Manuel António Pina – M., A Última Palavra

Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.

O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.

Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.

Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/07/2018

Manuel de Freitas – Pompe Inutili

a Silvina Rodrigues Lopes

Ninguém nasce; seria descabido
chamar alguém aos resíduos
de placenta que envolvem
um conjunto de órgãos
a tudo ou quase tudo predispostos.

Só os mortos, verdadeiramente,
existem. Escreveram ou não
escreveram livros, cartas de amor,
diários. Não importa: cruzaram-se
connosco, sentaram-se por vezes
à mesma mesa, acreditaram até
no terno suplício do amor.
E tinham mãos reais, ao tocarem
o rosto imberbe de que se despediam.
Um beijo, sobre rugas apenas,
conseguia tornar menos frias as manhãs.

Despedem-se muito mal, os mortos.
Embora, por uma vez, sejam
exactos e sinceros – no momento
em que descem à terra e nos impedem
de partilhar com eles um cigarro,
o último copo, uma espécie de destino.

São terrivelmente reais, os mortos.
A vida inteira não chega
para que possamos matá-los a todos,
um a um, como decerto aconselharia
a mais elementar higiene metafísica.
Dão-nos, contudo, a força necessária
para morrer cada vez mais, tolerando
dias de aluguer, casas ligeiramente
inabitáveis. Porque os outros, na
verdade, não passam de mortos imperfeitos.
Estão, como nós, um pouco demasiado vivos.

Talvez um dia, porém, venham a
assinar um poema assim (e pode até não ser
um poema, muito menos assim), em que se note,
além das influências óbvias, uma certa
– digamos – especialização no horror.
Pois é disso apenas que se trata.

Os mortos sabem-no.
A sabedoria é inútil.
A poesia também.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/07/2018

Manuel António Pina – Forma, só Forma

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?
O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:
sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.
E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 03/07/2018

Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/06/2018

Manuel António Pina – Ruínas

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam,
e talvez devesse ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha Igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 28/05/2018

Inês Lourenço – Balada dos Amores Difíceis

Não me refiro aos trágicos Romeu e Julieta
Tristão e Isolda, Pedro e Inês nem a alguns ignorados
ícones como Yourcenar e Grace ou Rimbaud e Verlaine. Refiro-me
aos que se buscam sem saber nada
do fogo que arde sem se ver, órficos cantos, mas côncavos
e convexos se combinam cruzando genes e transitórios
tempos de vida enquanto povoam cidades, salas
de parto, comércios, indústrias, portais, geriatrias. E dos campos deixados
à exportação do vinho e dos litorais ainda com redes
e barcos cresce um ruído de formiga banal e curtida
de pequenos destinos. Esses são os grandes herois
dos amores difíceis
que não ficam no poema.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/01/2018

David Mourão-Ferreira – Ladainha dos Póstumos Natais

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que hão de me lembrar de modo menos nítido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Gastão Cruz – Pedro Hestnes

Passou a alguns metros de onde eu
estava; não o via
há anos e nem sei
qual a última vez que com ele falara

Não o reconheci de imediato e bastou
essa dúvida para criar um hiato
na linha dos olhares de repente cruzados
dentro da tarde; receara

decerto não ter sido por mim reconhecido
enquanto que eu não fora já a tempo
de lhe mostrar que o vira e me lembrava
do seu rosto mesmo que um pouco menos

luminoso que outrora; e um remorso
absurdo me tomou por ter perdido
esse olhar hesitante
no desconcerto breve de uma tarde

Carlos Drummond de Andrade – Véspera

Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.

Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquiteto.

Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?

Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.

Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!

Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.

E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos, que se expande,
corpóreo, são mais leves do que brisa.

E na montanha-russa o grito unânime
é medo e gozo ingênuo, repartido
em casais que se fundem, mas sem flama,
que só mais tarde o peito é consumido.

Olha, amor, o que fazes desses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sem-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.

Na pressa dos comboios, entre silvos,
carregadores e campainhas, rouca
explosão de viagem, como é lírico
o batom a fugir de uma a outra boca.

Assim teus namorados se prospectam:
um é mina do outro; e não se esgota
esse ouro surpreendido nas cavernas
de que o instinto possui a esquiva rota.

Serão cegos, autômatos, escravos
de um deus sem caridade e sem presença?
Mas sorriem os olhos, e que claros
gestos de integração, na noite densa!

Não ensaies demais as tuas vítimas,
ó amor, deixa em paz os namorados
Eles guardam em si, coral sem ritmo,
os infernos futuros e passados.