Filipa Leal – Estátua da Liberdade

E ali estava – nós a atravessarmos de barco
a alegria: o pai ainda de bigode, de chapéu castanho,
a mãe de óculos e echarpe, a Marta que em breve seria mãe também
mas não sabia que transportava no útero mais um passageiro,
o Miguel, pequenino e corajoso, sempre a tentar que os pés não doessem
de tantas avenidas, e o João Pedro, tão recém-casado, tão recém-feliz,
tão quase pai também sem o saber;
nós ao sol, de costas para ela, de frente uns para os outros, pressentindo
que Nova Iorque só interessaria por ali termos estado muito juntos,
e que na passagem dos anos apenas isso importaria, apenas isso:
termos ali estado distraídos, sentadíssimos, confortáveis
como os nossos corações.

E de repente ali estava ela a imitar os montes, de um verde indecifrável,
ali estava a imitar os homens invadidos, pesada, com picos na cabeça,
de braço esticado a tentar a luz, de livro pendurado,
ali estava séria, muda, quieta,
toda feita de pausa como um susto, como se jogássemos mímica,
como se a seguir nos pregasse uma partida, um grito,
e desfizesse a pose e risse de boca muito aberta à brincadeira,
livre então dos curiosos que empunhavam câmaras como se vê-la
assim, parada e incapaz, fosse espetáculo digno de registo.

Nós a chegarmos à ilha, a desembarcarmos do alheamento,
nós do tamanho familiar, todos de cabeça ao alto na inacessível sombra,
nós a rirmos das pessoas que lhe descobríamos na cabeça,
eles literalmente à varanda da cabeça, os visitantes,
ignorando que um futuro dia de Setembro inibiria aquela subida aos céus.

E ali estava ela de nariz empinado, recusando o gesto de anfitriã:

alta e ofendida
estátua
que era preciso limpar.

Filipa Leal – Entrevista de Emprego

Desculpe, tem toda a razão, não pensei que fosse um
aspecto impeditivo,
prejudicial ao nosso relacionamento, claro, claro,
ao nosso relacionamento
profissional, tem toda a razão, devo ter cuidado com as palavras,
sim,
e o senhor, o senhor gosta de palavras, não, mas tem ao menos
cuidado com elas,
e de mulheres, o senhor gosta de mulheres, pergunto, trata-as com
respeito,
o senhor sabe pontuar uma conversa, pergunto, sabe fazer as pausas
certas,
desculpe, tem toda a razão, quem faz as perguntas aqui é o senhor,
e eu respondo, claro, se souber, mas sei pouco, tem toda a razão,
sim, sou formada em Letras, desculpe, sim, sim, gosto de Línguas,
sim,
mas não da sua, confesso, desculpe, desculpe, é que de repente
pensei
que pudesse estar a interpretar-me mal com o duplo sentido da
palavra língua,
sabe como é, hoje em dia todo o cuidado com a palavra é pouco
e eu tinha acabado de lhe perguntar se gostava de mulheres,
podia soar a sedução,
na verdade só procurava saber se o senhor era machista,
desculpe, fui indelicada,
sim, tem toda a razão, eu gosto é de livros, eu gosto é das
notícias que não vêm
nos jornais, eu gosto é de histórias de encantar, mas olhe que há
algumas bem cruéis,
não, não são só as de terror, olhe que o terror às vezes está aos
pés da câmara,
não, não, eu disse câmara, ouviu bem, achei que se dissesse
cama podia voltar a
baralhá-lo, e daqui a pouco ainda pensava que tenho algum
interesse em si,
tem razão, tem toda a razão, não me lembrei de destacar esse
aspecto no currículo,
não pensei que escrever poemas fosse uma condenação
curricular,
mas já que pede a minha opinião, compreendo que o senhor
não há-de precisar
de uma pessoa como eu, repare, eu gosto de olhar para o céu
horas a frio,
não, não, eu disse frio, ouviu bem, pareceu-me o termo
adequado a este diálogo,
e sim, tem toda a razão, eu não devia tê-lo feito perder o seu
tempo, desculpe,
desculpe não lhe ter dito mais cedo que só sei ler e escrever,
desculpe não lhe ter dito mais cedo que sou apenas o contrário de um analfabeto.