Kenneth Rexroth – Música de Alaúde

A Terra vai durar por muito tempo
Antes de finalmente congelar;
Os homens nela estarão; receberão nomes,
Justificarão seus atos.
Já nós estaremos aqui somente
Como componentes químicos —
Na verdade, uma pequena franquia.
Agora ainda temos uma vida,
Corpúsculos, ambições, carícias,
Como todos já tiveram um dia —
Todas as pessoas brilhantes, as neige d’antan1,
“Blithe Helen, white Iope, and the rest,”2
Todos os inquietos e memoráveis mortos.

Aqui, neste final de ano, nas festividades
Do nascimento, ofertemos uns aos outros
As dádivas outrora trazidas para o oeste através de desertos —
O precioso metal de nossos cabelos misturados,
O incenso de braços e pernas arrebatados,
A mirra de beijos invencíveis, desesperados —
Celebremos a Natividade
Diária e recorrente do amor,
A inesgotável epifania de nossos fluentes eus,
Enquanto a terra gira sob nós
Em neves e verões desconhecidos,
Nos inexplorados espaços entre as estrelas.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

1. alusão aos famosos versos do poema Ballade des dames du temps jadis, de François Villon (Paris, 01/04/1431 – França, 1463), um dos clássicos do Ubi sunt?: “(…) Mais où sont les neiges d’antan? / Prince, n’enquerez de sepmaine / Où elles sont, ne de cest an, / Qu’à ce reffrain ne vous remaine: / Mais où sont les neiges d’antan?” – Na Wikipedia, os versos estão assim traduzidos: “(…) Mas onde estão as neves de antanho! / Príncipe, não pergunteis na semana / Onde elas estão, nem neste ano, / Para que não leveis de volta este refrão: / Mas onde estão as neves de antanho!”

2. A referência aqui é a um dos versos do fantástico poema Vobiscum Est Iope (também conhecida por When thou must home), de Thomas Campion. Campion (Londres, 12/02/1567 – Londres, 01/03/1620) foi um compositor, poeta e médico inglês conhecido como um dos mais prolíficos compositores de músicas para alaúde, tendo escrito mais de cem canções para esse instrumento. No poema, Helen é, obviamente, Helena de Troia, associada poeticamente à morte e à destruição; já a “Iope Branca”, segundo esse estudo, seria Calíope, a musa da poesia épica. Segue abaixo a íntegra do poema e sua respectiva tradução (por Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes, na obra A imaginação educada, da Vide Editorial):

Vobiscum Est Iope

When thou must home to shades of underground,
And there arrived, a new admirèd guest,
The beauteous spirits do engirt thee round,
White Iope, blithe Helen, and the rest,
To hear the stories of thy finished love
From that smooth tongue whose music hell can move;

Then wilt thou speak of banqueting delights,
Of masques and revels which sweet youth did make,
Of tourneys and great challenges of knights,
And all these triumphs for thy beauty’s sake:
When thou hast told these honours done to thee,
Then tell, O tell, how thou didst murder me!

A tradução:

Quando no Hades fizeres morada,
Nova hóspede que causa impressão,
Por formosos espíritos cercada,
Divas aos montes prestando atenção
Na história do teu acabado amor,
Na voz que até ao Inferno causa ardor,

Falarás de banquetes suntuosos,
Grandes festas e bailes mascarados,
Duelos de cavaleiros valorosos,
Triunfos em teu nome conquistados.
Contadas as honras que granjeaste,
Conta, oh! conta como me mataste.

Lute music

The Earth will be going on a long time
Before it finally freezes;
Men will be on it; they will take names,
Give their deeds reasons.
We will be here only
As chemical constituents —
A small franchise indeed.
Right now we have lives,
Corpuscles, ambitions, caresses,
Like everybody had once —
All the bright neige d’antan people,
“Blithe Helen, white Iope, and the rest,”
All the uneasy, remembered dead.

