Carlos Rennó – HINO ao Inominável

Letra: Carlos Rennó; Música: Chico Brown e Pedro Luís

HINO ao Inominável

“Sou a favor da ditadura”, disse ele,
“Do pau de arara e da tortura”, concluiu.
“Mas o regime, mais do que ter torturado,
Tinha que ter matado trinta mil”.
E em contradita ao que afirmou, na caradura
Disse: “Não houve ditadura no país”.

E no real o incrível, o inacreditável
Entrou que nem um pesadelo, infeliz,
Ao som raivoso de uma voz inconfiável
Que diz e mente e se desmente e se desdiz.

Disse que num quilombo “os afrodescendentes
Pesavam sete arrobas” – e daí pra mais:
Que “não serviam nem pra procriar”,
Como se fôssemos, nós negros, animais.
E ainda insiste que não é racista
E que racismo não existe no país.

Como é possível, como é aceitável
Que tal se diga e fique impune quem o diz?
Tamanha injúria não inocentável,
Quem a julgou, que júri, que juiz?

Disse que agora “o índio está evoluindo,
Cada vez mais é um ser humano igual a nós.
Mas isolado é como um bicho no zoológico”,
E decretou e declarou de viva voz:
“Nem um centímetro a mais de terra indígena!,
Que nela jaz muita riqueza pro país”.

Se pronuncia assim o impronunciável
Tal qual o nome que tal “hino” nunca diz,
Do inumano ser, o ser inominável,
Do qual emanam mil pronunciamentos vis.

Disse que se tivesse um filho homossexual,
Preferiria que o progênito “morresse”.
Pruma mulher disse que não a estupraria,
Porque “você é feia, não merece”.
E ainda disse que a mulher, “porque engravida”,
“Deve ganhar menos que o homem” no país.

Por tal conduta e atitude deplorável,
Sempre o comparam com alguns quadrúpedes.
Uma maldade, uma injustiça inaceitável!
Tais animais são mais afáveis e gentis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou o tema ambiental de “importante
Só pra vegano que só come vegetal”;
Chamou de “mentirosos” dados científicos
Do aumento do desmatamento florestal.
Disse que “a Amazônia segue intocada,
Praticamente preservada no país”.

E assim negou e renegou o inegável,
As evidências que a Ciência vê e diz,
Da derrubada e da queimada comprovável
Pelas imagens de satélites.

E proclamou : “Policial tem que matar,
Tem que matar, senão não é policial.
Matar com dez ou trinta tiros o bandido,
Pois criminoso é um ser humano anormal.
Matar uns quinze ou vinte e ser condecorado,
Não processado” e condenado no país.

Por essa fala inflexível, inflamável,
Que só a morte, a violência e o mal bendiz,
Por tal discurso de ódio, odiável,
O que resolve são canhões, revólveres.

“A minha especialidade é matar,
Sou capitão do exército”, assim grunhiu.
E induziu o brasileiro a se armar,
Que “todo mundo, pô, tem que comprar fuzil”,
Pois “povo armado não será escravizado”,
Numa cruzada pela morte no país

E num desprezo pela vida inolvidável,
Que nem quando lotavam UTIs
E o número de mortos era inumerável,
Disse “E daí? Não sou coveiro”. “E daí?”

“Os livros são hoje ‘um montão de amontoado’
De muita coisa escrita”, veio a declarar.
Tentou dizer “conclamo” e disse “eu canclomo”;
Não sabe conjugar o verbo “concl…amar”.
Clamou que “no Brasil tem professor demais”,
Tal qual um imbecil pra imbecis.

Vigora agora o que não é ignorável:
Os ignorantes ora imperam no país
(O que era antes, ó pensantes, impensável)…
Quem é essa gente que não sabe o que diz?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou de “herói” um coronel torturador
E um capitão miliciano e assassino.
Chamou de “escória” bolivianos, haitianos…
De “paraíba” e “pau de arara” o nordestino.
E diz que “ser patrão aqui é uma desgraça”,
E diz que “fome ninguém passa no país”.

