Suzanne Buffam – Basta

Estou usando óculos escuros dentro de casa
Para combinar com meu baixo astral.

Eu deixei todo o açúcar de fora da torta.
Minha raiva é uma espécie de raiva doméstica.

Aprendi com minha mãe
Que aprendeu com a mãe dela antes dela

E assim por diante.
Certamente os gregos tinham uma palavra para isso.

E hoje com certeza os alemães a têm.
Quanto mais palavras uma pessoa conhece

Para descrever suas dores privadas
Mais vagamente ela consegue compreende-las.

Repito os nomes de todas as cidades que conheci
E observo uma formiga arrastar sua sombra distorcida para casa.

O que significa amar a vida que nos foi dada?
Representar bem o papel para o qual fomos escalados?

Vento. Luz. Fogo. Tempo.
Um trem apita através das colinas distantes.

Um dia eu pretendo galgá-lo.

Trad.: Nelson Santander

Enough

I am wearing dark glasses inside the house
To match my dark mood.

I have left all the sugar out of the pie.
My rage is a kind of domestic rage.

I learned it from my mother
Who learned it from her mother before her

And so on.
Surely the Greeks had a word for this.

Now surely the Germans do.
The more words a person knows

To describe her private sufferings
The more distantly she can perceive them.

I repeat the names of all the cities I’ve known
And watch an ant drag its crooked shadow home.

What does it mean to love the life we’ve been given?
To act well the part that’s been cast for us?

Wind. Light. Fire. Time.
A train whistles through the far hills.

One day I plan to be riding it.

T. S. Eliot – Os Homens Ocos

     “A penny for the Old Guy”
     (Um pêni para o Velho Guy)

I
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Forma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

– Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

Trad.: Ivan Junqueira

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/04/2017

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The hollow men

Mistah Kurtz-he dead
            A penny for the Old Guy

                        I

    We are the hollow men
    We are the stuffed men
    Leaning together
    Headpiece filled with straw. Alas!
    Our dried voices, when
    We whisper together
    Are quiet and meaningless
    As wind in dry grass
    Or rats’ feet over broken glass
    In our dry cellar

    Shape without form, shade without colour,
    Paralysed force, gesture without motion;

    Those who have crossed
    With direct eyes, to death’s other Kingdom
    Remember us-if at all-not as lost
    Violent souls, but only
    As the hollow men
    The stuffed men.

                              II

    Eyes I dare not meet in dreams
    In death’s dream kingdom
    These do not appear:
    There, the eyes are
    Sunlight on a broken column
    There, is a tree swinging
    And voices are
    In the wind’s singing
    More distant and more solemn
    Than a fading star.

    Let me be no nearer
    In death’s dream kingdom
    Let me also wear
    Such deliberate disguises
    Rat’s coat, crowskin, crossed staves
    In a field
    Behaving as the wind behaves
    No nearer-

    Not that final meeting
    In the twilight kingdom

                    III

    This is the dead land
    This is cactus land
    Here the stone images
    Are raised, here they receive
    The supplication of a dead man’s hand
    Under the twinkle of a fading star.

    Is it like this
    In death’s other kingdom
    Waking alone
    At the hour when we are
    Trembling with tenderness
    Lips that would kiss
    Form prayers to broken stone.

                      IV

    The eyes are not here
    There are no eyes here
    In this valley of dying stars
    In this hollow valley
    This broken jaw of our lost kingdoms

    In this last of meeting places
    We grope together
    And avoid speech
    Gathered on this beach of the tumid river

    Sightless, unless
    The eyes reappear
    As the perpetual star
    Multifoliate rose
    Of death’s twilight kingdom
    The hope only
    Of empty men.

                            V

 Here we go round the prickly pear
    Prickly pear prickly pear
    Here we go round the prickly pear
    At five o’clock in the morning.


    Between the idea
    And the reality
    Between the motion
    And the act
    Falls the Shadow
 For Thine is the Kingdom

    Between the conception
    And the creation
    Between the emotion
    And the response
    Falls the Shadow
 Life is very long

    Between the desire
    And the spasm
    Between the potency
    And the existence
    Between the essence
    And the descent
    Falls the Shadow
 For Thine is the Kingdom

    For Thine is
    Life is
    For Thine is the

 This is the way the world ends
    This is the way the world ends
    This is the way the world ends
    Not with a bang but a whimper.

Gregory Fraser – Depois do fogo

Ouvi dizer que você estava indo para a Itália, ele disse1. Você ouviu certo, ela respondeu.
Você finalmente conseguiu, disse ele, estou feliz por você. Estou feliz por mim mesma, ela falou.
Uma das sonatas de Scarlatti jorrou através das amplas portas francesas
e um brinde foi feito aos anfitriões, que anunciaram terem sido
convocados pelos espíritos para dar aquele pequeno sarau.

Algumas vezes, ele disse, eu me sinto assim, não sei — vazio — quando penso em nós,
como uma luva, ele disse, em uma mão sem dedos. Engraçado, ela disse,
às vezes eu me sinto como a mão. O vento se moveu como uma memória
através de um bosque de pinheiros, e então, como se um grande guarda-chuva
se abrisse, fez-se noite. Ele olhou distraidamente para além da varanda

e pensou nos dias que se seguiram à partida dela, longos,
uniformes e vazios, como lajes de pavimentação. Você sente a minha falta? perguntou.
Você sente a minha falta? ela respondeu. Sinto falta de quem eu era com você, ele disse.
Seu rosto era uma carta rasgada em pedaços e colada com fita adesiva. Ela tremeu
como o filamento dentro de uma lâmpada. Você se lembra, ela falou,

quando me disse que a poesia é para aqueles que caminham durante o sono?
Você se lembra, ele disse, de quando chamou um autorretrato de uma tela
em que você se pinta de fora? Ela deixou escapar uma risada e
em seguida se calou. Estava ficando tarde. Logo os convidados encontrariam
e sumiriam dentro de seus casacos. Esta vida é apenas o soar de um sino, ele disse.

E a morte o seu eterno eco, respondeu ela, concluindo o pensamento como se tivessem ensaiado.
Eles ficaram quietos então pelo que pareceu ser um longo tempo. Veneza?
ele perguntou, por fim. Florença? Roma? Nenhuma dessas, ela respondeu. Estou indo
para um pequeno burgo nas colinas da Úmbria chamado Postignano. Ele semicerrou os olhos
por um instante. Depois do fogo2, ele disse. Assim dizia a brochura, ela falou.

Trad.: Nelson Santander

NOTAS

1. Um dos recursos poéticos mais evidentes desse poema é o uso intensivo da anáfora mediante a repetição das expressões “he said” (9 vezes) e “she said” (8 vezes). Vejo nisso ecos da canção She Said She Said, que faz parte do “Álbum Branco”, dos Beatles. Isso porque, além do uso reiterativo da expressão she said, o tema do poema se assemelha bastante ao da canção. Na língua original, o uso desse recurso não soa desarmonioso ou redundante, e parece uma boa opção o uso de uma técnica que, pela recorrência ad nauseam que revela o quão diferentemente pensam as personagens do poema, ajuda a expressar a ideia de irreconciliabilidade contida no texto. Julguei que, em língua portuguesa, o uso reiterado da expressão resultaria em algo maçante, parecido com má literatura. Assim, na busca de um efeito estético que resultasse em versos mais elegantes e menos cansativos, optei por diversificar as expressões, usando com parcimônia o “ele disse” e o “ela disse” e substituindo-os algures por outras expressões correlatas no curso do texto (“ela respondeu”, “ele falou”, “perguntou”, etc.). Espero que, apesar disso, o resultado da tradução não resulte na perda da ideia central da incompatibilidade encoberta do casal do poema.

