos e externos enfrentados pelo personagem. “As folhas caem das árvores” e ele percebe que nunca mais as verá novamente – constatando que a fase boa de sua vida naquele ano já acabou. O personagem então diz que é hora de se recolher, “ficar dentro de casa”. Os próximos versos – terríveis – também usam as mudanças típicas sofridas pela natureza no outono americano para demonstrar com toda força o grau de devastação interna do personagem:

Sem flores, nem frutos, e os gramados todos morrem
Como pode tudo desmoronar tão rápido?
E por que eu achei que iria durar?
Quando tudo está morrendo, como eu posso me sentir vivo?
Oh, a vida é curta, e todos os dias bons desapareceram

O personagem constata então que talvez esteve “perdido” até aquele momento. Com o restinho de forças que lhe restam, ainda tem a esperança de que talvez possa se encontrar no ano que já vai terminando.

Mas então chega o inverno, a mais terrível das estações para um depressivo. O personagem, que havia se recolhido dentro de casa no outono, é dela arrancado à força pelo inverno, que lhe “derruba a porta” e faz o seu sangue fluir. Ao contrário do que acontecia na primavera (Os “dias ficam mais longos, e as noites mais curtas”), agora os “dias são muito curtos e as noites muito longas”. O natal está próximo, mas não traz felicidade nenhuma, até porque, “todo o dinheiro se foi”, sem que o personagem saiba “para onde”: “O natal não é fácil quando você não pode pagar o aluguel”. É quando “as luzes se apagam para uma noite infeliz”*. À essa altura, embora o personagem saiba que não pode desistir (pois “tudo o que você pode fazer é persistir na luta”), ele tem a plena consciência de que já perdeu o jogo. E de lavada. E sabe que não tem mais tempo para reverter o resultado:

Oh, a vida é dura, eu tenho lutado: um fracasso.
Talvez eu tenha estado perdido
Não acho que eu irei me encontrar
Este ano

Os versos finais da canção são um verdadeiro exercício de resignação e, surpreendentemente, de esperança. Ele de novo reconhece seus erros e acertos e renova a esperança de que talvez consiga melhorar e de que pode ser que o ano seja diferente. Mas não esse, que acabou. O próximo. A sacada de Jake Smith, aqui, é repetir quase que integralmente o verso em que ele anunciava que o ano que se iniciava talvez pudesse ser diferente para melhor (“Maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, this year”), alterando apenas uma palavra: this é substituída por next. Com isso, o personagem promove o realinhamento de sua vida fracassada com o ano que se inicia, na esperança de que neste ano novo tudo possa melhorar – evidenciando, portanto, o caráter circular da letra da canção.

Publiquei pela primeira vez o vídeo legendado desta canção (com alguns erros de tradução, devidamente corrigidos abaixo) no dia 31 de dezembro de 2018. O vídeo vinha acompanhado do seguinte texto:

Acho que toda mensagem de “Feliz Ano Novo” se resume à ideia contida na letra desta música: tente melhorar sempre e sempre. Se não der, tente de novo no ano que vem. E no outro. E no outro. Uma hora dá certo. Ou não.

Feliz 2019!

Dois anos depois, em 31 de dezembro de 2020 – o grande ano da peste – continuo pensando desta forma. Só que hoje estou bem menos esperançoso.

Feliz 2021! Se você conseguir.

* N. do T.: o verso original é assim: And the lights go out to a silent night. Silent Night é o nome de uma das canções natalinas mais conhecidas em todo o planeta. No Brasil, ela foi conhecida por Noite Feliz. Traduzido literalmente, o verso original ficaria mais ou menos assim: E as luzes se apagam para uma noite silenciosa. Para tentar aproveitar o efeito poético da paráfrase usada pelo compositor, também me vali do título em português da canção, mas invertendo o adjetivo de feliz para infeliz, o que, acredito, não afetou o sentido original pretendido pelo autor da canção).