Here at the year’s end, at the feast
Of birth, let us bring to each other
The gifts brought once west through deserts —
The precious metal of our mingled hair,
The frankincense of enraptured arms and legs,
The myrrh of desperate, invincible kisses —
Let us celebrate the daily
Recurrent nativity of love,
The endless epiphany of our fluent selves,
While the earth rolls away under us
Into unknown snows and summers,
Into untraveled spaces of the stars.

Giacomo Leopardi – A Noite do Dia de Festa

Noite sem vento, doce, clara. A lua
Flutua sobre tetos e pomares,
Serena, revelando ao longe, os montes.
As ruas e caminhos silenciam,
Minha amada. Pelos balcões, são raros
Os lampiões, um sono suave invade
Os aposentos, você dorme, nada
Perturba o seu repouso, muito menos
A chaga que me abriu dentro do peito!
Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno
– E à antiga natureza onipotente
Que me volta à aflição – dirijo os olhos.
“Para você, nem mesmo uma esperança;
Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”,
Ela me disse. Mas que dia magnífico!
Dormem danças e jogos, mas, em sonho,
Talvez para você desfilem todos
De quem gostou ou aos quais agradou
(Menos eu, que nesse rol não compareço).
Mas se calculo os dias que me restam,
Vejo-me aos gritos, a rolar na terra:
Que vida horrível numa vida jovem!
Vai pela rua o canto solitário
De quem já trabalhou, passou na tasca,
E volta tarde para a casa pobre.
Vai-me apertando, amargo, o coração,
Se penso em como tudo passa e passa,
Quase sem deixar rastro. Já se foi
O dia de festa, e agora chega o dia
Normal, e tudo se escoa no tempo,
Todos os atos humanos. E o estrondo
Dos antigos, as vozes dos heróis
De ontem, onde estão? e o grande império,
E as armas e o fragor que faz tremer
Os caminhos da terra e do oceano?
Tudo é paz e silêncio. O mundo
Tudo aquieta. Já não se pensa em nada.
Quando criança, vinha a espera ansiosa
Do dia de festa, que findava logo.
Sofrendo, comprimia o travesseiro,
Ao ouvir pela noite aquele canto
Que ia morrendo aos poucos, lentamente,
Morrendo e me apertando o coração.

Trad.: Décio Pignatari

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/11/2017

La Sera Del Dì Di Festa

Dolce e chiara è la notte e senza vento,
E queta sovra i tetti e in mezzo agli orti
Posa la luna, e di lontan rivela
Serena ogni montagna. O donna mia,
Già tace ogni sentiero, e pei balconi
Rara traluce la notturna lampa:
Tu dormi, che t’accolse agevol sonno
Nelle tue chete stanze; e non ti morde
Cura nessuna; e già non sai nè pensi
Quanta piaga m’apristi in mezzo al petto.
Tu dormi: io questo ciel, che sì benigno
Appare in vista, a salutar m’affaccio,
E l’antica natura onnipossente,
Che mi fece all’affanno. A te la speme
Nego, mi disse, anche la speme; e d’altro
Non brillin gli occhi tuoi se non di pianto.
Questo dì fu solenne: or da’ trastulli
Prendi riposo; e forse ti rimembra
In sogno a quanti oggi piacesti, e quanti
Piacquero a te: non io, non già, ch’io speri,
Al pensier ti ricorro. Intanto io chieggo
Quanto a viver mi resti, e qui per terra
Mi getto, e grido, e fremo. Oh giorni orrendi
In così verde etate! Ahi, per la via
Odo non lunge il solitario canto
Dell’artigian, che riede a tarda notte,
Dopo i sollazzi, al suo povero ostello;
E fieramente mi si stringe il core,
A pensar come tutto al mondo passa,
E quasi orma non lascia. Ecco è fuggito
Il dì festivo, ed al festivo il giorno
Volgar succede, e se ne porta il tempo
Ogni umano accidente. Or dov’è il suono
Di que’ popoli antichi? or dov’è il grido
De’ nostri avi famosi, e il grande impero
Di quella Roma, e l’armi, e il fragorio
Che n’andò per la terra e l’oceano?
Tutto è pace e silenzio, e tutto posa
Il mondo, e più di lor non si ragiona.
Nella mia prima età, quando s’aspetta
Bramosamente il dì festivo, or poscia
Ch’egli era spento, io doloroso, in veglia,
Premea le piume; ed alla tarda notte
Un canto che s’udia per li sentieri
Lontanando morire a poco a poco,
Già similmente mi stringeva il core.