Tal qual num filme de terror, inenarrável,
Em que a verdade não importa nem se diz,
Desenrolou-se, incontível, incontável,
Um rol idiota de chacotas e pitis.

Disse que mera “fantasia” era o vírus
E “histeria” a reação à pandemia;
Que brasileiro “pula e nada no esgoto,
Não pega nada”, então também não pegaria
O que chamou de “gripezinha” e receitou (sim!),
Sim, cloroquina, e não vacina, pro país.

E assim sem ter que pôr à prova o improvável,
Um ditador tampouco põe pingo nos is,
E nem responde, falador irresponsável,
Por todo ato ou toda fala pros Brasis.

E repetiu o mote “Deus, pátria e família”
Do integralismo e da Itália do fascismo,
Colando ao lema uma suspeita “liberdade”…
Tal qual tinha parodiado do nazismo
O slogan “Alemanha acima de tudo”,
Pondo ao invés “Brasil” no nome do país.

E qual num sonho horroroso, detestável,
A gente viu sem crer o que não quer nem quis:
Comemorarem o que não é memorável,
Como sinistras, tristes efemérides…

Já declarou: “Quem queira vir para o Brasil
Pra fazer sexo com mulher, fique à vontade.
Nós não podemos promover turismo gay,
Temos famílias”, disse com moralidade.
E já gritou um dia: “Toda minoria
Tem de curvar-se à maioria!” no país.

E assim o incrível, o inacreditável,
Se torna natural, quanto mais se rediz,
E a intolerância, essa sim intolerável,
Nessa figura dá chiliques mis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Por vezes saem, caem, soam como fezes
Da sua boca cada som, cada sentença…
É um nonsense, é um caô, umas fake-news,
É um libelo leviano ou uma ofensa.
Porque mal pensa no que diz, porque mal pensa,
“Não falo mais com a imprensa”, um dia diz.

Mas de fanáticos a horda lamentável,
Que louva a volta à ditadura no país,
A turba cega-surda surta, insuportável,
E grita “mito!”, “eu autorizo!”, e pede “bis!”

E disse “merda, bosta, porra, putaria,
Filho da puta, puta que pariu, caguei!”
E a cada internação tratando do intestino
E a cada termo grosso e um “Talquei?”,
O cheiro podre da sua retórica
Escatológica se espalha no país.

“Sou imorrível, incomível e imbrochável”,
Já se gabou em sua tão caracterís-
Tica linguagem baixo nível, reprovável,
Esse boçal ignaro, rei de mimimis.

Mas nada disse de Moise Kabagambe,
O jovem congolês que foi aqui linchado.
Do caso Evaldo Rosa, preto, musicista,
Com a família no automóvel baleado,
Disse que a tropa “não matou ninguém”, somente
“Foi um incidente” oitenta tiros de fuzis…

“O exército é do povo e não foi responsável”,
Falou o homem da gravata de fuzis,
Que é bem provável ser-lhe a vida descartável,
Sendo de negro ou de imigrante no país.

Bradou que “o presidente já não cumprirá
Mais decisão” do magistrado do Supremo,
Ao qual se dirigiu xingando: “Seu canalha!”
Mas acuado recuou do tom extremo,
E em nota disse: “Nunca tive intenção
(Não!) De agredir quaisquer Poderes” do país.

Falhou o golpe mas safou-se o impeachável,
Machão cagão de atos pusilânimes,
O que talvez se ache algum herói da Marvel
Mas que tá mais pra algum bandido de gibis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

E sugeriu pra poluição ambiental:
“É só fazer cocô, dia sim, dia não”.
E pra quem sugeriu feijão e não fuzil:
“Querem comida? Então, dá tiro de feijão”.
É sem preparo, sem noção, sem compostura.
Sua postura com o posto não condiz.

No entanto “chega! […] vai agora [inominável]”,
Cravou o maior poeta vivo, no país,
E ecoou o coro “fora, [inominável]!”
E o panelaço das janelas nas metrópoles!

E numa live de golpista prometeu:
“Sem voto impresso não haverá eleição!”
E praguejou pra jornalistas: “Cala a boca!
Vocês são uma raça em extinção!”
E no seu tosco português ele não pára:
Dispara sempre um disparate o que maldiz.