Para quem quiser conhecer mais do trabalho do The White Buffalo, seguem alguns links interessantes:

O site oficial do artista: https://thewhitebuffalo.com/

O canal oficial do artista no Youtube (no qual, dentre outros materiais, periodicamente ele publica uns vídeos divertidíssimos da série “In the garage”, gravados literalmente na garagem da casa dele): https://thewhitebuffalo.com/

Playlist no Spotify com minhas canções preferidas do artista (não inclui as do último álbum – “On the Widow’s Walk”, pois ainda não o decantei completamente): https://open.spotify.com/playlist/2ItEZZwARmif2nWwl93o5x

Este ano

Outro ano mais velho, ele veio e se foi
O sangue, as lágrimas e o dinheiro gasto
O ano novo veio com o mesmo velho elenco
Nós dançamos e bebemos como se ele fosse o último
Agitando e esperando que a contagem regressiva comece
Em câmara lenta, do dez até o um
Um beijo e os fogos de artifício iluminam o céu
Caindo aos pedaços durante a “Auld Lang Syne”
Vamos nos concentrar nesta noite única
E apenas torcer para que cheguemos em casa vivos

A terra gira, a primavera se precipita
Os dias ficam mais longos, e as noites mais curtas
A mãe acorda um pouco mais radiante do que antes
O gelo derrete e os jardins florescem
O ar fresco e os campos são adoráveis
A grama e os narcisos fazem cócegas em nossos pés
As flores, elas desabrocham e os pássaros, eles cantam
Preenchendo o dia com as melodias que eles produzem
E eu não sinto mais vontade de cantar
As estações mudam, mas eu não mudo em nada
Bem, eu errei, eu acertei
Isso está claro
Talvez eu consiga melhorar
Talvez eu seja diferente
Este ano

Ooh, lá vem o verão, ele vem quente
Sem camisa, nada de escola, dê a ele tudo o que você tem
O sol, ele chama, então vamos para fora
Brindar com nossas bebidas ao sol quente
O asfalto arde nas ruas da cidade
É melhor você se apressar ou irá queimar seus pés
Se atirando na água, espirrando e gritando
Amor e riso o suficiente para um e para todos
Oh, o futuro, o futuro parece promissor
Eu até acho que posso acertar tudo, afinal

Melancólico outono sopra para longe os ventos do verão
As folhas caem das árvores, nunca as verei novamente
Como brasas, elas flutuam pelas ruas
Dourada e vermelha dança que se repete
Bem, agora é fechar as cortinas
Vamos ficar dentro de casa
Sem flores, nem frutos, e os gramados todos morrem
Como pode tudo desmoronar tão rápido?
E por que eu achei que iria durar?
Quando tudo está morrendo, como eu posso me sentir vivo?
Oh, a vida é curta, e todos os dias bons desapareceram
Talvez eu tenha estado perdido
Talvez eu me encontre
Este ano

Bem, o inverno e o frio chegam com a tempestade
Derrubam a porta e seu sangue flui
Os dias são muito curtos e as noites muito longas
Os corais de natal aparecem, eu não consigo cantar junto
Oh, todo o dinheiro se foi, não sei para onde
O natal não é fácil quando você não pode pagar o aluguel
E as luzes se apagam para uma noite infeliz
E tudo o que você pode fazer é persistir na luta
E eu simplesmente não consigo ver o errado
E eu simplesmente não consigo ver o correto
Oh, a vida é dura, eu tenho lutado: um fracasso.
Talvez eu tenha estado perdido
Não acho que eu irei me encontrar
Este ano

Bem, eu errei, eu acertei
Isso está claro.
Mas talvez eu consiga melhorar
Talvez seja diferente
No próximo ano

