Helder Moura Pereira – “Eras mesmo a fonte de tudo…”

Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamamos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificamos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.

Helder Moura Pereira – “Eu não tinha nada de felino…”

Eu não tinha nada de felino, tu sabias
que eu não tinha nada de felino.
Nenhum de nós se admirou quando
medi mal a distância e falhei o salto.
Enquanto ia no ar parecia que era
um salto bom, porém houve qualquer
coisa que correu mal e caí com estrondo
no chão. Ninguém riu. Não era caso
para rir. Grande ilusão ir pelo ar a pensar
que o salto podia ser bom, sem eu ter
nada de felino, sem nunca ter treinado,
sem fazer sequer aquecimento, sem
olho para medir distâncias. Saber medir
distâncias é uma coisa muito importante,
pode falhar-se a vida por milímetros.

Helder Moura Pereira – “Chegamos ao fim do dia…”

Chegamos ao fim do dia e cada um
pensa para seu lado que isto não
é vida, deixámos na terra os habituais
sinais com tanto de amor como
de desespero e, de mãos vazias,
de coração ainda com alguma coisa
mas quase vazio, batemos com a força
que nos resta, pela última vez, à porta
das sensações e a porta das sensações
abre-se-nos muito devagar
para uma esplendorosa noite cinzenta.