Konstantinos Kaváfis – O Prazo de Nero

Não ficou perturbado Nero quando ouviu
do Oráculo de Delfos o prenúncio:
“Teme ao ano septuagésimo terceiro.”
Tinha tempo bastante a desfrutar.
Só contava trinta anos. Muito dilatado
era o prazo que o Deus lhe concedia
para cuidar-se dos riscos do futuro.

Agora vai voltar a Roma um tanto fatigado
da magnífica fadiga que se traz de uma viagem
toda feita de dias de prazer –
nos jardins, nos teatros, nos ginásios…
Ah tardes das cidades da Acaia…
Ah a volúpia de corpos desnudos, sobretudo…

Isto com Nero. Na Espanha todavia, Galba
secretamete congrega suas tropas e as exercita,
Galba, um velho: setenta e três anos de idade.

Trad. José Paulo Paes

Ana Martins Marques – Há estes dias em que pressentimos na casa…

Há estes dias em que pressentimos na casa
a ruína da casa
e no corpo
a morte do corpo
e no amor
o fim do amor
estes dias
em que tomar o ônibus é no entanto perdê-lo
e chegar a tempo é já chegar demasiado tarde
não são coisas que se expliquem
apenas são dias em que de repente sabemos
o que sempre soubemos e todos sabem
que a madeira é apenas o que vem logo antes
da cinza
e por mais vidas que tenha
cada gato
é o cadáver de um gato

Marco Aurélio – Reflexões, 14

Ainda que os anos de tua vida sejam três mil ou dez vezes três mil, lembra-te de que ninguém perde outra vida senão a que vive agora, nem vive outra senão a que perde. O prazo mais longo e o mais breve são, portanto, iguais. O presente é de todos; morrer  é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que não tem. Lembra-te de que todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesmas órbitas e que para o espectador é indiferente vê-las um século ou dois ou infinitamente.

Manuel Bandeira – Soneto Inglês n. 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar um grito de ódio a quem o fez.

As delicias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao gênero sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.

Não tremer de esperança nem de espanto,
Nada pedir, nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo

Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

Moshé Ibn Ezra – São Túmulos de Tempos Antigos, Velhos

São túmulos de tempos antigos, velhos.
Neles há gente que dorme um sono eterno.
Nem ódio, nem inveja há no seu interior,
nem amor, nem zangas de vizinhos.
Os meus pensamentos não podem, quando os veem,
distinguir entre servos e senhores.

Versão de Francisco José Viegas, tradução do hebraico de Maria José Cano.

Peguei aqui:http://antoniocicero.blogspot.com.br/2015/08/moshe-ibn-ezra-sao-tumulos-de-tempos.html

Ferreira Gullar – Nova Concepção da Morte

Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso
na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;

um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora,
mas do fundo do corpo, onde a morte mora,

ou, dizendo melhor, onde ela circula
como a eletricidade ou o medo, na medula

dos ossos e em cada enzima, que veicula,
no processo da vida, esse contrário: a morte

(decidida sem que se saiba de que sorte
nem por quem nem por quê nem por que côrte

de justiça, uma vez que era morte de dentro
não de fora, como as que causa externa engendra).

Ela veio chegando ao ritmo do pulso,
sem pressa nem vagar e sem perder o impulso

que empurra a vida para o desenlace, para
o ponto onde afinal o sistema dispara,

cortando a luz do corpo -e a máquina pára.
Muito antes, porém, que ocorra esse colapso,

chega o aviso da morte, indecifrado, “lapsus
linguae”, sinal errado ou mal pronunciado

no código de sais, ou não compreendido
deliberadamente: a gente faz ouvido

de mercador à voz que a morte noticia
pra não ouvi-la, já que não tem serventia

ouvi-la e assim saber que a hora está marcada.
Só para entristecer-se ante a noite estrelada?

Essa é a morte de dentro, endócrina; a de fora,
a exógena, provém do acaso, se elabora

na natureza ou então no tráfego ou no crime
e implacável chega, e nada nos exime

da injusta sentença, a moral impoluta,
a bondade, o latim, nossa boa conduta,

nada: a pedra que cai ou a bala perdida
sem razão nos atinge e acaba com a vida.

Diz-se que, dessa morte, a notícia também
nos chega, aleatória antecipação,

na pronúncia da brisa e dos búzios, além
do que se lê na carta e nas linhas da mão.

Mas, se vinda de dentro ou fora, não se altera
essencialmente o fato: a morte, por si, gera

um processo que altera as relações de espaço
e tempo e modifica, inverte, em descompasso,

o curso natural da vida: uma vertigem
arrasta tardes, sóis, desperta da fuligem

vozes, risos, manhãs já de há muito apagadas,
e as precipita velozmente, misturadas,

para dentro de si, como fazem as estrelas
ao morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas

forças de contração da morte, se reduz
a um buraco voraz de que nem mesmo a luz

escapa, e assim também com as pessoas ocorre.
E é por essa razão que, quando um homem morre,

alguém que esteja perto e que apure o ouvido,
certamente ouvirá, como estranho alarido,

o jorrar ao revés da vida que vivera
até tornar-se treva o que foi primavera.

Ferreira Gullar – Filhos

A meu filho Marcos

Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria
se foram
Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via crianças
já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.