Trad.: Nelson Santander

The White Buffalo – This Year

Another year older, it came and went
Blood and the tears and the money spent
The new year’s here with the same old cast
We dance and we drink like it may be our last
Buzzin’ waitin’ for the countdown to come
Feels like slow motion from ten to one
A kiss and the fireworks light the sky
Falling apart over Auld Lang Syne
Let’s focus on this night alone
Just hope that we’d make it home alive
The Earth it turns, spring rushes in
Days get longer and nights go thin
Mother wakes up a little brighter than before
Cold melts away and the gardens grow
The air is crisp and fields are sweet
Grass and the daffodils tickling our feet
Flowers they bloom and the birds they sing
Fill up the day with the songs they bring
And I don’t feel much like singing at all
Seasons change but I don’t change at all
Well I’ve done wrong, well I’ve done right, that’s clear
Maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, this year
Ooh, here comes summer, well it’s comin’ in hot
No shirt, no school, give it all you got
The sun, it calls so let’s go outside
Toastin’ our drinks in the warm sunshine
The asphalt smoulders in the city streets
You better run fast or you’re gonna burn your feet
Splashin’ and yellin’ the cannonball
Enough love and laughter for one and all
Oh the future’s, future’s looking bright
I think that I might get it right after all
Moody autumn blows in off a summer wind
Leaves fall off of the trees, never see them again
Like embers they float into the streets
Golden and red dance repeat
Well it’s close of the curtains, let’s stay inside
No flower, no fruit and the lawns all die
Well how could it all fall apart so fast
And why would I think it would ever last?
When everything is dying, well, how can I feel alive?
Oh, life is short, well all good days disappear
Maybe I’ve been lost, maybe I’ll get found, this year
Well the winter and the cold come storming in
Kicks down the door and your blood runs thin
Day’s too short and the night’s too long
Carolers came, I can’t sing along
Oh money’s all gone, don’t know where it went
Christmas ain’t easy when you can’t pay the rent
And the lights go out to a silent night
And all you can do is just stay in the fight
And I just can’t see the wrong, and I just can’t see the right
Oh, life is hard, I’ve been fighting, a failure
Maybe I’ve been lost, don’t think I’ll get found, this year
Well I’ve done wrong, well I’ve done right, that’s clear
But maybe I’ll get better, maybe I’ll be different, next year

Ada Limón – O fim da poesia

Chega de ósseos e pássaro e girassol
e calçados de neve, bordo e brotos, sâmara e sementes,
chega de chiaroscuro, chega de portanto e profecia
e estoicos estancieiros e fé e pai nosso e acima
de todos, chega de parças e peito*, tez e deus
que não esquece e corpos estelares e pássaros congelados,
chega de vontade de prosseguir e de vontade de desistir ou de como
uma certa luz faz a coisa certa, chega
de ajoelhar e de levantar e de olhar
para dentro e para cima, chega de armas,
drama e suicídio de conhecido, a carta há muito
perdida na cômoda, chega do desejo e
do ego e da obliteração do ego, chega
de mãe e filho e pai e filho
e chega de apontar para o mundo, exausta
e desesperada, chega de brutalidade e de fronteiras,
chega de você pode me ver?, você pode me ouvir? chega
de eu sou humana, chega de eu estou sozinha e desesperada,
chega de animal me salvar, chega de faça
chuva**, chega de sofrimento, chega do ar e seu alívio,
estou pedindo que você me toque.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: A expressão “tis of thee” foi retirada da tradicional canção patriótica americana “America (My Country, Tis of Thee)” (algo como “América (O meu país é o teu)”), composta em 1831. Logo na sequência temos o verso “enough of bosom and bud”. Em inglês, “bosom of buddy” significa, literalmente, “amigo do peito”. A alusão a uma canção patriótica seguida de duas palavras que, juntas, formam a expressão “amigo do peito” em um (anti)poema que versa sobre a negativa catártica, em tempos pandêmicos, de tudo o que é exagerado, obtuso, anti-poético e também poético, mas também inalcançável – inclusive a própria linguagem poética, não me pareceu um acaso. Assim, uma das interpretações possíveis desses versos é a de que o poema faz uma menção crítica ao suposto relacionamento secreto e promíscuo entre Trump e Putin. Aqui cabe uma observação. Segundo Gabriel Perissé, “o artista nos educa sem se preocupar com resultados pedagógicos ou técnicas didáticas. O resultado que ele procurava era, fundamentalmente, produzir a obra, levar ao fim o seu plano, por mais vago que estivesse em sua cabeça. Concluída a obra, nada mais poderá fazer. Ainda que deseje, não poderá prever ou alterar as consequências do trabalho pronto e entregue à sensibilidade… ou à falta de sensibilidade dos seus semelhantes. A obra de arte não pertence mais ao artista, no sentido de que será livremente acolhida e interpretada por outras pessoas. O leitor será coautor. (…) Vencendo passividades e inércias, quem se aproxima da obra de arte, torna-se autor de sua interpretação e, de certo modo, recriador da obra (…)”.

