Rui Costa – A Minha Bisavó

A minha bisavó
é um quadro na parede.
Roída pela traça, ela
sucumbe à dentição do tempo
nos seus olhos escuros de
discreta bruxa.
Um dia a minha bisavó
nem quadro há-de ser.
Continuará, apesar disso, a beber
a água do copo onde lavou
as cerejas (fingindo-se distraída)
e a arrazoar antes da visita
extemporânea aos vizinhos:
“se gostarem da visita, ficamos
todos contentes, se não gostarem
é muito bem feita”.

A minha bisavó hoje não responde
Mas há um par de meias novas na
minha memória, um prato de
cerejas.

Rui Costa – Breve

Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me “bom dia” mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.