Hoje um mal-dito dito dele é deletável
Pelo Insta, Face, YouTube e Twitter no país.
Mas para nós, mais do que um post, é enquadrável
O impostor que com o posto não condiz.

Disse que não aceitará o resultado
Se derrotado na eleição da nossa história,
E: “Eu tenho três alternativas pro futuro:
Ou estar preso, ou ser morto ou a vitória”,
Porque “somente Deus me tira da cadeira
De presidente” (Oh Deus proteja esse país!”).

Tivéssemos um parlamento confiável,
Sem x comparsas seus cupinchas, cúmplices,
E seu impeachment seria inescapável,
Com n inquéritos, pedidos, CPIs.

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Não há cortina de fumaça indevassÁvel
Que encubra o crime desses tempos inci-vis
E tampe o sol que vem com o dia inadiÁvel
E brilha agora qual farol na noite gris.
É a esperança que renasce onde HÁ véu,
De um horizonte menos cinza e mais feliz.
É a passagem muito além do instagramÁvel
Do pesadelo à utopia por um triz,
No instante crucial de liberdade instÁvel
Pros democráticos de fato, equânimes,
Com a missão difícil mas realizável
De erguer das cinzas como fênix o país.

E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Visite também o site do letrista. Só tem coisa boa lá: http://carlosrenno.com/

Caetano Veloso – O Homem Velho

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, livros, ditos como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

REPUBLICAÇÃO: Vídeo e letra publicados no blog originalmente em 18/04/2016

Nelson Santander – Renata Maria

O episódio em que Chico Buarque foi xingado por um grupo de jovens aparentemente bêbados no final do ano passado suscitou uma série de discussões nas redes sociais, colocando em polos opostos, uma vez mais, de um lado, os defensores do PT e da esquerda de um modo geral, além dos fãs do compositor, e, de outro, os que querem ver o PT – e todos os que se identificam com o partido, como o compositor – varridos da face do planeta.

Acho que o assunto já foi exaustivamente debatido e acredito que a grosseria cometida contra o artista foi devidamente repudiada por aqueles que são detentores de um mínimo de bom senso: o fato de o Chico ter uma postura defensiva em relação ao PT não autoriza ninguém a xingá-lo na rua (“Você é um merda!”, vociferou um dos playboys).

No meio dos inúmeros impropérios bradados contra o artista pelos que defendiam os playboys nas redes sociais, chamou-me a atenção aqueles que diziam respeito à sua obra. Não foram poucos os que tacharam o compositor de “medíocre” e seu trabalho de “chato” ou de baixa qualidade. Provavelmente a maioria dos que emitiu sua opinião contra o Chico artista não conhece nada de seu trabalho. E se conhecem, realmente não gostam. A arte de Chico, de fato, não é para todos. Melodias pouco óbvias e letras mais elaboradas do que o habitual na música brasileira tornam seu trabalho praticamente inacessível ao grande público. Os demais críticos simplesmente não tiveram a habilidade de separar o Chico cidadão e eleitor do PT do Chico artista, e atacaram este pela orientação política daquele.

E houve aqueles que, embora reconheçam que o artista é detentor “de um certo talento”, suscitaram a existência de uma espécie de corte temporal na qualidade de seu trabalho. Para estes, a última canção de boa qualidade do Chico foi composta nos anos 80 e nada do que ele produziu de lá para cá prestaria. Será mesmo?

Olhando a discografia do Chico dos anos 90 até hoje, podemos ver que ele lançou cinco discos de canções inéditas (com algumas regravações): Paratodos (1993), As Cidades (1998), Cambaio (2001), Carioca (2006) e Chico (2011). Os dois primeiros são de altíssimo nível, e contam com canções que, se não superam, rivalizam com o que de melhor o compositor produziu nos anos anteriores. São de Paratodos (1993) as obras primas “Paratodos” (em que o compositor faz sua profissão de fé), “Choro Bandido”, “Tempo e Artista”, “De Volta ao Samba” (cuja aparente simplicidade melódica esconde um samba de melodia extremamente sofisticada), “A Foto da Capa” e aquela que é uma das mais belas canções compostas pelo artista, “Futuros Amantes”:

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

De As Cidades (1998), destacam-se: “Sonhos Sonhos São”, “A Ostra e o Vento” (que tem essa linda estrofe: “Se o mar tem o coral / A estrela, o caramujo / Um galeão no lodo / Jogada num quintal / Enxuta, a ostra guarda o mar / No seu estojo”), “Assentamento” e a belíssima “Cecília”, que tinha versos como estes:

(…)
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos,
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí

Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores,
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo,
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir

Para Carioca (2006), Chico Buarque compôs (em parceria – a primeira – com Ivan Lins) uma verdadeira pérola chamada “Renata Maria”, que será objeto de análise deste artigo.

Para Luca Bacchini (in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos, organizado por Rinaldo de Fernandes), a letra de Renata Maria, “aparentemente insignificante”, chama a atenção pela sofisticação de sua construção, que contrastaria com a trivialidade da temática.

De que temática estamos falando?

De fato, a canção retrata uma história absurdamente simples: um homem vê uma mulher na praia (a quem ele chama de Renata Maria) e fica encantado por ela, passando a procura-la todos os dias na praia, em vão. Apenas isso. Mas, por baixo da aparente simplicidade do enredo, temos uma verdadeira ourivesaria na construção da letra da música, escancarando o talento do compositor no fazer poético.

A canção começa com uma descrição pictórica da primeira visão que o narrador tem de Renata Maria:

Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã
Tudo o que não era ela se desvaneceu
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês

Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar
Pássaros cristalizados no branco do céu
E eu, atolado na areia, perdia meus pés

Já de início, percebemos a obsessão do narrador pela musa da canção na repetição da palavra “ela” (inclusive nas rimas internas encontradas nas palavras  “tela” e “aquela”). O encantamento causado pelo surgimento da mulher objetificada prossegue a ponto de causar o desvanecimento de tudo o que estava ao alcance da vista do homem (Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês) e a imposição de uma percepção onírica da realidade (Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar / Pássaros cristalizados no branco do céu). A visão, a se crer no narrador, é de tirar o fôlego e de fazer perder o chão, o que se reflete no duplo sentido contido no verso E eu, atolado na areia, perdia meus pés.

A canção prossegue alterando o foco narrativo antes voltado para o contexto da visão do narrador para o seu eu interior, retornando em seguida, uma última vez, para o exterior. Acentua-se, também, a sensação de incapacidade de reação do personagem, que fica sem palavras diante da fulgurosa visão de sua musa saindo do mar:

Músicas imaginei
Mas o assombro gelou
Na minha boca as palavras que eu ia falar
Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar

Na sequência, vemos que o narrador passa a buscar sua musa, obsessivamente, dia após dia na mesma praia em que a viu saindo do mar:

Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis
Ou como algum salva-vidas no banco dos réus

É notável a força da qualidade poética contida no primeiro verso que, em poucas e bem colocadas palavras, dá a exata medida do estado de ânimo do narrador. Se, de um lado, a expressão dia após dia indica que o narrador visita a mesma praia por vários dias sucessivos, a menção aos olhos vazados de não a ver sugerem que o personagem não enxerga mais nada nem ninguém nesses longos dias, alimentados exclusivamente pela busca do objeto de seu desejo.

Os versos seguintes indicam que a busca é de uma quietude obstinada, mas inócua: o pescador que junta seus anzóis voltou de mãos vazias da pescaria; o salva-vidas no banco dos réus (que metáfora linda) nada fez o dia todo além de esperar.