Assim, ainda que não seja aquela a melhor interpretação deste trecho do poema, a deixa é convidativa demais para que eu não a aproveite. Assim, optei por traduzir (não sem uma ponta de satisfação) “and tis of thee” por “acima de todos”. Minha versão obviamente faz referência ao conhecido slogan do governo Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Se de fato o poema, nesse trecho, quis fazer uma crítica à promiscuidade entre religião e política que marca o governo conservador de Donald Trump, minha versão faz o mesmo, só que ao governo Bolsonaro que, para além da hipocrisia carola que é uma de suas características mais marcantes, tem o apoio incondicional da chamada Bancada da Bíblia. Tendo optado por tal caminho, não fica difícil intuir porque traduzi o verso seguinte (“enough of bosom and bud”) por “chega de parças e peito”: além de, como ocorre no verso original, tentar emprestar um sentido poético a uma gíria (“bosom of buddy”, em inglês e “parça”, em português), é um fato incontestável que Bolsonaro se julga um grande amigo de Donald Trump (a quem, certa feita, chegou a dirigir um discreto “i love you”). Não sei se a recíproca é verdadeira, mas para Bolsonaro, ele e Trump seriam verdadeiros “parças”, amigões mesmo do peito.

A tradução, portanto, promove o deslocamento do sentido original do poema (sempre na pressuposição de que foi essa a intenção da poeta), que faz referência à parceria Trump-Putin, substituindo o presidente russo pelo brasileiro. Os contextos geopolíticos e a dinâmica desses relacionamentos são evidentemente distintas. Trump parece nutrir por Putin uma admiração que não dispensa ao presidente brasileiro. O relacionamento Trump/Putin é marcado pela simetria e equilíbrio de forças, algo muito distante da sabujice e subserviência de Bolsonaro em relação ao presidente americano. Todavia, a mudança de foco não altera o sentido geral do poema e, com vantagem para o seu entendimento em terras tupiniquins, adapta-o para a nossa realidade. Assim, o mesmo grito de “chega” que o poema parece dirigir a Donald Trump é despejado, em português, em Jair Bolsonaro. Chega mesmo.

** No contexto do poema, a frase “enough of the high water” parece se referir ao ditado americano que diz: “Come Hell Or High Water”. Em português, esse ditado pode ser traduzido por “aconteça o que acontecer” ou pelo popular “faça chuva ou faça sol”, do qual aproveitei a primeira sentença.

The end of poetry

Enough of osseous and chickadee and sunflower
and snowshoes, maple and seeds, samara and shoot,
enough chiaroscuro, enough of thus and prophecy
and the stoic farmer and faith and our father and tis
of thee, enough of bosom and bud, skin and god
not forgetting and star bodies and frozen birds,
enough of the will to go on and not go on or how
a certain light does a certain thing, enough
of the kneeling and the rising and the looking
inward and the looking up, enough of the gun,
the drama, and the acquaintance’s suicide, the long-lost
letter on the dresser, enough of the longing and
the ego and the obliteration of ego, enough
of the mother and the child and the father and the child
and enough of the pointing to the world, weary
and desperate, enough of the brutal and the border,
enough of can you see me, can you hear me, enough
I am human, enough I am alone and I am desperate,
enough of the animal saving me, enough of the high
water, enough sorrow, enough of the air and its ease,
I am asking you to touch me.