2. Esta frase parece se referir à passagem bíblica do Livro dos Reis que narra as desventuras de Elias, o profeta, que, ameaçado de morte pela princesa Jezabel, esposa de Acabe, Rei de Israel, foge daquele reino para uma caverna em Horebe, onde recebe a visita de Deus, que fala com ele: “E eis que passava o Senhor, com também um grande e forte vento que fendia os montes e quebravas as penhas diante da face do Senhor; porém, o Senhor não estava no vento; e depois do vento, um terremoto; também o Senhor não estava no terremoto; E depois do terremoto, um fogo; porém também o Senhor não estava no fogo; e depois do fogo, uma voz mansa e delicada.” (Reis, 1:19:11 e 12). A passagem é mais uma daquelas mensagens que abundam na bíblia de que, mesmo diante das adversidades, é preciso prosseguir, pois depois da devastação sempre há algo de bom. No poema, a expressão ‘After the fire’ (‘Depois do fogo’) é proclamada pela personagem masculina do poema, de forma aparentemente surpresa, mas resignada, em resposta à informação de que sua ex-amada se mudaria de país. E não para um grande centro, mas para um pequeno lugarejo na Itália – como se estivesse fugindo, como Elias. Percebemos que a mulher já conhece a expressão porque, primeiro, a frase é grafada em itálico, o que indica que o homem está dizendo uma expressão familiar a ambos, e também porque ela responde ao homem de pronto com um (irônico?) ‘So the brochure said’ (‘Assim dizia a brochura’), aparentemente se referindo a um encadernado mais simples e barato de bíblia.

After the Fire

I heard you were going to Italy, he said. You heard correct, she said.
You finally did it, he said, I’m happy for you. I’m happy for myself, she said.
One of Scarlatti’s sonatas poured through the wide French doors
and a toast went up to the hosts, who announced they had been
summoned by the spirits to throw the “little soirée.”

Sometimes, he said, I feel so, I don’t know—droopy—when I think of us,
like a glove, he said, on a hand without fingers. Funny, she said,
I sometimes feel like the hand. Wind moved like memory
through a stand of pines, and then, as though a great umbrella
sprang open, it was night. He looked absently off the veranda

and thought of days that followed her exit, stretched on end,
uniform and blank, like pavement slabs. Do you miss me? he said.
Do you miss me? she said. I miss the self I was with you, he said.
His face was a letter torn to pieces and taped together. She trembled
like the wire inside a light bulb. Do you remember, she said,

when you told me poetry is for those who walk in their sleep?
Do you remember, he said, when you called a self-portrait a canvas
you paint yourself out of? She let slip a trickle of laughter
then shut the tap. It was getting late. Soon the guests would find
and vanish into their coats. This life is just the clang of a bell, he said.

And death its eternal echo, she said, finishing the thought as if they’d rehearsed.
They kept quiet then for what seemed like a very long while. Venice?
he asked, at last. Florence? Rome? None of these, she said. I’m off
to a tiny borgo in the Umbrian hills called Postignano. He squinted
for a moment. After the fire, he said. So the brochure said, she said.

Carlos Drummond de Andrade – A Luis Mauricio, Infante

Acorda, Luís Mauricio. Vou te mostrar o mundo,
se é que não preferes vê-lo de teu reino profundo.

Despertando, Luís Mauricio, não chores mais que um tiquinho.
Se as crianças da América choram em coro, que seria, digamos, do teu vizinho?

Que seria de ti, Luís Mauricio, pranteando mais que o necessário?
Os olhos se inflamam depressa, e do mundo o espetáculo é vário

e pede ser visto e amado. É tão pouco, cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Mauricio, que sejam novos e comovidos.

E como há tempo para viver, Luís Mauricio, podes gastá-lo à janela
que dá para a Justicia del Trabajo, onde a imaginosa linha da hera

tenazmente compõe seu desenho, recobrindo o que é feio, formal e triste.
Sucede que chegou a primavera, menino, e o muro já não existe.

Admito que amo nos vegetais a carga de silêncio, Luís Mauricio.
Mas há que tentar o diálogo quando a solidão é vício.

E agora, começa a crescer. Em poucas semanas um homem
Se manifesta na boca, nos rins, na medalhinha do nome.

Já te vejo na proporção da cidade, dessa caminha em que dormes.
Dir-se-ia que só o anão de Harrods, hoje velho, entre garotos enormes,

conserva o disfarce da infância, como, na sua imobilidade,
à esquina de Córdoba e Florida, só aquele velho pendido e sentado,

de luvas e sobretudo, vê passar (é cego) o tempo que não enxergamos,
o tempo irreversível, o tempo estático, espaço vazio entre ramos.

O tempo – que fazer dele? Como adivinhar, Luís Mauricio,
o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?

Hás de aprender o tempo, Luís Mauricio. E há de ser tua ciência
uma tão íntima conexão de ti mesmo e tua existência,

que ninguém suspeitará nada. E teu primeiro segredo
seja antes de alegria subterrânea que de soturno medo.

Aprenderás muitas leis, Luís Mauricio. Mas se as esqueceres depressa,
Outras mais altas descobrirás, e é então que a vida começa,

e recomeça, e a todo instante é outra: tudo é distinto de tudo,
e anda o silêncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo.

Pois a linguagem planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas

são apenas as que vemos sem ver, há pelo menos formigas
atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos e cantigas

que alguém um dia cantará, Luís Mauricio. Procura deslindar o canto.
Ou antes, não procures. Ele se oferecerá sob forma de pranto

ou de riso. E te acompanhará, Luís Mauricio. E as palavras serão servas
de estranha majestade. É tudo estranho. Medita por, exemplo, as ervas,

enquanto és pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura
até o âmago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura

essa discreta forma verde, entre formas? E imagina ser pensado,
pela erva que pensas. Imagina um elo, uma afeição surda, um passado

articulando os bichos e suas visões, o mundo e seus problemas;
imagina o rei com suas angústias, o pobre com seus diademas,

imagina uma ordem nova; ainda que uma nova desordem, não será bela?
Imagina tudo: o povo,com sua música; o passarinho, com sua donzela;

o namorado com seu espelho mágico; a namorada, com seu mistério;
a casa, com seu calor próprio; a despedida, com seu rosto sério;

o físico, o viajante, o afiador de facas, o italiano das sortes e seu realejo;
o poeta sempre meio complicado; o perfume nativo das coisas e seu arpejo;

o menino que é teu irmão, e sua estouvada ciência
de olhos líquidos e azuis, feita de maliciosa inocência,

que ora viaja enigmas extraordinários; por tua vez, a pesquisa
há de solicitar-te um dia, mensagem perturbadora na brisa.

É preciso criar de novo, Luís Mauricio. Reinventar nagôs e latinos,
E as mais severas inscrições, e quantos ensinamentos e os modelos mais finos,

de tal maneira a vida nos excede e temos de enfrentá-la com poderosos recursos.
Mas seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos.

Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,
E na sua faminta inquietação, algo se liberta da jaula e seu quadrado.

Detém-te. A grande flor do hipopótamo brota da água – nenúfar!
E dos dejetos do rinoceronte se alimentam os pássaros. E o açúcar

que dás na palma da mão à língua terna do cão adoça todos os animais.
Repara que autênticos, que fiéis a um estatuto sereno, e como são naturais.

É meio-dia, Luís Maurício, hora belíssima entre todas,
pois, unindo e separando os crepúsculos, à sua luz se consumam as bodas

do vivo com o que já viveu ou vai viver, e a seu puríssimo raio
entre repuxos, os chicos e as palomas confraternizam na Plaza de Mayo.

Aqui me despeço e tenho por plenamente ensinado o teu ofício,
que de ti mesmo e em púrpura o aprendeste ao nascer, meu netinho Luís Mauricio.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 28/03/2017

Ada Limón – O que eu não sabia antes

era como os cavalos simplesmente davam à luz outros
cavalos. Não um bebê de qualquer jeito, não
uma criatura de espaços limiares, mas um animal
de quatro patas decidido a andar, correndo atrás
da mãe. Um cavalo dá lugar a outro
cavalo e, de repente, há dois cavalos,
simples assim. Foi como eu te amei. Você,
descendo do longo trem na Red Bank carregando
um café do tamanho do seu braço, uma bolsa com dois
computadores balançando desajeitadamente ao seu
lado. Lembro-me de termos caído na risada
quando nos vimos. O que houve entre
nós não foi uma coisa frágil para ser mimada, murmurada.
Já veio totalmente formada, pronta para correr.

