Louise Glück – Vésperas (7)

Eu sei o que você planejou, o que pretendia fazer quando me ensinou
a amar o mundo, tornando impossível
afastar-me completamente, fechar-me completamente outra vez –
está em toda parte; quando eu fecho meus olhos,
o canto dos pássaros, o aroma de lilás do início da primavera, o aroma de verão das rosas:
você quer apartar de mim, cada flor, cada conexão com a terra –
e porque você me magoou, e porque você me quer
desolada ao final, a menos que você me queira tão carente de esperança
eu me recusaria a enxergar que no fim
nada me restou, e acreditaria, ao invés disso,
que ao final apenas você foi deixado para mim.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

I know what you planned, what you meant to do, teaching me
to love the world, making it impossible
to turn away completely, to shut it out completely ever again —
it is everywhere; when I close my eyes,
birdsong, scent of lilac in early spring, scent of summer roses:
you mean to take it away, each flower, each connection with earth —
why would you wound me, why would you want me
desolate in the end, unless you wanted me so starved for hope
I would refuse to see that finally
nothing was left to me, and would believe instead
in the end you were left to me.

Louise Glück – Luz em retirada

Vocês eram como crianças pequenas,
sempre esperando por uma estória.
E eu já havia passado por isso muitas vezes;
eu estava cansado de contar estórias.
Então eu dei a vocês papel e lápis.
Dei-lhes canetas feitas de juncos que
eu mesmo havia reunido, à tarde, nos densos prados.
E lhes disse, escrevam sua própria história.

Depois de todos estes anos me ouvindo
eu achei que vocês soubessem
o que era uma estória.

Tudo o que vocês podiam fazer era chorar.
Vocês queriam que tudo lhes fosse contado
e que não precisassem pensar por si próprios.

Então percebi que vocês não poderiam pensar
com alguma ousadia ou paixão real;
Vocês ainda não tinham vivido suas próprias vidas,
suas próprias tragédias.
Então, eu lhes dei vidas, eu dei a vocês tragédias,
porque aparentemente só as ferramentas não eram suficientes.

Vocês jamais saberão o quão profundamente
me agrada vê-los sentados aí,
como seres independentes,
vê-los sonhando diante da janela aberta,
segurando os lápis que eu lhes dei
até a manhã de verão desaparecer na escrita.

A criação trouxe a vocês
grande excitação, como eu sabia que traria,
como sempre acontece no início.
E eu estou livre para fazer o que quiser agora,
para cuidar de outras coisas, na confiança
de que vocês não precisam mais de mim.

Trad.: Nelson Santander

Retreating light

You were like very young children,
always waiting for a story.
And I’d been through it all too many times;
I was tired of telling stories.
So I gave you the pencil and paper.
I gave you pens made of reeds
I had gathered myself, afternoons in the dense meadows.
I told you, write your own story.

After all those years of listening
I thought you’d know
what a story was.

All you could do was weep.
You wanted everything told to you
and nothing thought through yourselves.

Then I realized you couldn’t think
with any real boldness or passion;
you hadn’t had your own lives yet,
your own tragedies.
So I gave you lives, I gave you tragedies,
because apparently tools alone weren’t enough.

You will never know how deeply
it pleases me to see you sitting there
like independent beings,
to see you dreaming by the open window,
holding the pencils I gave you
until the summer morning disappears into writing.

Creation has brought you
great excitement, as I knew it would,
as it does in the beginning.
And I am free to do as I please now,
to attend to other things, in confidence
you have no need of me anymore.

Louise Glück – Presque Isle

Em cada vida, há um momento ou dois.
Em cada vida, um quarto em algum lugar, à beira-mar ou nas montanhas.

Sobre a mesa, um prato de damascos. Caroços em um cinzeiro branco.

Como todas as imagens, essas eram as condições de um pacto:
em seu rosto, tremor da luz do sol,
meu dedo pressionando seus lábios.
As paredes branco-azuladas; a pintura da mesa de baixo lascando um pouco.

Esse quarto ainda deve existir, no quarto andar,
com uma pequena varanda com vista para o oceano.
Um quarto branco quadrado, o sobrelençol dobrado para trás na beirada da cama.
Ele não se dissolveu em nada, na realidade.
Pela janela aberta, maresia, cheirando a iodo.

Cedo, de manhã: um homem chamando um garotinho de volta da água.
Aquele garotinho — ele teria vinte anos agora.
Por todo seu rosto, mechas de cabelos úmidos, riscadas de ruivo.
Musselina, lampejo de prata. Pesada jarra carregada de peônias brancas.

Trad.: Nelson Santander

Presque Isle

In every life, there’s a moment or two.
In every life, a room somewhere, by the sea or in the mountains.

On the table, a dish of apricots. Pits in a white ashtray.

Like all images, these were the conditions of a pact:
on your cheek, tremor of sunlight,
my finger pressing your lips.
The walls blue-white; paint from the low bureau flaking a little.

That room must still exist, on the fourth floor,
with a small balcony overlooking the ocean.
A square white room, the top sheet pulled back over the edge of the bed.
It hasn’t dissolved back into nothing, into reality.
Through the open window, sea air, smelling of iodine.