Louise Glück – Encruzilhada

Corpo meu, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo,
começo a sentir uma nova ternura por ti, muito crua e pouco familiar,
como a lembrança que tenho do amor quando eu era jovem —

amor que foi tantas vezes tolo em seus objetivos
mas nunca em suas escolhas, suas intensidades
Muito exigido com antecedência para muito que não podia ser prometido —

Minha alma tem sido tão temerosa, tão violenta;
perdoa sua brutalidade.
Como se fosse essa alma, minha mão se move cautelosamente sobre ti,

não querendo ofender
mas ansiosa, definitivamente, por alcançar expressão como substância:

não é da terra que sentirei falta,
é de ti que sentirei falta.

Trad.: Nelson Santander

Crossroads

My body, now that we will not be traveling together much longer
I begin to feel a new tenderness toward you, very raw and unfamiliar,
like what I remember of love when I was young —

love that was so often foolish in its objectives
but never in its choices, its intensities
Too much demanded in advance, too much that could not be promised —

My soul has been so fearful, so violent;
forgive its brutality.
As though it were that soul, my hand moves over you cautiously,

not wishing to give offense
but eager, finally, to achieve expression as substance:

it is not the earth I will miss,
it is you I will miss.

David Mourão-Ferreira – Testamento

Que fique só da minha vida
um monumento de palavras
Mas não de prata Nem de cinza
Antes de lava Antes de nada
Daquele nada que se aviva
quando se arrisca uma viagem
por entre os pântanos da ira
além do sol das barricadas
Ou quando um poço que cintila
parece o tecto de uma sala
Ou quando importa que se extinga
dentro de nós a inexacta
irradiação que vem das criptas
em que o azul nos sobressalta
em que à penumbra se diria
que se acrescenta o som das harpas
Ou quando a terra não expira
senão segredos feitos de água
Ou quando a morte nos avisa
Ou quando a vida nos agarra
Adeus ó pombas
todas iguais ante as muralhas
Adeus veredas invisíveis
que na floresta nos aguardam
Adeus ó barcos à deriva
Adeus canais Adeus guitarras
Adeus ó sílabas da brisa
Adeus sibilas ninfas cabras
tantas que a Deus se prometiam
mas só adeuses encontravam
Adeus ó deusas de partida
no meu minuto de chegada
Adeus ardentes evasivas
a ver se um pouco as demorava
Se as demorava ou demovia
de tão depressa me deixarem
Adeus ó portas clandestinas
que ao fim da tarde se entreabrem
Adeus adeus íntimas vítimas
das cerimónias implacáveis
Como deixar-vos todavia
se as vossas mãos as vossas faces
ora parecem despedir-me
ora conseguem renovar-me
E tantas tantas tantas ilhas
no mar que não nos limitasse
Como deixar-vos se na linha
deste horizonte aquela praia
tão de repente se aproxima
tão de repente se me escapa
Jorram vulcânicas as crinas
de récuas de éguas subaquáticas
Jorram do fundo. E à superfície
crescem as ilhas assombradas
Eis que de longe lembras liras
mas entre as ondas só navalhas
É quando o poeta menos grita
que mais se crê nas suas lágrimas
Fique porém de quanto sinta
um monumento de palavras
Mas não de bronze Nem de argila
E nem de cinza nem de mármore
De fumo sim Do que se infiltra
no coração das velhas máquinas
no estertor dos suicidas
no riso triste dos apátridas
no ondular das gelosias
de onde se espia a madrugada
Do fumo enfim que se eterniza
na longa insónia das estátuas
E que de nós a alma extirpa
não nos deixando nem a máscara
quando é só corpo o que nos fica
para morrer às mãos dos bárbaros
E que nos conta só mentiras
E nos aceita só verdades
Múltiplas ágeis infinitas
sejam as linhas que ele trace
como as que traça a própria vida
sem liberdade em liberdade
Adeus ó fogo Adeus raízes
que todo o fumo alimentavam
E adeus o mel Adeus urtigas
da minha terra calcinada
Adeus cortiço Adeus cortiça
Ó madrugadas inflamáveis
Já se nem sabe a que sevícias
é que por fim a boca sabe
Nem qual a sombra que improvisa
esta sonâmbula sonata
que apazigua que arrepia
que nos destrói que nos exalta
Nem qual o crime inda mais crime
se acaso chega a desvendar-se
Adeus adeus eterna esfinge
Adeus Não penses que me ultrajas
E lembro tudo o que era simples
antes do nada inevitável
Mas que do nada ao menos fique
um monumento de palavras

