Gonçalo M. Tavares – uma síntese disto tudo

é porque existe o desejo, o olfato, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos,
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável

E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
– os que nos vão sobrevive no tempo –
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir do obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, de um mapa,
fragmento que possa reconstruir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos
assim, de uma vez, porque o comíamos

Porque mais tarde crescemos e ganhamos
dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar,
de que não sabemos falar.

E é preciso isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.

E é por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no ato de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos.

Aqui: http://encontradordebelezas.blogspot.com/2011/03/uma-sintese-disto-tudo-salvacao-e.html

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/05/2019. Toda vez que leio este poema, lembro-me da hoje célebre frase de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”

Amadeu Baptista – Sentido

Deixou de fazer sentido voltar
Para casa para comer sozinho,
Para dormir sozinho, para viver
Sozinho. Nenhum cão me espera,

Nenhuma jarra onde tenhas posto
Um ramo de rosas amarelas,
Um lenço perfumado, uma almofada
Em que tenham ficado as tuas marcas

De sono agitado. Deixou de fazer
Sentido ter em frente este horizonte
De pedras que o mar já não contém,

Este tecido de espuma a desfazer-se.
O que aqui ardia já não arde
E a noite é sempre longa e mutilada.

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Ian Hamilton – Última Valsa

De onde estamos quase conseguimos identificar
Os rostos destas pessoas que não conhecemos:
Um semi-círculo sombreado
Ao redor do enorme aparelho de TV doado
Que domina nossa ala.

A ‘Última Valsa’ espalha-se sobre eles
Iluminando
Amistosos, exaustos sorrisos. E nós,
Como se nos importássemos, também sorrimos.

Para cada alma perdida, nesta hora tardia,
Um sedado espasmo de felicidade.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/05/2019

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Last Waltz

From where we sit, we can just about identify
The faces of these people we don’t know:
A shadowed semi-circle
Ranged around the huge, donated television set
That dominates the ward.

The ‘Last Waltz’ floods over them
Illuminating
Fond, exhausted smiles. And we,
As if we cared, are smiling too.

To each lost soul, at this late hour
A medicated pang of happiness.

Laura Gilpin – Canção Noturna

E quando ela
acordou de repente
no quarto vazio
gritando mãe, mãe,

a lua, observando
à distância, ergueu-se
sobre a sua cama
e lá permaneceu,
até que ela
adormecesse.

Trad.: Nelson Santander

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Night Song

And when she
woke suddenly
in the empty room
crying mother, mother,

the moon, watching
at a distance, rose
over her bed
and stayed there
until she was
asleep.

Raymond Carver – Fragmento final

E você teve o que queria
desta vida, apesar de tudo?
Tive.
E o que você queria?
Dizer que fui amado, me sentir
amado sobre a terra.*

Trad.: Cide Piquet

* N. do T.: “Late Fragment” foi publicado no último livro de poesia de Carver, intitulado “A New Path to the Waterfall”, que foi lançado postumamente em 1989. O poema é breve, mas impactante, e muitas vezes é considerado como uma reflexão sobre a vida e a mortalidade. O contexto em que foi escrito envolve a batalha do autor contra o câncer de pulmão, que eventualmente tirou sua vida em 1988. “Late Fragment” foi um dos últimos poemas que Carver escreveu antes de sua morte, e essa proximidade com sua própria mortalidade acrescenta uma profundidade emocional e uma sensação de urgência ao poema.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no site originalmente em 13/05/2019

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Raymond Carver – Late Fragment

And did you get what
you wanted from this life, even so?
I did.
And what did you want?
To call myself beloved, to feel myself
beloved on the earth.

Timothy Joshua – A distância

Você está tão distante, 
que meu sol se tornou sua lua.
E como estrelas continuam a roubar nossa luz,
não posso deixar de me perguntar se os céus que
compartilhamos ainda são os mesmos.

Trad.: Nelson Santander

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Long distance

You are so far away,
that my sun has become your moon.
And as stars continue to steal our light,
I cannot help but wonder if the skies that we
share are still the same.

Joan Margarit – Monumentos

O vazio que sentes, cada vez com mais força,
é o dos traidores.
Também os monumentos, por dentro, são vazios,
com as entranhas cheias de ferrugem e de morte:
escuros e corroídos pela história,
é tão sinistro seu interior
como arrogante o gesto que no ar
desenha a personagem.
À medida que os amigos nos traem
– e a morte é também uma traição –
nos vamos convertendo em monumentos.
Por fora, ainda resta um resquício de eloquência,
sobretudo ao falar com alguém jovem,
mas a voz ressoa no vazio,
perdida entre os vergalhões de uma oculta estrutura
que se desgasta em finas camadas de ferrugem.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/05/2019

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Joan Margarit – Monumentos

El vacío que sientes cada vez con más fuerza
es el de los traidores.
También los monumentos, por dentro, están vacíos,
con las entrañas llenas de óxido y de muerte:
oscuros y podridos por la historia,
es tan siniestro su interior
como arrogante el gesto que en el aire
dibuja el personaje.
Según van traicionando los amigos
—y la muerte es también una traición—
nos vamos convirtiendo en monumentos.
Por fuera queda un resto de elocuencia,
sobre todo al hablar con alguien joven,
pero la voz resuena en el vacío,
perdida entre los hierros de un oculto entramado
que se deshoja en leves capas de óxido.

Sharon Olds – Poema tardio para meu pai

De repente, você me veio à mente
como uma criança naquela casa, os cômodos escuros
e a lareira acesa com o homem diante dela,
silente. Você se movia pelo ar pesado
em sua beleza física, um menino de sete anos,
indefeso, esperto, havia coisas que o homem
fazia perto de você, e ele era seu pai,
o molde que o formou. Lá embaixo, no
porão, os barris de maçãs doces,
colhidas no topo da árvore, apodreciam e
apodreciam, e além da porta do porão
o riacho fluía e fluía, e algo não
foi dado a você, ou algo com que
você nasceu lhe foi tirado, de modo que
mesmo aos 30 e 40 anos você aplicava o
remédio oleoso nos lábios
todas as noites, a poção para ajuda-lo
a cair inconsciente. Sempre pensei que o
problema era o que você fez conosco
quando adulto, mas então me lembrei daquela
criança sendo formada diante do fogo, dos
ossos delicados dentro de sua alma,
quebrados como ramos verdes, os pequenos
tendões que mantêm o coração no lugar
rompidos. E o que fizeram com você,
você não fez comigo. Quando o amo agora,
gosto de pensar que estou dando meu amor
diretamente àquele menino na sala escaldante,
como se pudesse alcançá-lo a tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Late Poem to My Father

Suddenly I thought of you
as a child in that house, the unlit rooms
and the hot fireplace with the man in front of it,
silent. You moved through the heavy air
in your physical beauty, a boy of seven,
helpless, smart, there were things the man
did near you, and he was your father,
the mold by which you were made. Down in the
cellar, the barrels of sweet apples,
picked at their peak from the tree, rotted and
rotted, and past the cellar door
the creek ran and ran, and something was
not given to you, or something was
taken from you that you were born with, so that
even at 30 and 40 you set the
oily medicine to your lips
every night, the poison to help you
drop down unconscious. I always thought the
point was what you did to us
as a grown man, but then I remembered that
child being formed in front of the fire, the
tiny bones inside his soul
twisted in greenstick fractures, the small
tendons that hold the heart in place
snapped. And what they did to you
you did not do to me. When I love you now,
I like to think I am giving my love
drectly to that boy in the fiery room,
as if it could reach him in time.

Ian Hamilton – Lamento

Fiz o que pude. Meus garotos correm soltos agora.
Eles buscam oportunidades enquanto a mãe deles apodrece aqui.
E rua acima, o homem,
Meu único homem, que me tocou em todos os lugares,
Desmancha-se sob a terra.

Sou triste, obtusa, velha e alienada.
À noite, sinto minhas mãos vagando sobre mim,
Sondando meus seios, meus joelhos,
As dobras do meu ventre,
Vez ou outra pressionando e às vezes,
Em sua fome, dilacerando-me.
Vivo só.

Meus garotos correm, deixando a mãe deles como se fosse um calhau
Rolando no recreio depois que tocou o sinal.
Acumulo poeira e quase desejo a sepultura.
Ter bichinhos habitando em mim já seria algo.
Mas aqui, aos oito novamente, observo os brotos desabrochando
Além deste quintal.
Eu sei como me comportar.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/05/2019

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Complaint

I’ve done what i could. My boys run wild now.
They seek their chances while their mother rots here.
And up the road, the man,
My one man, who touched me everywhere,
Falls to bits under the ground.

I am dumpy, obtuse, old and out of it.
At night, i can feel my hands prowl over me,
Lightly probing at my breasts, my knees,
The folds of my belly,
Now and then pressing and sometimes,
In their hunger, tearing me.
I live alone.

My boys run, leaving their mother as they would a stone
That rolls on in the playground after the bell has gone.
I gather dust and i could almost love the grave.
To have small beasts room in me would be something.
But here, at eight again, i watch the blossoms break
Beyond this gravel yard.
I know how to behave.

Ross Gay – Homem tenta cometer suicídio com uma besta

For Thomas Lux

E fracassa. Primeiro, imagine a arma
apontada para o céu, logo abaixo do queixo. Após o rápido
clique do gatilho, o seguinte: o que, para esse
não-morto, deve ter soado como o estratosférico estrondo de um foguete,
o que significa dizer que a seta
coroou sua copa (ou seja, fixou-se). Nesse ponto, com a cabeça
agora espetada, o tal não-morto conseguiu
o discernimento necessário para desrosquear a haste
do pequeno projétil alojado e removê-lo. E ir
andando até o pronto-socorro.
Gosto de pensar
que a graça assume formas estranhas: o alívio
da seta para o uivo dos neurônios.
Pensar nessa caminhada sob a noite aveludada.
Acompanhe-me. Não pense
em dor de cabeça. Em vez disso,
pense: a ancestral luz das estrelas aquecendo
seu chifre recém-brotado.

Trad.: Nelson Santander

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Man Tries to Commit Suicide With a Crossbow

For Thomas Lux

And fails. First, imagine the weapon
pointing heavenward beneath his chin. After the trigger’s
quick tick, the following: what, for said
undead, must have sounded like a rocket’s stratospheric crash,
which is to say the arrow just
crested the crown (i.e. it got stuck). At which point, the head
now a kebob, said undead had
the wherewithal to unscrew the skewer
from the little lodged missile and pull it out. To walk
to the emergency room.
I love to think
grace takes strange shapes: the arrow
balm to the howl of neurons.
To think of that walk beneath the velvet night.
Stay with me. Don’t think
headache. Think
instead: the stars’ ancient light warming
his just budding horn.