Early morning: a man calling a small boy back from the water.
That small boy — he would be twenty now.
Around your face, rushes of damp hair, streaked with auburn.
Muslin, flicker of silver. Heavy jar filled with white peonies.

Louise Glück – Ipomoea

Qual foi o meu crime na outra vida,
assim como nesta vida meu crime
é a dor, de modo que não me é
permitido ascender novamente,
nunca em nenhum sentido
me é permitido repetir minha vida,
ferida no espinheiro, toda
beleza terrena um castigo
tão meu quanto seu —
Fonte do meu sofrimento, por que
você tirou de mim
estas flores celestes, salvo
para me marcar como parte
do meu mestre: eu sou
o colorido de seu manto, minha carne dá
forma à sua glória.

Trad.: Nelson Santander

Ipomoea

What was my crime in another life,
as in this life my crime
is sorrow, that I am not to be
permitted to ascend ever again,
never in any sense
permitted to repeat my life,
wound in the hawthorn, all
earthly beauty my punishment
as it is yours —
Source of my suffering, why
have you drawn from me
these flowers like the sky, except
to mark me as a part
of my master: I am
his cloak’s color, my flesh giveth
form to his glory.

Louise Glück – A rosa branca

É isto a terra? Então
eu não pertenço a este lugar.

Quem é você na janela acesa,
sombreado agora pelas trêmulas folhas
de uma viburnum lantana?
Você pode sobreviver onde eu não durarei
além do primeiro verão?

Durante toda noite, os ramos finos da árvore
se movimentam e farfalham na janela iluminada.
Explique minha vida para mim, você que não manda nenhum sinal,

embora na noite eu clame por você:
eu não sou como você, eu só tenho
meu corpo para uma voz; eu não consigo
desaparecer no silêncio —

E na fria manhã
sobre a superfície escura da terra
ecos da minha voz vagueiam,
a brancura constantemente absorvida pela escuridão

como se você estivesse mandando um sinal afinal
para me convencer de que você também não sobreviveria aqui

ou para me mostrar que você não é a luz que pedi
mas a escuridão por trás dela.

Trad.: Nelson Santander

The white rose

This is the earth? Then
I don’t belong here.

Who are you in the lighted window,
shadowed now by the flickering leaves
of the wayfarer tree?
Can you survive where I won’t last
beyond the first summer?

All night the slender branches of the tree
shift and rustle at the bright window.
Explain my life to me, you who make no sign,

though I call out to you in the night:
I am not like you, I have only
my body for a voice; I can’t
disappear into silence —

And in the cold morning
over the dark surface of the earth
echoes of my voice drift,
whiteness steadily absorbed into darkness

as though you were making a sign after all
to convince me you too couldn’t survive here

or to show me you are not the light I called to
but the blackness behind it.

Louise Glück – Safra

Entristece-me pensar em vocês no passado —

Olhe para vocês, agarrando-se cegamente à terra
como se fossem os vinhedos do paraíso
enquanto as campinas ardem em chamas à sua volta —

Ah, pequeninos, quão pouco sutis vocês são:
isso é ao mesmo tempo um dom e um tormento.

Se o que vocês temem na morte
é uma punição além desta, não precisam
temer a morte:

quantas vezes devo destruir minha própria criação
para ensinar-lhes
que esta é a sua punição:

com um gesto eu os estabeleci
no tempo e no paraíso.

Trad.: Nelson Santander

Harvest

It grieves me to think of you in the past —

Look at you, blindly clinging to earth
as though it were the vineyards of heaven
while the fields go up in flames around you —

Ah, little ones, how unsubtle you are:
it is at once the gift and the torment.

If what you fear in death
is punishment beyond this, you need not
fear death:

how many times must I destroy my own creation
to teach you
this is your punishment:

with one gesture I established you
in time and in paradise.

Louise Glück – Trevas primitivas

Como vocês podem dizer
que a terra deveria me dar prazer? Cada coisa
nascida é meu fardo; eu não posso ter êxito
com todos vocês.

E vocês gostariam de mandar em mim,
vocês gostariam de dizer-me
quem dentre todos é mais valioso,
quem mais se parece comigo.
E se apresentam como um exemplo
de vida pura, o distanciamento
que lutam para alcançar —

Como vocês podem me compreender
quando não conseguem compreender a si próprios?
Sua memória não é
poderosa o suficiente, não
chegará longe o suficiente —
Nunca se esqueçam que vocês são meus filhos.
Vocês não estão sofrendo porque se tocaram
mas porque nasceram,
porque exigiram uma vida
separada de mim.

Trad.: Nelson Santander

Early darkness

How can you say
earth should give me joy? Each thing
born is my burden; I cannot succeed
with all of you.

And you would like to dictate to me,
you would like to tell me
who among you is most valuable,
who most resembles me.
And you hold up as an example
the pure life, the detachment
you struggle to achieve —

How can you understand me
when you cannot understand yourselves?
Your memory is not
powerful enough, it will not
reach back far enough —
Never forget you are my children.
You are not suffering because you touched each other
but because you were born,
because you required life
separate from me.

