João Cabral de Melo Neto – A Mesa

O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca

e fresca como o pão.

A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
tuas praias; clara

e fresca como o pão.

A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca

e fresca como o pão.

E o verso nascido
de tua mão viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente

e fresco como o pão.

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Carlos Drummond de Andrade – Quero

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade – Escada

Na curva desta escada nos amamos,
nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos,
deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos,
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,
escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.

Guilherme de Almeida – Soneto XXVII

Hoje voltas-me o rosto, se a teu lado
passo; e eu baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto
pudéssemos varrer nosso passado.

Passo, esquecido de teu olhar — coitado!
Vais — coitada! — esquecida de que existo:
como se nunca tu me houvesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado!

Se às vezes, sem querer, nos entrevemos;
se, quando passo, o teu olhar me alcança,
se os meus olhos te alcançam, quando vais,

— ah! só Deus sabe e só nós dois sabemos! —
volta-nos sempre a pálida lembrança
daqueles tempos que não voltam mais!

Angela Lago – Sem Título

a pedra estará aqui daqui a vinte anos
quem sabe mais polida embora não se veja
ou mais recortada pelo vento
a árvore terá crescido
com sua sombra
nem o céu permanece azul ou cinza
rubro dorado negro
no entanto
tem essa criança que busca colo
– que seja um cão que vem ao teu encontro –
e te devolve o gume da loucura

Ana Martins Marques – Sem Título

Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol
porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm
a velocidade do vento

porque você disse “noite” sua boca
terá o gosto do mar noturno

porque você não conheceu meu avô você me amará menos
porque não te conheci quando criança eu te amarei mais

porque você conheceu os meus livros antes de me conhecer
você nunca vai me conhecer

Petrarca – Soneto CXXXIII (“O Amor me Assinalou com sua Seta”)

O amor me assinalou com sua seta,
como a neve ao sol, como a cera ao fogo,
como névoa ao vento; e já estou rouco,
dama, de humilhar-me, feito um pateta.

De teus olhos o golpe mortal veio,
contra o qual tempo e espaço nada são;
Vêm de ti, e vês como diversão,
o sol, o fogo e o vento aos quais me atenho.

O pensar me flecha, me cresta o sol,
o desejo queima: com essas armas
o amor fere, me cega e me aniquila;

e sua voz e canto angelical,
e a doce alma com que me desarmas,
são o ar do qual minha vida se exila.

Trad.: Nelson Santander

Petrarca – Soneto CXXXIII

Amor m’à posto come segno a strale,
come al sol neve, come cera al foco,
et come nebbia al vento; et son già roco,
donna, mercé chiamando, et voi non cale.

Dagli occhi vostri uscío ‘l colpo mortale,
contra cui non mi val tempo né loco;
da voi sola procede, et parvi un gioco,
il sole e ‘l foco e ‘l vento ond’io son tale.

I pensier’ son saette, e ‘l viso un sole,
e ‘l desir foco: e ‘nseme con quest’arme
mi punge Amor, m’abbaglia et mi distrugge;

et l’angelico canto et le parole,
col dolce spirto ond’io non posso aitarme,
son l’aura inanzi a cui mia vita fugge.

Petrarca – Soneto CCLXXII

A vida foge e não recua um passo
E a morte, em grande marcha, vai em frente;
As coisas do passado e do presente,
Ao futuro reclamam meu espaço.

A jornada que nesta vida eu traço
Na espera e na lembrança inutilmente,
Por pena de mim mesmo descontente
Este caminho que ora fiz, desfaço.

Se à lembrança me vem algum desejo
Do peito que a alegria abandonou,
Ao navegar em alto mar eu vejo

O porto onde meu barco desistiu,
A nave que lá fora naufragou
E o fogo que dos olhos teus fugiu.

Trad.: Afonso Teixeira Filho