Giuseppe Ungaretti – Natal

Republicação: “Natal”, um poema de Giuseppe Ungaretti

singularidade - poesia e etc.

Natal

Não tenho vontade
de mergulhar-me
em um novelo
de estradas

Carrego tanto
cansaço
sobre os ombros

Deixai-me assim
como uma

coisa
colocada
em um

canto
e esquecida

Aqui
não se sente
outra presença
que o calor bom

Estou
com as quatro
cabriolas
de fumaça
da lareira.

Trad.: Luigi Lucchesi

Ver o post original

Eugénio de Andrade – Último Poema

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

Philip Larkin – Canções de amor na velhice

Ela guardou canções, tomavam pouco espaço
E as capas lhe eram belas:
Uma que apanhou sol e de matizes baços;
Uma cheia de círculos de jarra d´água;
Uma colada, num “acesso de ordem” dela,
E colorida, pela filha – aguar-
daram assim, até que em sua viuvez as
Achou, procurando algo, e pôs-se dessa vez a

Reaprender como cada acorde, obediente
E franco, introduziu
Palavras se espalhando com hífens, e o alento
Infalível da juventude, a tomar vulto
Como uma árvore na primavera – daí o
Frescor entoado, que jazia oculto,
E a certeza do tempo armazenado, igual
À vez em que as tocou primeiro – e o principal:

O clarão dessa tão falada luz, o amor,
Rompeu, mostrou enfim,
Vogando no alto, o seu nascente resplendor,
Sempre anunciando resolver e saciar,
Pôr as coisas em ordem todo o tempo. Assim,
Empilhá-las de volta ali, chorar,
Foi duro, sem admitir, de forma inglória,
Que nunca fora assim, e não seria agora.

Trad.: Alípio Correia de Franca Neto

Love song in age

She kept her songs, they took so little space,
The covers pleased her:
One bleached from lying in a sunny place,
One marked in circles by a vase of water,
One mended, when a tidy fit had seized her,
And coloured, by her daughter –
So they had waited, till in widowhood
She found them, looking for something else, and stood

Relearning how each frank submissive chord
Had ushered in
Word after sprawling hyphenated word,
And the unfailing sense of being young
Spread out like a spring-woken tree, wherein
That hidden freshness sung,
That certainty of time laid up in store
As when she played them first. But, even more,

The glare of that much-mentioned brilliance, love,
Broke out, to show
Its bright incipience sailing above,
Still promising to solve, and satisfy,
And set unchangeably in order. So
To pile them back, to cry,
Was hard, without lamely admitting how
It had not done so then, and could not now.

Aqui: https://alipiocorreia.wordpress.com/2013/07/16/alguns-poemas-de-philip-larkin-ingles-portugues/

Neil Gaiman – As coletoras de cogumelos

The Mushroom Hunters, by Neil Gaiman

Como você sabe, meu pequeno, a ciência é o estudo
da natureza e do comportamento do universo.
Ela se baseia na observação, na experimentação e na medição,
e na formulação de leis para descrever os fatos revelados.

Nos velhos tempos, dizem, os homens já vinham equipados com cérebros
projetados para seguir cárneas-feras em uma corrida,
para se lançarem cegamente no desconhecido,
e depois encontrarem o caminho de volta para casa mesmo quando perdidos
e tendo que carregar um antílope morto entre eles.
Ou, em dias ruins de caça, nada.

