Gonçalo M. Tavares – uma síntese disto tudo

é porque existe o desejo, o olfato, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
– os que nos vão sobrevive no tempo –
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhamos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no ato de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

Aqui: http://encontradordebelezas.blogspot.com/2011/03/uma-sintese-disto-tudo-salvacao-e.html

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/05/2019. Toda vez que leio este poema, lembro-me da hoje célebre frase de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”

Gonçalo M. Tavares – Do “Diário da Peste”, 27/04/2020

Passados sete anos, duas semanas ou dois meses.
Sairá à rua uma nova espécie humana.
Cheia de vontade de construção; cheia de vontade de destruição.
Humanos 2.0.
Dois médicos beijam-se em Madrid com a máscara posta.
Os amantes, quadro de René Magritte: uma mulher e um homem beijam-se com um pano na cabeça.
A mãe de Magritte suicidou-se quando ele era adolescente.
Foi recolhida do rio com uma camisa à volta da cabeça.
Magritte estava lá, diz-se.
A camisa à volta da cabeça para ficar anónima.
Ou foi ela própria que a pôs – ou alguém para evitar que o filho a visse.
O café feito com o ritual de sempre.
Esqueço-me do final de um longo café como se até o final de uma bebida fosse terrível.
Medo do apocalipse que entra no mais mínimo dos actos.
Evitar o final das coisas.
Não bebo o final do café; falo com um amigo em Nápoles.
Ele diz-me: não bebas o final do café.
Régina, a mãe, matou-se no rio Sambre.
É difícil ter a certeza se seria uma camisa ou o vestido.
Boris Johnson regressa ao escritório na 2ª feira e na Air France dizem que a normalidade vai demorar dois anos a voltar.
Doentes com cancro adiam consultas.
Imagino que alguém interrompe a emissão da Bolsa para rezar o Pai Nosso.
Um hacker crente; exige seis Pais-Nossos e três Ave-Marias do apresentador para libertar a emissão.
O hacker está fora do século.
Não tem os mesmos deuses. Nada de dinheiro.
Exige orações.
Um historiador, Friedrich von Raumer, maravilhado com Paris do início século XX: “quem terá construído a primeira casa, quando ruirá a última”?
Talvez não exista primeira nem última.
Imagino o hacker a interromper a emissão.
A mãe pesa mais do que a força que a água faz.
Uma frase também repetida em tom de oração.
O rio faz tudo o que pode para que alguém não se afogue nele.
Mas não consegue.
O filme do coreano Lee Chang-Dong, “Poesia”.
A avó que está a ficar com Alzheimer quer escrever um poema.
Aprender poesia antes de perder a memória.
Perder memória por outro caminho.
“Para onde estás a olhar?
Para a árvore.”
O que vais fazer hoje?
Olhar para a árvore.
Tarde ocupada, olhar para: buganvília, limoeiro ou laranjeira de laranjas intragáveis.
Na cabeça, o quadro de Magritte.
Guimarães Rosa: “Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem”.
É um escritor russo que conta a história.
Alguém leva uma pedra para espancar o mar porque a filha se afogou ali.
É difícil uma pedra espancar o mar, mas os pais conseguem coisas que os outros humanos não.
Não terminar o dia com uma pedra.
Abro ao acaso Folhas do Jardim de Morya, o oráculo que escolhi.
Mas o sino convocará cada caminhante perdido dentro da floresta.
Gosto do começo: Mas.
Mas o sino convocará cada caminhante perdido dentro da floresta.
Quando de novo sairmos à rua que um sino qualquer exista.
Um sino para cada caminhante.

“Diário da Peste”, 27/04/2020 – Gonçalo M. Tavares

Aqui: https://expresso.pt/opiniao/2020-04-27-Diario-da-Peste.-Saira-a-rua-uma-nova-especie-humana

Gonçalo M. Tavares – Sobre o mundo

O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exata de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
excessivo. Monumentos que ocupam
quilômetros quadrados são explicados por uma equação de
dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
as equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
constrói uma torre de observação no centro
do mar. As águas não se bebem
por inteiro, e nem toda a água é doméstica. O mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
não existem; os cientistas
colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
do Mundo. Felizmente, fomos salvos
pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
e mesmo assim crescem; têm células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
de grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
de descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
alto que um banco de cozinha. O mundo
não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.

Gonçalo M. Tavares – O idiota

Os irmãos com saúde,
os meus pais vivos,
um pouco deprimidos, mas lúcidos e vivos.
Uma mulher que me espera à porta, e sorri,
um bebê com um ano e meio, uma rapariga,
      vem aí outra;
quando regresso a minha mulher recebe-me a sorrir
   com uma barriga grande.
  Um café, outro,
o caderno preto à minha frente, o tempo,
nada para fazer a não ser por dentro,
        os sentimentos tranquilos.
O estômago calmo: tenho mais dinheiro que fome
     (é sempre um equilíbrio entre dois pesos).
Os empregados de um lado para outro,
       a atender à sede dos outros, aos caprichos.
Ao meu lado direito um vidro: vejo os vivos
em passo apressado
    a cumprimentarem-se;
as ações urgentes, obrigatórias (as que eu esqueci).
       Que fazer?
  Como aproveitar o esconderijo?
Esconde-te, que o exterior não te descubra: só sabe dar ordens.
E como aproveita o homem escondido a dádiva do esconderijo?
Escreve, o idiota.

Gonçalo M. Tavares – uma síntese disto tudo

é porque existe o desejo, o olfato, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
– os que nos vão sobrevive no tempo –
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhamos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no ato de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

Aqui: http://encontradordebelezas.blogspot.com/2011/03/uma-sintese-disto-tudo-salvacao-e.html

Gonçalo M. Tavares – Palavras, Atos

A ironia ensina a sabotar uma frase
Como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
No verbo ou numa letra do substantivo
A frase trágica torna-se divertida,
E a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Gonçalo M. Tavares – Os Mortos

Não há mortos que morram tanto como os nossos.
Se um daqueles que nos pertence morre sete
ou setenta vezes no coração,
de quem apenas ouvimos falar morre uma vez, na sua data,
e os que sempre viveram longe
morrem-nos metade ou um oitavo. E metade
de uma morte é quase nada, são casas
decimais no sofrimento. (Que digo? Milésimas, milésimas!)