Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Quinta Elegia

Quinta elegia

               dedicada a Frau Hertha von Kœnig

Mas quem são eles, dizei-me, os saltimbancos, um pouco
mais efêmeros que nós mesmos, desde a infância
por alguém torcidos – por amor
de que vontade jamais saciada? Entretanto ela os torce,
curva-os, entretece-os, vibra-os,
atira-os e os toma de volta! Do ar untado
e mais liso, eles resvalam
sobre o tapete gasto (adelgaçado
pelo eterno salto), esse tapete
perdido no universo.
Emplastro aderido lá, onde o céu
do subúrbio feriu a terra.
            E apenas lá,
aufereto, mostra a grande maiúscula
inicial da Derelicção… e já o renitente
agarrar torna a rolar os homens mais fortes,
por jogo, como outrora Augusto o Forte, à mesa,
brincando com pratos de zinco.

Ah! e em torno desse centro,
a rosa do contemplar:
floresce e desfolha. Em torno do
triturador, o pistilo atingido por seu próprio
pólen florescente, novamente fecundado – fruto
aparente do desgosto, inconsciente de si mesmo –
com a fina superfície a brilhar
num sorriso leve, simulado.

Lá, o murcho, o enrugado atleta,
o velho que apenas rufla o tambor,
encolhido na pele poderosa como se outrora tivesse contido
dois homens e um já estivesse
morto, enquanto o outro sobrevive ainda,
surdo e um pouco perturbado,
às vezes, na pele viúva.

E o jovem, o homem, como se fosse o filho
de uma nuca e de uma freira: retesado e vigoroso,
cheio de músculos e de simplicidade.

Ó vós,
que um sofrimento ainda pequeno
ganhou alguma vez como brinquedo,
numa de suas longas convalescenças…

Tu, que imaturo, com o baque
apenas conhecido pelos frutos, tu que cem vezes
por dia cais da árvore do movimento construído
em conjunto (árvore mais ágil que a água, percorrendo
em minutos primavera, verão e outono) – cais e roças
o túmulo: às vezes, num breve intervalo, a ternura
hesita em teu rosto, diante de tua mãe raramente
carinhosa; mas logo se perde no corpo
que dissipa, leviano, a expressão tímida e incompleta…
E o homem torna a bater as mãos para o salto… Antes
que a dor se torne mais nítida e próxima do teu coração
sempre alterado, antecipa-a e à sua origem, o ardor
das plantas dos pés, que empurra à flor dos
olhos algumas lágrimas corpóreas.
E contudo, às cegas,
o sorriso…

Anjo, toma, colhe a erva medicinal de flores singelas!
Modela um vaso e dá-lhe abrigo! Preserva-a entre as
alegrias não desabrochadas; celebra-a em
carinhosa urna, com uma inscrição florida e inspirada:
            Subrisio Saltat.

E tu, graciosa,
esquecida no silêncio
das alegrias vivas e apressadas. Talvez
sejam felizes por ti as franjas dos teus cabelos,
ou quem sabe, sobre teus seios jovens e túmidos,
a seda verde-metal sinta-se mimada e nada lhe falte.
Tu,
colocada sempre de um modo novo
sobre os carros oscilantes do equilíbrio,
fruto de feira da indiferença,
exibida ao público, entre os ombros.

Onde, onde é o espaço – levo-o no coração –,
onde, não podendo ainda, eles caiam
um do outro como animais que saltassem
para acasalar-se;
onde os lastros ainda têm peso,
onde os arcos ainda bamboleiam
fugindo às varas
que giram inutilmente…

E de repente, neste árduo Nada,
o ponto inexprimível onde a insuficiência pura
incompreensivelmente se transforma – e salta
àquela vazia plenitude
onde o cálculo de muitos algarismos
se resolve sem números.

Praças, ó praças em Paris, feira infinita,
onde a modista Madame Lamort
tece e retorce os caminhos inquietos do mundo –
numerosas fitas – em laços imprevistos, folhos, flores,
laçarotes, frutos artificiais, tudo falsamente colorido
para os módicos chapéus de inverno
do Destino.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Anjo!: talvez haja uma praça que desconhecemos, onde,
sobre um tapete indizível, os amantes, incapazes aqui,
pudessem mostrar suas ousadas, altivas figuras
do ímpeto amoroso, suas torres de alegria, suas trêmulas
escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio:
e poderiam diante dos espectadores em círculo,
incontáveis mortos silenciosos. E estes arrojariam
suas últimas, sempre poupadas,
sempre ocultas, desconhecidas moedas de felicidade
para sempre válidas, diante do par
verdadeiramente sorridente, sobre o tapete
apaziguado.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die fünfte Elegie

Frau Hertha Koenig zugeeignet

Wer aber sind sie, sag mir, die Fahrenden, diese ein wenig
Flüchtigern noch als wir selbst, die dringend von früh an
wringt ein wem, wem zu Liebe
niemals zufriedener Wille? Sondern er wringt sie,
biegt sie, schlingt sie und schwingt sie,
wirft sie und fängt sie zurück; wie aus geölter,
glatterer Luft kommen sie nieder
auf dem verzehrten, von ihrem ewigen
Aufsprung dünneren Teppich, diesem verlorenen
Teppich im Weltall.
Aufgelegt wie ein Pflaster, als hätte der Vorstadt-
Himmel der Erde dort wehe getan.
            Und kaum dort,
recht, da und gezeigt: des Dastehns
großer Anfangsbuchstab…, schon auch, die stärksten
Männer, rollt sie wieder, zum Scherz, der immer
kommende Griff, wie August der Starke bei Tisch
einen zinnenen Teller.

Ach und um diese
Mitte, die Rose des Zuschauns:
blüht und entblättert. Um diesen
Stampfer, den Stempel, den von dem eignen
blühenden Staub getroffnen, zur Scheinfrucht
wieder der Unlust befruchteten, ihrer
niemals bewußten, – glänzend mit dünnster
Oberfläche leicht scheinlächelnden Unlust.

Da: der welke, faltige Stemmer,
der alte, der nur noch trommelt,
eingegangen in seiner gewaltigen Haut, als hätte sie früher
zwei Männer enthalten, und einer
läge nun schon auf dem Kirchhof, und er überlebte den andern,
taub und manchmal ein wenig
wirr, in der verwitweten Haut.

Aber der junge, der Mann, als wär er der Sohn eines Nackens
und einer Nonne: prall und strammig erfüllt
mit Muskeln und Einfalt.

Oh ihr,
die ein Leid, das noch klein war,
einst als Spielzeug bekam, in einer seiner
langen Genesungen…

Du, der mit dem Aufschlag,
wie nur Früchte ihn kennen, unreif,
täglich hundertmal abfällt vom Baum der gemeinsam
erbauten Bewegung (der, rascher als Wasser, in wenig
Minuten Lenz, Sommer und Herbst hat) –
abfällt und anprallt ans Grab:
manchmal, in halber Pause, will dir ein liebes
Antlitz entstehn hinüber zu deiner selten
zärtlichen Mutter; doch an deinen Körper verliert sich,
der es flächig verbraucht, das schüchtern
kaum versuchte Gesicht… Und wieder
klatscht der Mann in die Hand zu dem Ansprung, und eh dir
jemals ein Schmerz deutlicher wird in der Nähe des immer
trabenden Herzens, kommt das Brennen der Fußsohln
ihm, seinem Ursprung, zuvor mit ein paar dir
rasch in die Augen gejagten leiblichen Tränen.
Und dennoch, blindlings,
das Lächeln…

Engel! o nimms, pflücks, das kleinblütige Heilkraut.
Schaff eine Vase, verwahrs! Stells unter jene, uns noch nicht
offenen Freuden; in lieblicher Urne
rühms mit blumiger schwungiger Aufschrift:
            “Subrisio Saltat”.