As mulheres, que não precisavam correr até a presa,
tinham cérebros que detectavam marcos e traçavam caminhos entre eles
a partir do espinheiro e através dos cascalhos
e olhavam embaixo do tronco de uma árvore meio caída,
porque às vezes havia cogumelos.

Antes do tacape, ou do cutelo de sílex,
a primeira de todas as ferramentas foi a tipoia de bebê para
manter nossas mãos livres
e algo onde colocar os frutos silvestres e os cogumelos,
as raízes e as folhas boas, as sementes e as lagartas.
Depois, um pilão de pedra para rachar, esmagar, moer ou triturar.

E às vezes os homens caçavam as feras
nas florestas profundas,
e nunca mais voltavam.

Alguns cogumelos irão matá-lo
enquanto outros revelarão deuses para você
e alguns alimentarão a fome em nossas barrigas. Identifique.
Outros nos matarão se os comermos crus,
e ainda nos matarão se os cozinharmos apenas uma vez,
mas se os fervermos em água de nascente, e despejarmos a água,
e fervermos novamente, e despejarmos a água,
só então poderemos come-los com segurança. Observe.

Observe o parto, meça o inchaço das barrigas e o formato dos seios,
e através da experiência descubra como trazer bebês ao mundo com segurança.

Observe tudo.

Como as coletoras de cogumelos percorreram os seus caminhos
e observaram o mundo, e compreenderam o que observaram.
E como algumas delas prosperaram e lamberam os lábios,
enquanto outras apertaram seus estômagos e sucumbiram.
Assim foram elaboradas e transmitidas as leis sobre o que é seguro. Formule.

As ferramentas que fabricamos para edificar nossas vidas:
nossas roupas, nossa comida, nosso caminho para casa…
tudo isso se baseou na observação,
na experimentação, na medição, na verdade.

E a ciência, você se lembra, é o estudo
da natureza e do comportamento do universo,
baseado na observação, no experimento, e medição,
e na formulação de leis para descrever esses fatos.

A corrida continua. Um dos primeiros cientistas
desenhou feras nas paredes das cavernas
para mostrar aos seus filhos, agora todos gordos de cogumelos
e frutos silvestres, o que seria seguro caçar.

Os homens continuam correndo atrás de feras.

As cientistas caminham mais lentamente até o topo da colina,
descem até a beira da água e passam pelo lugar onde corre a argila vermelha.
Elas carregam seus bebês nas tipoias que teceram,
liberando suas mãos para colher os cogumelos.

Trad.: Nelson Santander

The mushroom hunters

Science, as you know, my little one, is the study
of the nature and behaviour of the universe.
It’s based on observation, on experiment, and measurement,
and the formulation of laws to describe the facts revealed.

In the old times, they say, the men came already fitted with brains
designed to follow flesh-beasts at a run,
to hurdle blindly into the unknown,
and then to find their way back home when lost
with a slain antelope to carry between them.
Or, on bad hunting days, nothing.

The women, who did not need to run down prey,
had brains that spotted landmarks and made paths between them
left at the thorn bush and across the scree
and look down in the bole of the half-fallen tree,
because sometimes there are mushrooms.

Before the flint club, or flint butcher’s tools,
The first tool of all was a sling for the baby
to keep our hands free
and something to put the berries and the mushrooms in,
the roots and the good leaves, the seeds and the crawlers.
Then a flint pestle to smash, to crush, to grind or break.

And sometimes men chased the beasts
into the deep woods,
and never came back.

Some mushrooms will kill you,
while some will show you gods
and some will feed the hunger in our bellies. Identify.
Others will kill us if we eat them raw,
and kill us again if we cook them once,
but if we boil them up in spring water, and pour the water away,
and then boil them once more, and pour the water away,
only then can we eat them safely. Observe.

Observe childbirth, measure the swell of bellies and the shape of breasts,
and through experience discover how to bring babies safely into the world.

Observe everything.

And the mushroom hunters walk the ways they walk
and watch the world, and see what they observe.
And some of them would thrive and lick their lips,
While others clutched their stomachs and expired.
So laws are made and handed down on what is safe. Formulate.

The tools we make to build our lives:
our clothes, our food, our path home…
all these things we base on observation,
on experiment, on measurement, on truth.

And science, you remember, is the study
of the nature and behaviour of the universe,
based on observation, experiment, and measurement,
and the formulation of laws to describe these facts.

The race continues. An early scientist
drew beasts upon the walls of caves
to show her children, now all fat on mushrooms
and on berries, what would be safe to hunt.

The men go running on after beasts.

The scientists walk more slowly, over to the brow of the hill
and down to the water’s edge and past the place where the red clay runs.
They are carrying their babies in the slings they made,
freeing their hands to pick the mushrooms.

Joan Margarit – Nada engrandece um velho

Nem essa violência com a qual desejo
ter sempre razão.
Nem tampouco crer que a felicidade
tem uma relação, sutil, com a mentira.
Nem chegar a ter
o coração tão sujo como o meu,
apesar de ter sido a guerra que o sujou.
Minha paz deve ser uma falsa paz.
Tampouco não abjurar a luxúria
e a vaidade.
Como podemos ser vaidosos, os velhos? Essa é a nossa derrota.
Um campo de batalha onde, ao anoitecer,
estou cercado pelos mortos enquanto ouço
vozes distantes de jovens
celebrando o que hoje,
para eles, é ainda a vitória.

Trad.: Nelson Santander

Nada enaltece a un viejo

Ni esa violencia con la que deseo
tener siempre razón.
Ni tampoco creer que la felicidad
tiene una relación, sutil, con la mentira.
Ni llegar a tener
tan sucio el corazón como los míos,
a pesar de que a ellos los ensució la guerra.
Mi paz debe ser una paz falsa.
Tampoco no abjurar de la lujuria
ni de la vanidad.
¿Cómo podemos ser vanidosos, los viejos? Esa es nuestra derrota.
Un campo de batalla donde, al oscurecer,
me rodean los muertos mientras oigo
lejanas voces de gente joven
celebrando lo que hoy,
para ellos, es aún la victoria.

Javier Salvago – Variações sobre um velho tema

Os violinos de Verlaine.
Os sonhados caminhos da tarde, de don Antonio.*
Um velho cheiro de campo.
Um velho cheiro de lápis e cadernos.
O céu cinzento.
O vento entre as árvores.
A carícia das primeiras chuvas.
A tristeza sem causa.
A solidão sonora.
A noite, cada vez mais escura e prolongada.
Um cigarro que, subitamente, tem o sabor do primeiro cigarro.
Uma velha canção que te devolve os teus quinze anos.
Toda tua vida em imagens, que surgem atropeladamente como
em um filme mal editado…

É chegado o outono.

Trad.: Nelson Santander

*N. do T.: o poeta se refere ao famoso poema “Chanson D’Automne”, de Verlaine (https://singularidadepoetica.art/2019/04/02/paul-verlaine-chanson-dautomne-em-seis-traducoes/ ) e ao  poema “Yo voy soñando caminos”, do poeta espanhol Antonio Machado (Sevilla, 26/07/1875 – Colliure, 22/02/1939), que pode ser acessado nesse link: https://albalearning.com/audiolibros/machado/yovoysonando.html 

Variaciones sobre un viejo tópico

Los violines de Verlaine.
Los soñados caminos de la tarde, de don Antonio.
Un viejo olor a campo.
Un viejo olor a lápices y a cuadernos.
El cielo gris.
El viento entre los árboles.
La caricia de las primeras lluvias.
La tristeza sin causa.
La soledad sonora.
La noche, cada vez más oscura y más larga.
Un cigarrillo que de pronto te sabe al primer cigarrillo.
Una antigua canción que te devuelve tus quince años.
Toda tu vida en imágenes, que acuden atropelladamente como
en una película mal montada…

Ha llegado el otoño.