A sequência de versos seguinte é primorosa:

Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher
Praia repleta de rastros em mil direções
Penso que todos os passos perdidos são meus

Luca Bacchini assim interpreta este trecho da canção:

“É noite e o homem fica sozinho na praia. Andando contra qualquer princípio da arte venatória, aproveita a escuridão para abandonar a posição passiva de espera e passar à procura ativa. Mas Renata Maria continua a escapar-lhe. Ainda nesses versos o significado expresso pelas palavras resulta enriquecido por sofisticadas engenharias linguísticas. O adjetivo “deserta”, repetido três vezes, assemelha-se a uma voz que ecoa dentro de um espaço vasto, vazio e paradoxalmente fechado. Embora a praia seja habitualmente um espaço aberto onde não se realiza o fenômeno do eco, estamos aqui numa paisagem surreal, petrificada e asfíxica, fechada em cada lado: atrás pelas montanhas, de frente pelas ondas suspensas, em cima pelo branco do céu e pelos pássaros cristalizados e embaixo pela areia. Ao mesmo tempo o adjetivo “deserta”, mesmo que se referindo ao lugar, fornece informações também sobre o protagonista. A sua repetição devolve também a angústia da busca infrutífera do homem que persegue, sem nunca achar, a personificação de uma obsessão. De fato, do ponto de vista prosódico e musical, a passagem do si bemol das primeiras sílabas ao mi da última – de(si b.)-ser(si b.)-ta(mi) – reproduz, cada vez que a palavra “deserta” é pronunciada, um efeito ofegante, como se quem fala tivesse apenas terminado uma corrida, ficando sem o ar suficiente para pronunciar a última sílaba.”

É noite, como o próprio protagonista deixa claro. A praia, vazia, está repleta de rastros em mil direções como seria de se esperar de um lugar que é, durante o dia, frequentado por inúmeras pessoas. O personagem, todavia, está tão obcecado em sua busca que afirma, categoricamente, que todos os passos perdidos são dele. Os versos têm um efeito imagético muito forte, mas sua força maior reside naquilo que revela sobre o estado de espírito do narrador: o de alguém completamente perdido por conta de sua obstinação.

A canção termina da mesma maneira com que acordamos de um sonho bom: com uma resignação encharcada de um sentimento de perda; perda de algo que se sabe inalcançável ou talvez inexistente.

Eu já sabia, meu Deus
Tão fulgurante visão
Não se produz duas vezes no mesmo lugar
Mas que danado fui eu
Enquanto Renata Maria saía do mar

Há uma resignação amarga na constatação de que, embora o personagem já soubesse disso de antemão, a fulgurante visão de Renata Maria não se reproduziria novamente naquela praia.

Os dois últimos versos indicam o destino do narrador. O adjetivo substantivo danado comporta, no contexto, ao menos duas interpretações.

A primeira delas tem a ver com a acepção mais vulgar do termo, no sentido de alguém que é muito esperto, malandro, travesso, arteiro. Nesse sentido, os versos mas que danado fui eu enquanto Renata Maria saía do mar adicionam um elemento novo à interpretação: o de que a visão da musa suscitou no narrador outro tipo de obsessão: a da lubricidade.

No entanto, danado é também sinônimo de condenado, o que implica dizer que o narrador reclama o seu destino de ter sido amaldiçoado para sempre assim que colocou os olhos naquela mulher que não mais retornará àquela praia. Ele sabe que teve uma breve visão da beleza absoluta e que a deixou escapar para nunca mais, tornando-se, assim, vítima de um momento de danação que se perpetuará no tempo, em sua memória.

Alguém ainda acha que o melhor Chico ficou nos anos 80?

Post Scriptum, em 07/02/16: Chico nunca esteve sozinho. Charles Baudelaire, há dois séculos, já havia escrito um poema magistral sobre o tema do encontro fortuito com a mulher desconhecida que fica gravada para sempre na memória do artista:

A Uma Passante – Charles Baudelaire

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

Trad.: Guilherme de Almeida

REPUBLICAÇÃO: o artigo foi originalmente publicado no blog em 15/04/2016. No ano seguinte, Chico lançaria o álbum Caravanas, com outras pequenas pérolas, como “Tua Cantiga” (que causou um certo ruído na esquerda entre as feministas) e “Massarandupió”. Dentre elas, a última do disco, As Caravanas, cuja letra, de tão boa, reproduzo na íntegra:

É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Ah, tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará

Sei não, mas tenho a impressão de que aqueles que criticavam o Chico em 2016, ao ver a letra dessa canção, devem ter odiado. Até o ser humano mais tosco consegue enxergar-se quando um espelho é colocado na sua cara.

