I
Abrigo-te
mais uma vez
há muito tempo
disseste aqui
hei-de morrer
voltas sempre
a esta morada
ris-te e partes
no telhado frágil
caem as primeiras
águas de Inverno.
II
Deus encontrou-te
eu sei
apaixonou-se pelos teus olhos verdes
(há fados assim)
à sombra das velhas árvores
dás-lhe a mão e passeiam
deve ser em calmos fins de tarde como este
que Deus se indispõe contra os homens
dizes-lhe não está descansado
não tenhas medo
aqui ninguém te reconhece.
III
Olhamos o amor e a morte
desdobrando-se no tempo
nas rugas das suas estações
demasiado tempo mantemos
a ilusão de uma diferença
mas o tempo comprime-se
naquele momento breve
em que a nossa vontade
julga poder prescindir dele.
IV
Chegaste à idade da morte
dos teus amigos também agora
começas a distingui-los
cai um e depois outro
e tu apressas o passo
desta vez vais discutir
o terreno palmo a palmo
não saberias o que fazer
se a solidão se despovoasse.
V
Vagarosas as mãos tocam
uma vez mais o teu rosto
é um desemprego de mim
um despovoamento ainda
inseguro e pouco a pouco
alongam-se os silêncios
as palavras esmorecem
escrevo nas águas
a última jornada
uma árvore
ensombra
apenas
mais
uma
vez.
VI
Afastas por momentos a mão que te afaga o rosto
tacteando como costumavas dizer
nas peles enrugadas o amor é mais lento a atingir
a emoção talvez se perca nos seus meandros
se detenha em cada um a antever alegrias
ou a recear os desencontros
agora é a tua mão que procura
a outra finge um esquecimento breve
as mãos há muito que se conhecem
e a tua quer mais uma vez desafiar
o desejo que a um rosto cansado a tua mão pode levar
antes que o desalento progredindo se instale
e feche todos os caminhos do seu mapa de encontros.
VII
É forçoso Maria sabes como é a barca do amor
hei-de lá estar uns metros depois do cruzamento
talvez primeiro o corpo talvez depois a cabeça
talvez afinal fiquem pertinho
vou-me embora já sabes não são precisas desculpas
está na hora este comboio não costuma atrasar-se.
VIII
Disseste que os meus olhos eram tristes
ou com aquela ternura dos tristes não sei banalidades o que aconteceu
a tempestade e tanta chuva e vento na cidade quente
fugimos para o teatro e tu deixaste cair os olhos para dentro
está quase a passar e depois fiquei mesmo triste
e tu disseste tens os olhos mais tristes do mundo é mentira foi do vento
soube-me bem nesta cidade de tantos lamentos
isso leva-me mais depressa e o vento ajuda
o condutor do táxi nunca saberá se foi da ventania
ou se um tipo voou mesmo rasante para debaixo dele esmagado
não chores a tempestade já passou.
IX
A meio do caminho pensaste
não há nada importante
para vos dizer agora
(um salto longo e sem gritos,
não há hipótese de Deus pensei)
depois só os teus restos no chão
tiveram alguma eloquência.
X
Coisas soltas como o dia
chegas daqui a pouco olá
descarregas o corpo à toa
perguntas não tens frio
a tv dispara gritos e tiros
folhetins notícias perigosas
acendo mais um cigarro
pões-me o duche a correr sim
e a toalha que a tua mão me deu
a felpuda com desenhos do mar
o cão do 3º ataca inúteis coelhos
talvez morra lá mais para o Verão
telefonaram de um jornal querem
não te oiço não deixes o gaz merda
já está podes recomeçar tudo sim
pouco a pouco a sombra.