Du dann, Liebliche,
du, von den reizendsten Freuden
stumm Übersprungne. Vielleicht sind
deine Fransen glücklich für dich –,
oder über den jungen
prallen Brüsten die grüne metallene Seide
fühlt sich unendlich verwöhnt und entbehrt nichts.
Du,
immerfort anders auf alle des Gleichgewichts schwankende Waagen
hingelegte Marktfrucht des Gleichmuts,
öffentlich unter den Schultern.

Wo, o wo ist der Ort – ich trag ihn im Herzen –,
wo sie noch lange nicht konnten, noch voneinander
abfieln, wie sich bespringende, nicht recht
paarige Tiere; –
wo die Gewichte noch schwer sind;
wo noch von ihren vergeblich
wirbelnden Stäben die Teller
torkeln…

Und plötzlich in diesem mühsamen Nirgends, plötzlich
die unsägliche Stelle, wo sich das reine Zuwenig
unbegreiflich verwandelt –, umspringt
in jenes leere Zuviel.
Wo die vielstellige Rechnung
zahlenlos aufgeht.

Plätze, o Platz in Paris, unendlicher Schauplatz,
wo die Modistin, Madame Lamort,
die ruhlosen Wege der Erde, endlose Bänder,
schlingt und windet und neue aus ihnen
Schleifen erfindet, Rüschen, Blumen, Kokarden, künstliche Früchte –, alle
unwahr gefärbt, — für die billigen
Winterhüte des Schicksals.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Engel!: Es wäre ein Platz, den wir nicht wissen, und dorten,
auf unsäglichem Teppich, zeigten die Liebenden, die’s hier
bis zum Können nie bringen, ihre kühnen
hohen Figuren des Herzschwungs,
ihre Türme aus Lust, ihre
längst, wo Boden nie war, nur an einander
lehnenden Leitern, bebend, – und könntens,
vor den Zuschauern rings, unzähligen lautlosen Toten:
Würfen die dann ihre letzten, immer ersparten,
immer verborgenen, die wir nicht kennen, ewig
gültigen Münzen des Glücks vor das endlich
wahrhaft lächelnde Paar auf gestilltem
Teppich?

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Quarta Elegia

Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?
Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as aves
migradoras. Precipitados ou vagarosos
nos impomos repentinamente aos ventos
e tornamos a cair num lago indiferente.
Conhecemos igualmente o florescer e o murchar.
No entanto, em alguma parte, vagueiam leões ainda,
alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor.

Nós, porém, quando pensamos totalmente o Uno,
logo sentimos o lastro do Outro. A hostilidade
aguarda, muito perto. Os amantes
não hesitam, sem cessar,
entre limites – eles que aspiravam refúgio, espaço, busca?
Compõe-se, então, para a fugitiva imagem de um momento,
um fundo de oposição, penosamente, para que
a possamos ver; que clareza se nos proporciona,
a nós que ignoramos o contorno da sensação,
aderidos ao exterior de sua forma. – Quem
desconhece a angustiosa espera diante
do palco sombrio do próprio coração?
Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário
de um adeus. Fácil de compreender. O jardim habitual
a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino.
Ele não. Basta. E enquanto se move com desenvoltura,
muda de aspecto; torna-se um burguês
e entra na casa pela porta da cozinha.
Não quero essas máscaras ocas, prefiro
o boneco de corpo cheio. Susterei
o títere, os cordéis e o rosto
feito de aparência. Estou aqui, à espera.
Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda
que me digam: “acabou-se” – ainda que do palco
se evole o vácuo na corrente de ar cinzento,
ainda que os antepassados silenciosos
não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo
a criança de olhos castanhos e estrábicos –,
ficarei à espera. Sempre há o que ver.

Não tenho razão? Tu, que por mim provaste
a amargura da vida, pai, penetrando
a minha, tu, que provaste a infusão
turva de meu destino, quando ao teu lado
crescia, e, inquieto pelo ressaibo de futuro
tão estranho, puseste à prova
meu olhar velado ainda – tu, meu pai,
que desde que morreste, tantas vezes
na esperança que levo em mim, tens medo,
e que por meu destino incerto abandonas
a serenidade dos mortos, reinos
de serenidade, não tenho razão?

E vós – não tenho razão? –, vós que me
amastes pelo tímido início de amor
que vos tinha e do qual me evadia,
pois o espaço que amava em vosso rosto
em espaço cósmico se transformava. – Enquanto
aguardo diante do palco dos títeres – não,
quando me transformar inteiramente num intenso
olhar, um Anjo surgirá para refazer
o equilíbrio, como o ator que anima os títeres.
Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo.
Congrega-se então o que, sem cessar,
nossa existência mesma desagrega. E nasce
das nossas estações o ciclo da transformação
total. Muito acima de nós, o Anjo brincará.
Olhai, os moribundos não mais suspeitariam
que é pretexto e irrealidade tudo o que aqui
fazemos. Oh, dias da infância, em que atrás
das figuras havia mais do que passado e em que
diante de nós não se abria o futuro!
Crescíamos, é certo, aspirando, às vezes,
tornar-nos grandes, talvez por amor
daqueles que nada mais tinham, senão
o “ser grandes”. E lá permanecíamos,
em nossos caminhos solitários,
na alegria do perdurável, nos limites
do mundo e do brinquedo, no espaço que desde
a origem foi criado para um puro evento.

Quem mostra uma criança tal como é? Quem a
situa na constelação com a medida da distância
em suas mãos? Quem faz sua morte
com pão cinzento que endurece – ou a abandona
dentro da boca redonda, como o coração
de uma bela maçã?… Compreendemos facilmente
os criminosos. Mas isto: conter a morte,
toda a morte, ainda antes da vida,
tão docemente contê-la e não ser perverso,
isto é inefável.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die vierte Elegie

O Bäume Lebens, o wann winterlich?
Wir sind nicht einig. Sind nicht wie die Zug-
vögel verständigt. Überholt und spät,
so drängen wir uns plötzlich Winden auf
und fallen ein auf teilnahmslosen Teich.
Blühn und verdorrn ist uns zugleich bewußt.
Und irgendwo gehn Löwen noch und wissen,
solang sie herrlich sind, von keiner Ohnmacht.

Uns aber, wo wir eines meinen, ganz,
ist schon des andern Aufwand fühlbar. Feindschaft
ist uns das Nächste. Treten Liebende
nicht immerfort an Ränder, eins im andern,
die sich versprachen Weite, Jagd und Heimat.
Da wird für eines Augenblickes Zeichnung
ein Grund von Gegenteil bereitet, mühsam,
daß wir sie sähen; denn man ist sehr deutlich
mit uns. Wir kennen den Kontur
des Fühlens nicht: nur, was ihn formt von außen.
Wer saß nicht bang vor seines Herzens Vorhang?
Der schlug sich auf: die Szenerie war Abschied.
Leicht zu verstehen. Der bekannte Garten,
und schwankte leise: dann erst kam der Tänzer.
Nicht der. Genug! Und wenn er auch so leicht tut,
er ist verkleidet und er wird ein Bürger
und geht durch seine Küche in die Wohnung.

Ich will nicht diese halbgefüllten Masken,
lieber die Puppe. Die ist voll. Ich will
den Balg aushalten und den Draht und ihr
Gesicht und Aussehn. Hier. Ich bin davor.
Wenn auch die Lampen ausgehn, wenn mir auch
gesagt wird: Nichts mehr –, wenn auch von der Bühne
das Leere herkommt mit dem grauen Luftzug,
wenn auch von meinen stillen Vorfahrn keiner
mehr mit mir dasitzt, keine Frau, sogar
der Knabe nicht mehr mit dem braunen Schielaug:
Ich bleibe dennoch. Es giebt immer Zuschaun.

Hab ich nicht recht? Du, der um mich so bitter
das Leben schmeckte, meines kostend, Vater,
den ersten trüben Aufguß meines Müssens,
da ich heranwuchs, immer wieder kostend
und, mit dem Nachgeschmack so fremder Zukunft
beschäftigt, prüftest mein beschlagnes Aufschaun, –
der du, mein Vater, seit du tot bist, oft
in meiner Hoffnung, innen in mir, Angst hast,
und Gleichmut, wie ihn Tote haben, Reiche
von Gleichmut, aufgibst für mein bißchen Schicksal,
hab ich nicht recht? Und ihr, hab ich nicht recht,
die ihr mich liebtet für den kleinen Anfang
Liebe zu euch, von dem ich immer abkam,
weil mir der Raum in eurem Angesicht,
da ich ihn liebte, überging in Weltraum,
in dem ihr nicht mehr wart…: wenn mir zumut ist,
zu warten vor der Puppenbühne, nein,
so völlig hinzuschaun, daß, um mein Schauen
am Ende aufzuwiegen, dort als Spieler
ein Engel hinmuß, der die Bälge hochreißt.
Engel und Puppe: dann ist endlich Schauspiel.
Dann kommt zusammen, was wir immerfort
entzwein, indem wir da sind. Dann entsteht
aus unsern Jahreszeiten erst der Umkreis
des ganzen Wandelns. Über uns hinüber
spielt dann der Engel. Sieh, die Sterbenden,
sollten sie nicht vermuten, wie voll Vorwand
das alles ist, was wir hier leisten. Alles
ist nicht es selbst. O Stunden in der Kindheit,
da hinter den Figuren mehr als nur
Vergangnes war und vor uns nicht die Zukunft.
Wir wuchsen freilich und wir drängten manchmal,
bald groß zu werden, denen halb zulieb,
die andres nicht mehr hatten als das Großsein.
Und waren doch in unserem Alleingehn,
mit Dauerndem vergnügt und standen da
im Zwischenraume zwischen Welt und Spielzeug,
an einer Stelle, die seit Anbeginn,
gegründet war für einen reinen Vorgang.

Wer zeigt ein Kind, so wie es steht? Wer stellt
es ins Gestirn und giebt das Maß des Abstands
ihm in die Hand? Wer macht den Kindertod
aus grauem Brot, das hart wird, – oder läßt
ihn drin im runden Mund, so wie den Gröps
von einem schönen Apfel?… Mörder sind
leicht einzusehen. Aber dies: den Tod,
den ganzen Tod, noch vor dem Leben so
sanft zu enthalten und nicht bös zu sein,
ist unbeschreiblich.

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Terceira Elegia

Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai de mim,
é cantar o culpado e oculto Deus-Rio do sangue.
Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe
ele do Senhor da Volúpia que tantas vezes o assaltava
em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse,
como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia
a irreconhecível face gotejante, invocando a noite
para o delírio infinito! Oh, Netuno do sangue,
com o hediondo tridente e o vento obscuro de seu peito,
concha enrodilhada! Ouve como a noite se escava
e se esvazia. Não se origina em vós, estrelas, o prazer
que o amante respira no rosto da amada? A compreensão profunda
de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranquilas?

Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim
distendeu o arco expectante de suas sobrancelhas.
Não foi ao teu encontro, jovem terna e sensível,
que se animaram esses lábios numa expressão fecunda.
Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro,
ó tu que te moves como a brisa da manhã?
Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos
terrores nele despertaram a esse embate.
Chama-o… Não podes arrancá-lo inteiramente ao
convívio sombrio. Mas ele quer e se evade; abrandado,
habitua-se à intimidade do teu coração e toma e se inicia.
Porém, iniciou-se ele alguma vez?
Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o seu início.
Ele era tão novo… Inclinaste o mundo amigo
para seus olhos novos e apartaste o que era estranho.
Onde, onde estão os anos em que tua forma esbelta
bastava para lhe ocultar o vacilante caos?
Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão suspeita
do quarto, tornaste inofensiva; de teu coração,
refúgio pleno, um espaço mais humano retiraste,
para uni-lo ao espaço de suas noites. Não nas trevas,
mas em tua presença mais próxima pousaste a luz noturna,
como luz de amizade. Nenhum ruído que não explicasses,
sorrindo, como se há muito soubesses quando o pavimento
assim se comportava. E ele ouvia, apaziguado, tal era o poder
da tua suave permanência. Atrás do armário se ocultava,
num manto enorme, seu destino e as desordenadas linhas
do futuro inquieto, às dobras da cortina se amoldavam.

E quando ele jazia, o aplacado, sob
cujas pálpebras sonolentas tua leve forma
suavemente se perdia, parecia amparado…
Quem impedia, porém, quem retinha
nas profundezas de seu ser os fluxos da origem?
Ah, não havia precaução no adormecido; dormindo,
a sonhar, febril, como se abandonava!
Ele, o novo, o perturbado, como se enredava
nas garras vegetais do vir-a-ser interior,
como se emaranhava em primitivas estruturas, em
formas que fugiam, bestiais, crescentes
e opressivas! Como ele se entregava! Amava.
Amava seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido, sobre cujo
silencioso despenhar verde-luz, seu coração
se erguia. Amava. Abandonado, as próprias raízes mergulhou
na origem poderosa, onde sobrevivia seu pequeno nascimento.
Desceu, amando, ao sangue mais antigo, ao abismo
onde jaz o Espanto, regurgitado pelos ancestrais.
E cada sobressalto o reconhecia e acenava, conivente.
Sim, o Horror sorriu-lhe… Poucas vezes com tal ternura sorriste,
mãe. Como não amaria ele o que assim lhe sorria? Antes de ti
ele o amou, pois quando o trazias, estava dissolvido
na água que torna mais leve a semente.

Não amamos como as flores, depois de uma
estação; circula em nossos braços, quando amamos,
a seiva imemorial. Ó jovem, amávamos em nós,
não um ser futuro, mas o fermento inumerável;
não uma criança, entre todas, mas os pais,
ruínas de montanhas repousando em nossas
profundezas; e o seco leito fluvial das mães
de outrora; e toda a paisagem silenciosa,
sob o destino puro ou nebuloso: –
eis aqui, jovem, o que adveio antes de ti.

E tu mesma, que sabes? Conjuraste
no amado a pré-história obscura… Que
sentimentos, em seres desaparecidos agitaste!
Que mulheres, nele, te odiaram! Que homens
sombrios em suas veias jovens despertaste!
Crianças mortas para ti se volveram…
Oh, retoma diante dele, docemente,
uma tranquila tarefa cotidiana – dá-lhe a paz
dos jardins e o contrapeso das noites…
              Retém-no…

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die dritte Elegie

Eines ist, die Geliebte zu singen. Ein anderes, wehe,
jenen verborgenen schuldigen Fluß-Gott des Bluts.
Den sie von weitem erkennt, ihren Jüngling, was weiß er
selbst von dem Herren der Lust, der aus dem Einsamen oft,
ehe das Mädchen noch linderte, oft auch als wäre sie nicht,
ach, von welchem Unkenntlichen triefend, das Gotthaupt
aufhob, aufrufend die Nacht zu unendlichem Aufruhr.
O des Blutes Neptun, o sein furchtbarer Dreizack.
O der dunkele Wind seiner Brust aus gewundener Muschel.
Horch, wie die Nacht sich muldet und höhlt. Ihr Sterne,
stammt nicht von euch des Liebenden Lust zu dem Antlitz
seiner Geliebten? Hat er die innige Einsicht
in ihr reines Gesicht nicht aus dem reinen Gestirn?

Du nicht hast ihm, wehe, nicht seine Mutter
hat ihm die Bogen der Braun so zur Erwartung gespannt.
Nicht an dir, ihn fühlendes Mädchen, an dir nicht
bog seine Lippe sich zum fruchtbarern Ausdruck.
Meinst du wirklich, ihn hätte dein leichter Auftritt
also erschüttert, du, die wandelt wie Frühwind?
Zwar du erschrakst ihm das Herz; doch ältere Schrecken
stürzten in ihn bei dem berührenden Anstoß.
Ruf ihn… du rufst ihn nicht ganz aus dunkelem Umgang.
Freilich, er will, er entspringt; erleichtert gewöhnt er
sich in dein heimliches Herz und nimmt und beginnt sich.
Aber begann er sich je?
Mutter, du machtest ihn klein, du warsts, die ihn anfing;
dir war er neu, du beugtest über die neuen
Augen die freundliche Welt und wehrtest der fremden.
Wo, ach, hin sind die Jahre, da du ihm einfach
mit der schlanken Gestalt wallendes Chaos vertratst?
Vieles verbargst du ihm so; das nächtlich-verdächtige Zimmer
machtest du harmlos, aus deinem Herzen voll Zuflucht
mischtest du menschlichern Raum seinem Nacht-Raum hinzu.
Nicht in die Finsternis, nein, in dein näheres Dasein
hast du das Nachtlicht gestellt, und es schien wie aus Freundschaft.
Nirgends ein Knistern, das du nicht lächelnd erklärtest,
so als wüßtest du längst, wann sich die Diele benimmt…
Und er horchte und linderte sich. So vieles vermochte
zärtlich dein Aufstehn; hinter den Schrank trat
hoch im Mantel sein Schicksal, und in die Falten des Vorhangs
paßte, die leicht sich verschob, seine unruhige Zukunft.

Und er selbst, wie er lag, der Erleichterte, unter
schläfernden Lidern deiner leichten Gestaltung
Süße lösend in den gekosteten Vorschlaf –:
schien ein Gehüteter… Aber innen: wer wehrte,
hinderte innen in ihm die Fluten der Herkunft?
Ach, da war keine Vorsicht im Schlafenden; schlafend,
aber träumend, aber in Fiebern: wie er sich ein-ließ.
Er, der Neue, Scheuende, wie er verstrickt war,
mit des innern Geschehens weiterschlagenden Ranken
schon zu Mustern verschlungen, zu würgendem Wachstum, zu tierhaft
jagenden Formen. Wie er sich hingab –. Liebte.
Liebte sein Inneres, seines Inneren Wildnis,
diesen Urwald in ihm, auf dessen stummem Gestürztsein
lichtgrün sein Herz stand. Liebte. Verließ es, ging die
eigenen Wurzeln hinaus in gewaltigen Ursprung,
wo seine kleine Geburt schon überlebt war. Liebend
stieg er hinab in das ältere Blut, in die Schluchten,
wo das Furchtbare lag, noch satt von den Vätern. Und jedes
Schreckliche kannte ihn, blinzelte, war wie verständigt.
Ja, das Entsetzliche lächelte… Selten
hast du so zärtlich gelächelt, Mutter. Wie sollte
er es nicht lieben, da es ihm lächelte. Vor dir
hat ers geliebt, denn, da du ihn trugst schon,
war es im Wasser gelöst, das den Keimenden leicht macht.

Siehe, wir lieben nicht, wie die Blumen, aus einem
einzigen Jahr; uns steigt, wo wir lieben,
unvordenklicher Saft in die Arme. O Mädchen,
dies: daß wir liebten in uns, nicht Eines, ein Künftiges, sondern
das zahllos Brauende; nicht ein einzelnes Kind,
sondern die Väter, die wie Trümmer Gebirgs
uns im Grunde beruhn; sondern das trockene Flußbett
einstiger Mütter –; sondern die ganze
lautlose Landschaft unter dem wolkigen oder
reinen Verhängnis –: dies kam dir, Mädchen, zuvor.

Und du selber, was weißt du –, du locktest
Vorzeit empor in dem Liebenden. Welche Gefühle
wühlten herauf aus entwandelten Wesen. Welche
Frauen haßten dich da. Was für finstere Männer
regtest du auf im Geäder des Jünglings? Tote
Kinder wollten zu dir… O leise, leise,
tu ein liebes vor ihm, ein verläßliches Tagwerk, – führ ihn
nah an den Garten heran, gib ihm der Nächte
Übergewicht…
              Verhalt ihn…

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Segunda Elegia

Todo Anjo é terrível. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,
pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.
Tempos remotos de Tobias, em que o mais radiante dentre vós
aparecia no limiar da casa humilde, sem intimidar,
para a viagem levemente disfarçado (jovem que outro jovem,
curioso, contemplava). Adiantasse agora o Arcanjo,
ameaça de trás das estrelas, um passo apenas
para o nosso lado: no grande sobressalto
destruir-nos-ia o próprio coração. Quem sois?

Precoces perfeições, vós, privilegiados,
perfil dos altos cumes, cimos alvorecentes
de toda criação – pólen da divindade em flor,
articulações de luz, corredores, escadas, tronos,
recintos da essência, escudos de alegria, tumultos
de êxtases tempestuosos, e, subitamente
solitários, espelhos cuja beleza reflui
restituída à face que se contempla.
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se –
exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
“circulas no meu sangue, este quarto, a primavera,
estão cheios de ti”. Inutilmente procuram nos reter.
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
e se dissipa. Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento, o que é nosso
flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
nele nos perdemos? E os Anjos,
retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem,
no turbilhão da volta a si mesmos. (Como o saberiam?)

Se o soubessem, os Amantes diriam
estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece
que tudo nos oculta. Olhai, as árvores são; as casas
que habitamos, resistem. Somente nós passamos,
permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou
quem sabe que indizível esperança.

Amantes, que vos bastais, qual nosso segredo?
Há contato entre vós. Teríeis provas?
Às vezes minhas mãos se reconhecem ou
meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.
Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.
Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?
Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro
– até que exausto, um suplique: basta! –, vós,
cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho
e que vos dissolveis para que o outro domine,
pergunto-vos: qual nosso segredo? Eu sei,
bem-aventurado é vosso contato, pois
as carícias sutilmente protegem, retêm
a duração pura; e o amplexo, não vos promete quase
a eternidade? Quando resistis ao sobressalto
dos primeiros olhares, à ansiosa espera
à janela, ou quando ultrapassais
o primeiro passeio, juntos,
num jardim: amantes, sois vós ainda?
Quando um no outro pousais os vossos
lábios, como taças, oh, como se evade
então, estranhamente, o embriagado.

Admirastes nas estelas gregas a prudência
do gesto humano? O amor e o adeus sobre as espáduas
pousavam de leve, como se de outra matéria fossem
feitos, que nós desconhecemos. Lembrai-vos das mãos que,
sem peso, se apoiavam, apesar dos corpos vigorosos. Senhores
de si mesmos, eles sabiam: aqui estamos,
em nosso palpável domínio; mais poderosamente
os deuses podem nos premir. Isso é assunto dos deuses.

Ah, encontrássemos também nós
uma estreita faixa de terra fértil, puramente
humana, entre a torrente e a rocha!
Pois nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora
e é impossível saciá-lo em figuras apaziguantes,
ou em corpos divinos que, imensos, o moderam.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die zweite Elegie

Jeder Engel ist schrecklich. Und dennoch, weh mir,
ansing ich euch, fast tödliche Vögel der Seele,
wissend um euch. Wohin sind die Tage Tobiae,
da der Strahlendsten einer stand an der einfachen Haustür,
zur Reise ein wenig verkleidet und schon nicht mehr furchtbar;
(Jüngling dem Jüngling, wie er neugierig hinaussah).
Träte der Erzengel jetzt, der gefährliche, hinter den Sternen
eines Schrittes nur nieder und herwärts: hochauf-
schlagend erschlüg uns das eigene Herz. Wer seid ihr?

Frühe Geglückte, ihr Verwöhnten der Schöpfung,
Höhenzüge, morgenrötliche Grate
aller Erschaffung, – Pollen der blühenden Gottheit,
Gelenke des Lichtes, Gänge, Treppen, Throne,
Räume aus Wesen, Schilde aus Wonne, Tumulte
stürmisch entzückten Gefühls und plötzlich, einzeln,
Spiegel: die die entströmte eigene Schönheit
wiederschöpfen zurück in das eigene Antlitz.

Denn wir, wo wir fühlen, verflüchtigen; ach wir
atmen uns aus und dahin; von Holzglut zu Holzglut
geben wir schwächern Geruch. Da sagt uns wohl einer:
ja, du gehst mir ins Blut, dieses Zimmer, der Frühling
füllt sich mit dir… Was hilfts, er kann uns nicht halten,
wir schwinden in ihm und um ihn. Und jene, die schön sind,
o wer hält sie zurück? Unaufhörlich steht Anschein
auf in ihrem Gesicht und geht fort. Wie Tau von dem Frühgras
hebt sich das Unsre von uns, wie die Hitze von einem
heißen Gericht. O Lächeln, wohin? O Aufschaun:
neue, warme, entgehende Welle des Herzens –;
weh mir: wir sinds doch. Schmeckt denn der Weltraum,
in den wir uns lösen, nach uns? Fangen die Engel
wirklich nur Ihriges auf, ihnen Entströmtes,
oder ist manchmal, wie aus Versehen, ein wenig
unseres Wesens dabei? Sind wir in ihre
Züge soviel nur gemischt wie das Vage in die Gesichter
schwangerer Frauen? Sie merken es nicht in dem Wirbel
ihrer Rückkehr zu sich. (Wie sollten sie’s merken.)

Liebende könnten, verstünden sie’s, in der Nachtluft
wunderlich reden. Denn es scheint, daß uns alles
verheimlicht. Siehe, die Bäume sind; die Häuser,
die wir bewohnen, bestehn noch. Wir nur
ziehen allem vorbei wie ein luftiger Austausch.
Und alles ist einig, uns zu verschweigen, halb als
Schande vielleicht und halb als unsägliche Hoffnung.

Liebende, euch, ihr in einander Genügten,
frag ich nach uns. Ihr greift euch. Habt ihr Beweise?
Seht, mir geschiehts, daß meine Hände einander
inne werden oder daß mein gebrauchtes
Gesicht in ihnen sich schont. Das gibt mir ein wenig
Empfindung. Doch wer wagte darum schon zu sein?
Ihr aber, die ihr im Entzücken des anderen
zunehmt, bis er euch überwältigt
anfleht: nicht mehr –; die ihr unter den Händen
euch reichlicher werdet wie Traubenjahre;
die ihr manchmal vergeht, nur weil der andre
ganz überhandnimmt: euch frag ich nach uns. Ich weiß,
ihr berührt euch so selig, weil die Liebkosung verhält,
weil die Stelle nicht schwindet, die ihr, Zärtliche,
zudeckt; weil ihr darunter das reine
Dauern verspürt. So versprecht ihr euch Ewigkeit fast
von der Umarmung. Und doch, wenn ihr der ersten
Blicke Schrecken besteht und die Sehnsucht am Fenster,
und den ersten gemeinsamen Gang, ein Mal durch den Garten:
Liebende, seid ihrs dann noch? Wenn ihr einer dem andern
euch an den Mund hebt und ansetzt –: Getränk an Getränk:
o wie entgeht dann der Trinkende seltsam der Handlung.

Erstaunte euch nicht auf attischen Stelen die Vorsicht
menschlicher Geste? war nicht Liebe und Abschied
so leicht auf die Schultern gelegt, als wär es aus anderm
Stoffe gemacht als bei uns? Gedenkt euch der Hände,
wie sie drucklos beruhen, obwohl in den Torsen die Kraft steht.
Diese Beherrschten wußten damit: so weit sind wirs,
dieses ist unser, uns so zu berühren; stärker
stemmen die Götter uns an. Doch dies ist Sache der Götter.

Fänden auch wir ein reines, verhaltenes, schmales
Menschliches, einen unseren Streifen Fruchtlands
zwischen Strom und Gestein. Denn das eigene Herz übersteigt uns
noch immer wie jene. Und wir können ihm nicht mehr
nachschaun in Bilder, die es besänftigen, noch in
göttliche Körper, in denen es größer sich mäßigt

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Primeira Elegia

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.

Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que o silêncio prodiga.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e a

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die erste Elegie

Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel
Ordnungen? und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen,
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
Und so verhalt ich mich denn und verschlucke den Lockruf
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen
wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht,
und die findigen Tiere merken es schon,
daß wir nicht sehr verläßlich zu Haus sind
in der gedeuteten Welt. Es bleibt uns vielleicht
irgendein Baum an dem Abhang, daß wir ihn täglich
wiedersähen; es bleibt uns die Straße von gestern
und das verzogene Treusein einer Gewohnheit,
der es bei uns gefiel, und so blieb sie und ging nicht.
O und die Nacht, die Nacht, wenn der Wind voller Weltraum
uns am Angesicht zehrt –, wem bliebe sie nicht, die ersehnte, sanft enttäuschende, welche dem einzelnen Herzen
mühsam bevorsteht. Ist sie den Liebenden leichter?
Ach, sie verdecken sich nur miteinander ihr Los.
Weißt du’s noch nicht? Wirf aus den Armen die Leere
zu den Räumen hinzu, die wir atmen; vielleicht daß die Vögel
die erweiterte Luft fühlen mit innigerm Flug.

Ja, die Frühlinge brauchten dich wohl. Es muteten manche
Sterne dir zu, daß du sie spürtest. Es hob
sich eine Woge heran im Vergangenen, oder
da du vorüberkamst am geöffneten Fenster,
gab eine Geige sich hin. Das alles war Auftrag.
Aber bewältigtest du’s? Warst du nicht immer
noch von Erwartung zerstreut, als kündigte alles
eine Geliebte dir an? (Wo willst du sie bergen,
da doch die großen fremden Gedanken bei dir
aus und ein gehn und öfters bleiben bei Nacht.)
Sehnt es dich aber, so singe die Liebenden; lange
noch nicht unsterblich genug ist ihr berühmtes Gefühl.
Jene, du neidest sie fast, Verlassenen, die du
so viel liebender fandst als die Gestillten. Beginn
immer von neuem die nie zu erreichende Preisung;
denk: es erhält sich der Held, selbst der Untergang war ihm
nur ein Vorwand, zu sein: seine letzte Geburt.

Aber die Liebenden nimmt die erschöpfte Natur
in sich zurück, als wären nicht zweimal die Kräfte,
dieses zu leisten. Hast du der Gaspara Stampa
denn genügend gedacht, daß irgend ein Mädchen,
dem der Geliebte entging, am gesteigerten Beispiel
dieser Liebenden fühlt: daß ich würde wie sie?
Sollen nicht endlich uns diese ältesten Schmerzen
fruchtbarer werden? Ist es nicht Zeit, daß wir liebend
uns vom Geliebten befrein und es bebend bestehn:
wie der Pfeil die Sehne besteht, um gesammelt im Absprung
mehr zu sein als er selbst. Denn Bleiben ist nirgends.

Stimmen, Stimmen. Höre, mein Herz, wie sonst nur
Heilige hörten: daß sie der riesige Ruf
aufhob vom Boden; sie aber knieten,
Unmögliche, weiter und achtetens nicht:
So waren sie hörend. Nicht, daß du Gottes ertrügest
die Stimme, bei weitem. Aber das Wehende höre,
die ununterbrochene Nachricht, die aus Stille sich bildet.
Es rauscht jetzt von jenen jungen Toten zu dir.
Wo immer du eintratst, redete nicht in Kirchen
zu Rom und Neapel ruhig ihr Schicksal dich an?
Oder es trug eine Inschrift sich erhaben dir auf,
wie neulich die Tafel in Santa Maria Formosa.
Was sie mir wollen? leise soll ich des Unrechts
Anschein abtun, der ihrer Geister
reine Bewegung manchmal ein wenig behindert.

Freilich ist es seltsam, die Erde nicht mehr zu bewohnen,
kaum erlernte Gebräuche nicht mehr zu üben,
Rosen, und andern eigens versprechenden Dingen
nicht die Bedeutung menschlicher Zukunft zu geben;
das, was man war in unendlich ängstlichen Händen,
nicht mehr zu sein, und selbst den eigenen Namen
wegzulassen wie ein zerbrochenes Spielzeug.
Seltsam, die Wünsche nicht weiterzuwünschen. Seltsam,
alles, was sich bezog, so lose im Raume
flattern zu sehen. Und das Totsein ist mühsam
und voller Nachholn, daß man allmählich ein wenig
Ewigkeit spürt. – Aber Lebendige machen
alle den Fehler, daß sie zu stark unterscheiden.
Engel (sagt man) wüßten oft nicht, ob sie unter
Lebenden gehn oder Toten. Die ewige Strömung
reißt durch beide Bereiche alle Alter
immer mit sich und übertönt sie in beiden.

Schließlich brauchen sie uns nicht mehr, die Früheentrückten,
man entwöhnt sich des Irdischen sanft, wie man den Brüsten
milde der Mutter entwächst. Aber wir, die so große
Geheimnisse brauchen, denen aus Trauer so oft
seliger Fortschritt entspringt –: könnten wir sein ohne sie?
Ist die Sage umsonst, daß einst in der Klage um Linos
wagende erste Musik dürre Erstarrung durchdrang;
daß erst im erschrockenen Raum, dem ein beinah göttlicher Jüngling
plötzlich für immer enttrat, die Leere in jene
Schwingung geriet, die uns jetzt hinreißt und tröstet und hilft.

Federico Garcia Lorca – Pranto por Ignacio Sánchez Mejías

1. A captura e a morte

Às cinco da tarde.
Eram as cinco em ponto dessa tarde

Um menino trouxe o lençol branco
às cinco da tarde.

Uma alcofa de cal já prevenida
às cinco da tarde.
O mais era só morte e apenas morte
às cinco da tarde.

O vento arrebatou os algodões
às cinco da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco da tarde.

Já luta com a pomba o leopardo
às cinco da tarde.
E uma coxa com uma haste desolada
às cinco da tarde.

Começaram os dobres do bordão
às cinco da tarde.
Sinos e sinos de arsênico e o fumo
às cinco da tarde.

Há nas esquinas grupos de silêncio
às cinco da tarde.
E só o touro coração acima!
às cinco da tarde.

Quando o suor de neve foi chegando
às cinco da tarde.
Quando a praça de iodo se cobriu
às cinco da tarde.

A morte pôs seus ovos na ferida
às cinco da tarde.

Às cinco da tarde.
Às cinco em ponto dessa tarde.
Ataúde com rodas é a cama
às cinco da tarde.

Ossos e flautas soam-lhe no ouvido
às cinco da tarde.

O touro já mugia por sua fronte
às cinco da tarde.

O quarto se irisava de agonia
às cinco da tarde.

Ao longe uma gangrena já vem vindo
às cinco da tarde.

Trompa de lírio pelas verdes virilhas
às cinco da tarde.

As feridas ardiam como sóis
às cinco da tarde.

E as gentes rebentavam as janelas
às cinco da tarde.

Às cinco da tarde.

Ai que terríveis cinco eram da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!

Eram as cinco em sombra dessa tarde!

2. O sangue derramado

Que eu não quero vê-lo!
Digam à lua que venha
que não quero ver o sangue
de Inácio marcando a areia.

Que eu não quero vê-lo!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas
e a praça parda do sonho
com salgueiros nas barreiras.
Que eu não quero vê-lo!

Que o recordar se me queima.
Avisai todo o jasmim
com sua brancura pequena!
Que eu não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo
passava sua triste língua
sobre um focinho de sangues
derramados pela arena,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.

Não.
Que eu não quero vê-lo!
Pelos degraus sobe Inácio
com sua morte toda às costas.

Ele buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.

Busca seu formoso corpo
e encontra seu sangue aberto.
Ai não me digam que o veja!

Não quero sentir o jorro
cada vez, com menos força;
esse jorrar que ilumina
o palanque e se desaba
no veludilho e no couro
da multidão tão sedenta.

Quem me grita que me assome?!
Ai não me digam que o veja!
Não se cerraram seus olhos
quando viu os cornos cerca,
porém as mães mais terríveis
levantaram a cabeça.

E pelas ganadarias,
houve um ar de voz secreta
gritando a touros celestes,
maiorais de névoa pálida.

Não houve em Sevilha príncipe
que lhe possa comparar-se,
nem espada como era a sua,
nem coração de verdade.

Como um rio de leões
sua força maravilhosa,
e como um torso de mármore
a desenhada prudência.

Um ar de Roma andaluza
a cabeça lhe dourava
onde o seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.

Que grão toureiro na praça!
Que bom serrano na serra!
Que brando era com as espigas!
Que duro com as esporas!
Que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as últimas
bandarilhas todas treva!

Porém já dorme sem fim.
Já os musgos maila erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.

E já seu sangue por aí vem cantando:
cantando por marinhas e por prados,
e resvalando pelos cornos hirtos,
vacilando sem alma pela névoa
tropeçando com milhares de patas
como uma longa, obscura e triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir de altas estrelas.

Ó branco muro de Espanha!
Ó negro touro de pena!
Ó sangue duro de Inácio!
Ó rouxinol de suas veias!

Não.
Que não quero vê-lo!
Que não há cálix que o contenha,
que não há andorinhas que o bebam,
não há de orvalho luz que o esfrie,
nem canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.

Não.
Eu não quero vê-lo!

3. Corpo presente

A pedra é uma fronte adonde os sonhos gemem
sem ter as águas curvas nem ciprestes gelados.

A pedra são uns ombros para levar o tempo
com árvores de lágrimas e faixas e planetas.
Já vi chuvas cinzentas correndo para as ondas,
levantando os seus ternos braços tão esburacados,
para não ser caçadas pela pedra estendida
que seus membros desata sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes e nublados,
esqueletos de pássaros e lobos de penumbra;
porém não dá nem sons, nem cristais, nem fogo,
mas praças e mais praças e outras praças sem muros.

E já está sobre a pedra Inácio o bem-nascido.
Já se acabou. E agora? Contemplai sua imagem:
a morte o recobriu de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de obscuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra por sua boca.
O ar como um louco deixa o peito que se afunda,
e o Amor, empapado em lágrimas de neve,
aquece-se nos cumes das ganadarias.

Que dizem? Um silêncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinóis
e vemo-la afastar-se em abismos sem fundo.

Quem o sudário enruga? É falso quanto diz!
Ninguém por aqui canta, nem pelos cantos chora,
nem co’as esporas pica, nem a serpente espanta,
aqui não quero mais do que os redondos olhos
para ver esse corpo sem possível descanso.

Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que cavalos domam e dominam os rios:
os homens a quem tine o esqueleto e cantam
com uma boca cheia de sol e pedregais.

Aqui os quero eu ver. Diante desta pedra.
Diante deste corpo com as rédeas quebradas.
Eu quero que me ensinem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me ensinem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e profundas margens,
para levar o corpo de Inácio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda dessa lua
que finge criança triste ser uma rês imóvel;
que se perca na noite sem cânticos dos peixes
e na maldade branca do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem o seu rosto com lenços
para que se acostume à morte que o arrasta.
Vai-te, Inácio! Não sintas o ardente bramido.
Dorme, voa, repousa: também se morre o mar.

4. Alma ausente

Não te conhecem touro nem figueira,
nem cavalo ou formiga da tua casa.
Nem o menino te conhece, ou a tarde,
porque tu estás morto para sempre.

Não te conhecem os lombos da pedra,
nem o plaino negro aonde te destroças.
Não te conhece uma saudade muda
porque tu estás morto para sempre.

Há-de vir o Outono com seus búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quer fitar-te nos teus olhos
porque tu estás morto para sempre.

Porque tu estás morto para sempre,
como todos os mortos pela Terra,
como todos os mortos que se olvidam
em um montão de cães que se apagaram.

Ninguém já te conhece. Não. Mas eu te canto.

Eu canto antes de mais o teu perfil e graça.
A madureza insigne do teu conhecimento.
Teu apetite de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
e recordo uma brisa triste nos olivais.

Trad.: Jorge de Sena

Llanto por Ignacio Sánchez Mejías

1. La cogida y la muerte

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde.

El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde.
Y el óxido sembró cristal y níquel
a las cinco de la tarde.
Ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde.
Y un muslo con un asta desolada
a las cinco de la tarde.
Comenzaron los sones del bordón
a las cinco de la tarde.
Las campanas de arsénico y el humo
a las cinco de la tarde.
En las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde.
¡Y el toro, solo corazón arriba!
a las cinco de la tarde.
Cuando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde,
cuando la plaza se cubrió de yodo
a las cinco de la tarde,
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
A las cinco en punto de la tarde.

Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde,
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

2. La sangre derramada

¡Que no quiero verla!

Dile a la luna que venga,
que no quiero ver la sangre
de Ignacio sobre la arena.

¡Que no quiero verla!

La luna de par en par,
caballo de nubes quietas,
y la plaza gris del sueño
con sauces en las barreras

¡Que no quiero verla!

Que mi recuerdo se quema.
¡Avisad a los jazmines
con su blancura pequeña!

¡Que no quiero verla!

La vaca del viejo mundo
pasaba su triste lengua
sobre un hocico de sangres
derramadas en la arena,
y los toros de Guisando,
casi muerte y casi piedra,
mugieron como dos siglos
hartos de pisar la tierra.

No.

¡Que no quiero verla!

Por las gradas sube Ignacio
con toda su muerte a cuestas.
Buscaba el amanecer,
y el amanecer no era.
Busca su perfil seguro,
y el sueño lo desorienta.
Buscaba su hermoso cuerpo
y encontró su sangre abierta.
¡No me digáis que la vea!
No quiero sentir el chorro
cada vez con menos fuerza;
ese chorro que ilumina
los tendidos y se vuelca
sobre la pana y el cuero
de muchedumbre sedienta.
¡Quién me grita que me asome!
¡No me digáis que la vea!
No se cerraron sus ojos
cuando vio los cuernos cerca,
pero las madres terribles
levantaron la cabeza.
Y a través de las ganaderías,
hubo un aire de voces secretas
que gritaban a toros celestes,
mayorales de pálida niebla.
No hubo príncipe en Sevilla
que comparársele pueda,
ni espada como su espada,
ni corazón tan de veras.
Como un río de leones
su maravillosa fuerza,
y como un torso de mármol
su dibujada prudencia.
Aire de Roma andaluza
le doraba la cabeza
donde su risa era un nardo
de sal y de inteligencia.
¡Qué gran torero en la plaza!
¡Qué gran serrano en la sierra!
¡Qué blando con las espigas!
¡Qué duro con las espuelas!
¡Qué tierno con el rocío!
¡Qué deslumbrante en la feria!
¡Qué tremendo con las últimas
banderillas de tiniebla!
Pero ya duerme sin fin.
Ya los musgos y la hierba
abren con dedos seguros
la flor de su calavera.
Y su sangre ya viene cantando:
cantando por marismas y praderas,
resbalando por cuernos ateridos
vacilando sin alma por la niebla,
tropezando con miles de pezuñas
como una larga, oscura, triste lengua,
para formar un charco de agonía
junto al Guadalquivir de las estrellas.
¡Oh blanco muro de España!
¡Oh negro toro de pena!
¡Oh sangre dura de Ignacio!
¡Oh ruiseñor de sus venas!
No.

¡Que no quiero verla!

Que no hay cáliz que la contenga,
que no hay golondrinas que se la beban,
no hay escarcha de luz que la enfríe,
no hay canto ni diluvio de azucenas,
no hay cristal que la cubra de plata.
No.

¡Yo no quiero verla!

3. Cuerpo presente

La piedra es una frente donde los sueños gimen
sin tener agua curva ni cipreses helados.
La piedra es una espalda para llevar al tiempo
con árboles de lágrimas y cintas y planetas.

Yo he visto lluvias grises correr hacia las olas
levantando sus tiernos brazos acribillados,
para no ser cazadas por la piedra tendida
que desata sus miembros sin empapar la sangre.

Porque la piedra coge simientes y nublados,
esqueletos de alondras y lobos de penumbra;
pero no da sonidos, ni cristales, ni fuego,
sino plazas y plazas y otras plazas sin muros.

Ya está sobre la piedra Ignacio el bien nacido.
Ya se acabó; ¿qué pasa? Contemplad su figura:
la muerte le ha cubierto de pálidos azufres
y le ha puesto cabeza de oscuro minotauro.

Ya se acabó. La lluvia penetra por su boca.
El aire como loco deja su pecho hundido,
y el Amor, empapado con lágrimas de nieve
se calienta en la cumbre de las ganaderías.

¿Qué dicen? Un silencio con hedores reposa.
Estamos con un cuerpo presente que se esfuma,
con una forma clara que tuvo ruiseñores
y la vemos llenarse de agujeros sin fondo.

¿Quién arruga el sudario? ¡No es verdad lo que dice!
Aquí no canta nadie, ni llora en el rincón,
ni pica las espuelas, ni espanta la serpiente:
aquí no quiero más que los ojos redondos
para ver ese cuerpo sin posible descanso.

Yo quiero ver aquí los hombres de voz dura.
Los que doman caballos y dominan los ríos;
los hombres que les suena el esqueleto y cantan
con una boca llena de sol y pedernales.

Aquí quiero yo verlos. Delante de la piedra.
Delante de este cuerpo con las riendas quebradas.
Yo quiero que me enseñen dónde está la salida
para este capitán atado por la muerte.

Yo quiero que me enseñen un llanto como un río
que tenga dulces nieblas y profundas orillas,
para llevar el cuerpo de Ignacio y que se pierda
sin escuchar el doble resuello de los toros.

Que se pierda en la plaza redonda de la luna
que finge cuando niña doliente res inmóvil;
que se pierda en la noche sin canto de los peces
y en la maleza blanca del humo congelado.

No quiero que le tapen la cara con pañuelos
para que se acostumbre con la muerte que lleva.
Vete, Ignacio: No sientas el caliente bramido.
Duerme, vuela, reposa: ¡También se muere el mar!

4. Alma ausente

No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.

No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.

El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y monjes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.

Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.

No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de tu boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegría.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.