Manuel Bandeira – Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Luis Alberto de Cuenca – Quando Penso nos Velhos Amigos

Quando penso nos velhos amigos que saíram
de minha vida, unindo-se a más mulheres
que alimentam seu medo e os enchem de filhos
para tê-los por perto, controlados e inermes.

Quando penso nos velhos amigos que se foram
para o país da morte, sem passagem de volta,
só porque procuraram o deleite nos corpos
e o olvido nas drogas que abrandam a tristeza.

Quando penso nos velhos amigos que, no fundo
das águas da memória, me ofertaram um dia
a estranha sensação de não me sentir só
e a cumplicidade de um sorriso sincero…

Trad.: Nelson Santander
 

Luis Alberto de Cuenca – Cuando pienso en los viejos amigos

Cuando pienso en los viejos amigos que se han ido
de mi vida, pactando con terribles mujeres
que alimentan su miedo y los cubren de hijos
para tenerlos cerca, controlados e inermes.

Cuando pienso en los viejos amigos que se fueron
al país de la muerte, sin billete de vuelta,
sólo porque buscaron el placer en los cuerpos
y el olvido en las drogas que alivian la tristeza.

Cuando pienso en los viejos amigos que, en el fondo
del mar de la memoria, me ofrecieron un día
la extraña sensación de no sentirme solo
y la complicidad de una franca sonrisa…

Giacomo Leopardi – A Noite do Dia de Festa

Noite sem vento, doce, clara. A lua
Flutua sobre tetos e pomares,
Serena, revelando ao longe, os montes.
As ruas e caminhos silenciam,
Minha amada. Pelos balcões, são raros
Os lampiões, um sono suave invade
Os aposentos, você dorme, nada
Perturba o seu repouso, muito menos
A chaga que me abriu dentro do peito!
Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno
– E à antiga natureza onipotente
Que me volta à aflição – dirijo os olhos.
“Para você, nem mesmo uma esperança;
Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”,
Ela me disse. Mas que dia magnífico!
Dormem danças e jogos, mas, em sonho,
Talvez para você desfilem todos
De quem gostou ou aos quais agradou
(Menos eu, que nesse rol não compareço).
Mas se calculo os dias que me restam,
Vejo-me aos gritos, a rolar na terra:
Que vida horrível numa vida jovem!
Vai pela rua o canto solitário
De quem já trabalhou, passou na tasca,
E volta tarde para a casa pobre.
Vai-me apertando, amargo, o coração,
Se penso em como tudo passa e passa,
Quase sem deixar rastro. Já se foi
O dia de festa, e agora chega o dia
Normal, e tudo se escoa no tempo,
Todos os atos humanos. E o estrondo
Dos antigos, as vozes dos heróis
De ontem, onde estão? e o grande império,
E as armas e o fragor que faz tremer
Os caminhos da terra e do oceano?
Tudo é paz e silêncio. O mundo
Tudo aquieta. Já não se pensa em nada.
Quando criança, vinha a espera ansiosa
Do dia de festa, que findava logo.
Sofrendo, comprimia o travesseiro,
Ao ouvir pela noite aquele canto
Que ia morrendo aos poucos, lentamente,
Morrendo e me apertando o coração.

Trad.: Décio Pignatari

Manuel Bandeira – Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.