Trad.: Nelson Santander

What I Didn’t Know Before

was how horses simply give birth to other
horses. Not a baby by any means, not
a creature of liminal spaces, but a four-legged
beast hellbent on walking, scrambling after
the mother. A horse gives way to another
horse and then suddenly there are two horses,
just like that. That’s how I loved you. You,
off the long train from Red Bank carrying
a coffee as big as your arm, a bag with two
computers swinging in it unwieldily at your
side. I remember we broke into laughter
when we saw each other. What was between
us wasn’t a fragile thing to be coddled, cooed
over. It came out fully formed, ready to run.

Angela Melim – Meu pai nos abandonou

Meu pai nos abandonou.
Minha mãe casou e mudou.
Vovó morreu.
Os irmãos sumiram no mundo
ou submundo.
Sem explicação
Yvonne nunca mais falou comigo
e, para Ronaldo,
sou fantasma do passado.
Vejo meus filhos já voando.
Nem um pássaro na mão.

in http://asescolhasafectivas.blogspot.com.br/2007/12/angela-melim-mencionada-por-laura-erber.html

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 26/03/2017

Linda Gregg – Ardendo e distante

Você retorna quando quer,
como a chuva. E é terno como a chuva,
tem a ternura inepta da chuva.
Uma paixão tão universal que poderia acontecer em qualquer lugar.
Você me carrega para o ar úmido.
Você me deita sobre as folhas
e o mais marcante não é o sexo
e sim acordar sozinha depois sob as árvores.

Trad.: Nelson Santander

Kept burning and distant

You return when you feel like it,
like rain. And like rain you are tender,
with the rain’s inept tenderness.
A passion so general I could be anywhere.
You carry me out into the wet air.
You lay me down on the leaves
and the strong thing is not the sex
but waking up alone under trees after.

Emily Dickinson – Dizem que “O Tempo Consola”

Dizem que “O Tempo consola” —
Mas não — na realidade,
A vera dor, como um Tendão,
Se fortalece, com a idade —

O Tempo testa a Tristeza —
Porém não a remedia —
Se cura o Mal, prova apenas
Que Mal deveras não havia —

Trad.: Paulo Henriques Britto

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/03/2017

They say that “Time assuages”

They say that “Time assuages” —
Time never did assuage —
An actual suffering strengthens
As Sinews do, with age —

Time is a Test of Trouble —
But not a Remedy —
If such it prove, it prove too
There was no Malady —

Dennis O’Driscoll – Fora de controle

Preocupem-se, mães: vocês têm
boas razões para perder o sono,
para deixar a imaginação correr solta
enquanto se deitam na cama, sem contar carneiros
mas vendo filhos e filhas
levados para o abate como cordeiros
na carnificina das noites de sexta.

Fiquem de prontidão, mães –
nunca se sabe sua sorte –
para a batida que quebraria
o silêncio como o choque
de um impacto metálico contra os tijolos.
Continuem imaginando um giroflex da polícia,
uma lua azul rompendo a escuridão.

Deitem-se cuidadosamente, mães, onde,
dezoito anos atrás, a concepção
aconteceu na escuridão da noite,
uma trama secreta; esperem inquietas,
como se fosse um exame médico
para descobrir se vocês
ainda estão com as crianças.

Trad.: Nelson Santander

Out of Control

Worry on, mothers: you have
good reason to lose sleep,
to let imaginations run riot
as you lie in bed, not counting sheep
but seeing sons and daughters
like lambs led to slaughter
in the road kill of Friday nights.

Remain on standby, mothers –
you never know your luck –
for the knock that would break
the silence like the shock
of a metallic impact against brick.
Keep imagining a police beacon,
a blue moon shattering the darkness.

Lie warily, mothers, where,
eighteen years before, conception
took place in the black of night,
a secret plot; wait restlessly,
as if for a doctor’s test,
to find out whether
you are still with child.

Paulo Henriques Britto – Geração Paissandu

Vim, como todo mundo
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.
Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam –
vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno de vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 18/03/2017