John Ashbery – Medo da morte

Que há comigo agora,
é assim que eu fiquei?
Não há estado livre dos limites
do antes e depois? Hoje a janela está aberta

e o ar jorra para dentro com notas de piano
nas suas saias, como a dizer, “Olha, John,
eu trouxe isso e aquilo” – ou seja,
alguns Beethovens, uns Brahms,

umas notas escolhidas de Poulenc… Sim,
está voltando a ficar livre, o ar, tem que seguir
voltando, pois é só para isso que serve.
Quero ficar com ele por causa do medo

que me impede de subir certos degraus,
bater em certas portas, medo de envelhecer
sozinho, e de não encontrar ninguém no fim da tarde
do caminho, salvo outro eu mesmo

cumprimentado bruscamente: “Você andou por aí
mas estamos juntos novamente, que é o que conta.”
Ar em meu caminho, você poderia encurtar isso,
mas a brisa cessou e o silêncio é a última palavra.

Trad.: Nelson Ascher

Fear of Death

What is it now with me
And is it as I have become?
Is there no state free from the boundry lines
Of before and after? The window is open today

And the air pours in with piano notes
In its skirts, as though to say, “Look, John,
I’ve brought these and these” – that is,
A few Beethovens, some Brahmses,

A few choice Poulenc notes… Yes,
It is being free again, the air, it has to keep coming back
Because that’s all it’s good for.
I want to stay with it out of fear

That keeps me from walking up certain steps,
Knocking at certain doors, fear of growing old
Alone, and of finding no one at the evening end
Of the path except another myself

Nodding a curt greeting: “Well, you’ve been awhile
But now we’re back together, which is what counts.”
Air in My path, you could shorten this,
But the breeze has dropped, and silence is the last word.

Álvaro de Campos – Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Horácio – Ode 1/11

Não busques (é tabu!) saber que fim, Leucónoe,
os deuses nos reservam. Põe de lado o horoscopo
da babilônia e aceita: o que há de ser, será,
quer nos dê Jove mais invernos, quer só este
que em rochas quebra o mar Tirreno. Vive, bebe
teu vinho e talha, ao curto prazo, anseios longos.
Enquanto eu falo, o tempo evade-se invejoso.
Apanha o dia e não confies no amanhã.

Trad.: Nelson Ascher

1/11

Tu ne quaesieris (scire nefas) quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati!
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Attila József – Dói demais

A morte atenta
de dentro e fora te afugenta
(ratinho oculto com receio)

e, enquanto arderes,
vais procurar junto às mulheres
refúgio em braço, joelho e seio.

Mais que o calor
do colo afável, mais que o ardor,
precisar muito é que te apressa;

assim, quem quer
que possa abraça uma mulher
até que a boca empalideça.

Fardo supremo
é ter que amar, mas sumo prêmio.
Quem ama e não encontra um par

é, na miséria
de seu desterro, como a fera
desamparada ao defecar.

Outras guaridas
não há, mesmo que armado agridas
a própria mãe, homem ousado!

Só que houve, um dia,
uma mulher que me entendia
e, ainda assim, me pôs de lado.

Sou pária em meio
da espécie. Ornando-se de anseio
e angústia, zumbe-me a cabeça:

seu som contínuo,
que nem chocalho que um menino
chacoalhe ao ficar só, não cessa.

Como se opor
e o que fazer em seu favor?
Se o descobrir não me envergonho.

Está provado
que o próprio mundo põe de lado
quem trema ao sol e tema o sonho.

Toda a cultura
me foge tal qual, na ventura
alheia, a roupa cai do amante.

Mas, vendo a morte
caçoar-me, que ela nem se importe
e eu sofra só – não é o bastante?

Dói, ao recém-
nascido, o parto, e à mãe também.
Reduz-se a dor quando é conjunta.

Eu, se me esmero
cantando a dor, ganho dinheiro
e a mim a infâmia é que se junta.

Basta! – Garotos,
que vossos olhos ceguem rotos
onde, por perto dela, andais.

Vós, inocentes,
gritai sob botas inclementes,
dizendo-lhe que dói demais.

Cães adestrados,
sede na rua atropelados
a lhe ganir que dói demais.

E vós, gestantes,
não deis à luz, abortai antes
e lhe chorai que dói demais.

Gente sadia,
adoecei e, na agonia,
lhe sussurrai que dói demais.

Homens que houver
se engalfinhando por mulher,
não silencieis que dói demais.

Cavalos, touros,
à espera dos jugos vindouros,
gemei castrados: dói demais.

Peixes nadando
mudos sob gelo, arfai-lhe quando
o anzol fisgar-vos: dói demais.

Tudo de vivo
que a dor aflige sem alívio,
queime-se a terra que habitais-

vinde tisnados
e, junto à cama dela, aos brados,
bramai comigo: dói demais.

Que saiba disso
a vida toda: por capricho,
ela negou-se por inteiro,

mandando embora
um ser em fuga dentro e fora
de seu refúgio derradeiro.

Trad.: Nelson Ascher

Peguei aqui: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il1004201111.htm

Nagyon Fáj

Kivül-belől
leselkedő halál elől
(mint lukba megriadt egérke)
amíg hevülsz,
az asszonyhoz ugy menekülsz,
hogy óvjon karja, öle, térde.

Nemcsak a lágy,
meleg öl csal, nemcsak a vágy,
de odataszit a muszáj is –

ezért ölel
minden, ami asszonyra lel,
mig el nem fehérül a száj is.

Kettős teher
s kettős kincs, hogy szeretni kell.
Ki szeret s párra nem találhat,

oly hontalan,
mint amilyen gyámoltalan
a szükségét végző vadállat.

Nincsen egyéb
menedékünk; a kés hegyét
bár anyádnak szegezd, te bátor!

És lásd, akadt
nő, ki érti e szavakat,
de mégis ellökött magától.

Nincsen helyem
így, élők közt. Zúg a fejem,
gondom s fájdalmam kicifrázva;

mint a gyerek
kezében a csörgő csereg,
ha magára hagyottan rázza.

Mit kellene
tenni érte és ellene?
Nem szégyenlem, ha kitalálom,

hisz kitaszit
a világ így is olyat, akit
kábít a nap, rettent az álom.

A kultura
ugy hull le rólam, mint ruha
másról a boldog szerelemben –

de az hol áll,
hogy nézze, mint dobál halál
s még egyedül kelljen szenvednem?

A csecsemő
is szenvedi, ha szül a nő.
Páros kínt enyhíthet alázat.

De énnekem
pénzt hoz fájdalmas énekem
s hozzám szegődik a gyalázat.

Segítsetek!
Ti kisfiuk, a szemetek
pattanjon meg ott, ő ahol jár.

Ártatlanok,
csizmák alatt sikongjatok
és mondjátok neki: Nagyon fáj.

Ti hű ebek,
kerék alá kerüljetek
s ugassátok neki: Nagyon fáj.

Nők, terhetek
viselők, elvetéljetek
és sirjátok neki: Nagyon fáj.

Ép emberek,
bukjatok, összetörjetek
s motyogjátok neki: Nagyon fáj.

Ti férfiak,
egymást megtépve nő miatt,
ne hallgassátok el: Nagyon fáj.

Lovak, bikák,
kiket, hogy húzzatok igát,
herélnek, rijjátok: Nagyon fáj.

Néma halak,
horgot kapjatok jég alatt
és tátogjatok rá: Nagyon fáj.

Elevenek,
minden, mi kíntól megremeg,
égjen, hol laktok, kert, vadon táj –

s ágya körül,
üszkösen, ha elszenderül,
vakogjatok velem: Nagyon fáj.

Hallja, mig él.
Azt tagadta meg, amit ér.
Elvonta puszta kénye végett

kivül-belől
menekülő élő elől
a legutolsó menedéket.

1936. október-november