Louise Glück – Vésperas (6)

Você pensou que nós não soubéssemos. Mas nós sabíamos,
as crianças sabem essas coisas. Não nos dê as costas agora –
     nós habitávamos
uma mentira para apaziguá-lo. Eu me lembro
da luz do sol do início da primavera, os taludes
reticulados por vincas roxas. Eu me lembro
de me deitar em um campo, roçando o corpo do meu irmão.
Não nos dê as costas agora; nós rejeitamos
as memórias para consola-lo. Nós o imitamos, recitando
os termos de nossa punição. Eu me lembro
de alguns deles, não de todos: o logro
começa com o esquecimento. Eu me lembro de pequenas coisas, flores
crescendo sob o espinheiro branco, os sinos
da scilla selvagem. Não de tudo, mas o suficiente
para saber que você existe. Quem mais teria motivos para criar
desconfianças entre um irmão e uma irmã além daquele
que lucrou, a quem nos voltamos em solidão? Quem mais
invejaria tanto o vínculo que tínhamos na época
a ponto de dizer-nos que não era a terra
mas o céu que estávamos perdendo?

Trad.: Nelson Santander

Vespers

You thought we didn’t know. But we knew once,
children know these things. Don’t turn away now —
     we inhabited
a lie to appease you. I remember
sunlight of early spring, embankments
netted with dark vinca. I remember
lying in a field, touching my brother’s body.
Don’t turn away now; we denied
memory to console you. We mimicked you, reciting
the terms of our punishment. I remember
some of it, not all of it: deceit
begins as forgetting. I remember small things, flowers
growing under the hawthorn tree, bells
of the wild scilla. Not all, but enough
to know you exist: who else had reason to create
mistrust between a brother and sister but the one
who profited, to whom we turned in solitude? Who else
would so envy the bond we had then
as to tell us it was not earth
but heaven we were losing?

Louise Glück – Vésperas (5)

Assim como você apareceu para Moisés, porque
eu preciso de você, você aparece para mim,
raramente, porém. Eu vivo essencialmente
nas trevas. Você talvez esteja me treinando para ser
mais responsivo ao menor brilho. Ou, como os poetas,
será você estimulado pelo desespero, o sofrimento
o leva a revelar sua natureza? Esta tarde,
no mundo material para o qual você normalmente
contribui com seu silêncio, subi
a pequena colina acima dos mirtilos selvagens, metafisicamente
descendo, como em todas as minhas caminhadas: terei ido fundo o suficiente
para que você tenha piedade de mim, do mesmo jeito como você às vezes se apieda
de outros que sofrem, favorecendo aqueles
com dons teológicos? Como você previu,
não olhei para cima. Então você veio até mim:
aos meus pés, não as céreas
folhas do mirtilo selvagem, mas o seu eu flamejante, uma pastagem
inteira em chamas, e além, o sol, nem se pondo, nem nascendo –
Eu não era uma criança; eu podia tirar proveito das ilusões.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

Even as you appeared to Moses, because
I need you, you appear to me, not
often, however. I live essentially
in darkness. You are perhaps training me to be
responsive to the slightest brightening. Or, like the poets,
are you stimulated by despair, does grief
move you to reveal your nature? This afternoon,
in the physical world to which you commonly
contribute your silence, I climbed
the small hill above the wild blueberries, metaphysically
descending, as on all my walks: did I go deep enough
for you to pity me, as you have sometimes pitied
others who suffer, favoring those
with theological gifts? As you anticipated,
I did not look up. So you came down to me:
at my feet, not the wax
leaves of the wild blueberry but your fiery self, a whole
pasture of fire, and beyond, the red sun neither falling nor rising—
I was not a child; I could take advantage of illusions.

Louise Glück – Vésperas (4)

Eu não pergunto mais onde você está.
Você está no jardim; você está onde John está,
no terreiro, absorto, segurando sua espátula verde.
É assim que ele jardina: quinze minutos de intenso esforço,
quinze minutos de estática contemplação. Às vezes
eu trabalho ao lado dele, em tarefas de apoio,
capinando, esfolhando as alfaces; às vezes eu o observo
do alpendre próximo ao jardim de cima até o crepúsculo fazer
lâmpadas dos primeiros lírios: em todo esse tempo,
a paz nunca o abandona. Mas corre através de mim,
não como o sustento que mantém as flores,
mas como a luz brilhante através da árvore nua.

Trad.: Nelson Santander

Vespers

I don’t wonder where you are anymore.
You’re in the garden; you’re where John is,
in the dirt, abstracted, holding his green trowel.
This is how he gardens: fifteen minutes of intense effort,
fifteen minutes of estatic contemplation. Sometimes
I work beside him, doing the shade chores,
weeding, thinning the lettuces; sometimes I watch
from the porch near the upper garden until twilight makes
lamps of the first lilies: all this time,
peace never leaves him. But it rushes through me,
not as sustenance the flower holds,
but like the bright light through the bare tree.