Chico Buarque e Cristovão Bastos – Todo sentimento

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo
Da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo uma outra vez

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente
Doente
Prefiro então partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei, como encantado,
Ao lado teu

Chico Amaral e Samuel Rosa – As Noites

As ruas desse lugar
Conhecem bem
As noites longas, as noites pálidas
Quando eu te procurava

As casas desse lugar
Se lembrarão
Do nosso abraço, da sombra insólita
Espelho azul no chão

As ruas desse lugar
Agora eu sei
Sempre escutaram a nossa música
Quando eu te respirava

As pedras municipais
Se impregnaram
Da dupla imagem, da dupla solidão,
A sombra ali no chão

E, lá no céu, constelações
Num arranjo inusitado
O seu nome desenhado
– Pelo menos tinha essa ilusão

E, lá no céu, os astros
Num arranjo surpreendente
Se buscavam como a gente
– Pelo menos tinha essa ilusão

São milhares de estrelas
Singulares letras vivas no céu

Bruno Gouveia e Miguel Cunha – Impossível

Biquíni Cavadão

Tudo bem quando termina bem
E os seus olhos, e os seus olhos não estão rasos d’água
Mas eu sei que no coração ficaram muitas palavras
Um vocabulário inteiro de ilusão

Tudo que viceja também pode agonizar
E perder seu brilho em poucas semanas
E não podemos evitar que a vida trabalhe com o seu relógio invisível
Tirando o tempo de tudo que é perecível

É impossível, é impossível esquecer você
É impossível esquecer o que vivi
É impossível esquecer, o que senti

Tudo que morre fica vivo na lembrança
Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça
Mas antes que eu me esqueça, antes que tudo se acabe
Eu preciso, eu preciso, dizer a verdade

É impossível, é impossível esquecer você
É impossível esquecer o que vivi
É impossível esquecer, o que senti
É impossível!

Arnaldo Antunes – Lugar Nenhum

Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Eu não sou de nenhum lugar
Sou de lugar nenhum
Sou de lugar nenhum
Não sou de São Paulo
Não sou japonês
Não sou carioca
Não sou português
Não sou de Brasília
Não sou do Brasil
Nenhuma pátria me pariu

Eu não tô nem aí
Eu não tô nem aqui
Eu não tô nem aí

Renato Russo – Música Urbana 2

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana
Motocicletas querendo atenção às três da manhã
É só música urbana

Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana

Os uniformes, os cartazes
Cinemas e os lares
Favelas, coberturas
Quase todos os lugares
E mais uma criança nasceu
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana

Belchior – Comentários a Respeito de John

Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração

Sonho e escrevo em letras grandes de novo
pelos muros do país
João, o tempo andou mexendo com a gente, sim

John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente

Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração

Sob a luz do teu cigarro na cama
Teu rosto rouge, teu batom me diz
João, o tempo andou mexendo com a gente, sim

John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente

Belchior – Coração Selvagem

Um ano sem Belchior…

Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção
Esconda um beijo pra mim
Sob as dobras do blusão
Eu quero um gole de cerveja
No seu copo, no seu colo e nesse bar

Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja
Não quero o que a cabeça pensa
Eu quero o que a alma deseja
Arco-íris, anjo rebelde
Eu quero o corpo, tenho pressa de viver

Mas quando você me amar
Me abrace e me beije bem devagar
Que é para eu ter tempo
Tempo de me apaixonar
Tempo para ouvir o rádio no carro
Tempo para a turma do outro bairro ver e saber que eu te amo

Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente
Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente
Sim, já é outra viagem
E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver

Meu bem, mas quando a vida nos violentar
Pediremos ao bom Deus que nos ajude
Falaremos para a vida
Vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil
Meu coração é como vidro, como um beijo de novela

Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão
O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão
Andar caminho errado pela simples alegria de ser

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo

Talvez eu morra jovem, alguma curva do caminho
Algum punhal de amor traído completará o meu destino

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo
Meu bem, meu bem, meu bem

Meu bem, meu bem, meu bem
Que outros cantores chamam baby
Que outros cantores chamam baby
Que outros cantores chamam baby