Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/06/2018

Manuel António Pina – Ruínas

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam,
e talvez devesse ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha Igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 28/05/2018

Inês Lourenço – Balada dos Amores Difíceis

Não me refiro aos trágicos Romeu e Julieta
Tristão e Isolda, Pedro e Inês nem a alguns ignorados
ícones como Yourcenar e Grace ou Rimbaud e Verlaine. Refiro-me
aos que se buscam sem saber nada
do fogo que arde sem se ver, órficos cantos, mas côncavos
e convexos se combinam cruzando genes e transitórios
tempos de vida enquanto povoam cidades, salas
de parto, comércios, indústrias, portais, geriatrias. E dos campos deixados
à exportação do vinho e dos litorais ainda com redes
e barcos cresce um ruído de formiga banal e curtida
de pequenos destinos. Esses são os grandes herois
dos amores difíceis
que não ficam no poema.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/01/2018

David Mourão-Ferreira – Ladainha dos Póstumos Natais

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que hão de me lembrar de modo menos nítido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Gastão Cruz – Pedro Hestnes

Passou a alguns metros de onde eu
estava; não o via
há anos e nem sei
qual a última vez que com ele falara

Não o reconheci de imediato e bastou
essa dúvida para criar um hiato
na linha dos olhares de repente cruzados
dentro da tarde; receara

decerto não ter sido por mim reconhecido
enquanto que eu não fora já a tempo
de lhe mostrar que o vira e me lembrava
do seu rosto mesmo que um pouco menos

luminoso que outrora; e um remorso
absurdo me tomou por ter perdido
esse olhar hesitante
no desconcerto breve de uma tarde

Carlos Drummond de Andrade – Véspera

Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.

Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquiteto.

Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?

Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.

Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!

Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.

E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos, que se expande,
corpóreo, são mais leves do que brisa.

E na montanha-russa o grito unânime
é medo e gozo ingênuo, repartido
em casais que se fundem, mas sem flama,
que só mais tarde o peito é consumido.

Olha, amor, o que fazes desses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sem-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.

Na pressa dos comboios, entre silvos,
carregadores e campainhas, rouca
explosão de viagem, como é lírico
o batom a fugir de uma a outra boca.

Assim teus namorados se prospectam:
um é mina do outro; e não se esgota
esse ouro surpreendido nas cavernas
de que o instinto possui a esquiva rota.

Serão cegos, autômatos, escravos
de um deus sem caridade e sem presença?
Mas sorriem os olhos, e que claros
gestos de integração, na noite densa!

Não ensaies demais as tuas vítimas,
ó amor, deixa em paz os namorados
Eles guardam em si, coral sem ritmo,
os infernos futuros e passados.

Lêdo Ivo – Achamento e duração dos mortos

És o cemitério.
Os mortos não jazem
debaixo da terra.

Não estão ocultos
num lençol de relva
mas sob tua pele.

Tuas veias são
ruas onde os mortos
passeiam fagueiros,

e em férias percorrem,
turistas do eterno,
os museus do éter.

E nas terras velhas
de tua memória
almas veraneiam.

Meu filho, viver
é comerciar
no balcão dos mortos.

É achar no chão
o botão caído
de um casaco antigo.

Os defuntos vivem
fora dos seus ossos,
ocultos nas lágrimas

dos vivos que choram
ou mesmo no orvalho
do ramo de flor.

Mortos continuam
vivos, quando amados.
Viver é guardá-los

do verme que os come,
da erva que os encobre,
do nada infinito.

Fechado o ataúde,
seguras as alças,
o morto se evade.

Em verdade um morto
nunca é enterrado.
Volta com os vivos

de seu próprio enterro,
deixando na cova
o pó de novembro.

Por isso acordamos
nas noites escuras
cercados de mortos.

O pai morto dá
conselhos miúdos
ao seu filho aflito.

E a mãe morta vem
embalar, na noite,
o filho barbado.

(O menino eterno
que qualquer mãe morta
carrega consigo.)

Nesse minifúndio
que é a tua memória
figuras peremptas

te falam no vento:
tua parentela
desfila, andarenga.

Sê fiel, meu filho,
à tua prosápia.
Pratica teus mortos

(como o marinheiro
respira a onda nua
na entrada da barra).

Enquanto viveres
cubra-te a caliça
de todos os mortos.

Ouve o que te digo:
está morto o vivo
que esquece os seus mortos

e os sepulta em si,
empareda-os, vivos,
numa íntima cova.

Uma vida eterna
sucede, na terra,
de pai para filho.

Mais do que no sangue,
na vaga semblança
ou no sobrenome,

o pai continua
compincha da vida
no filho varão.

No filho legal
que torna domingo
o dia longínquo

e dá vida à morte.
Sendo filho, é o pai
quando era menino.

Carlos Drummond de Andrade – Nudez

Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

David Mourão-Ferreira – E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos