Luís Falcão – Sabemos que o tempo passou

Sabemos que o tempo passou
Que alguma coisa deveria ter sido dita
(talvez depois, talvez mais tarde)
Deixamos atrás de nós
Uma sequência desconexa de gestos irreparáveis
E, feridos,
Por todas as coisas
que poderíamos ter evitado a nós próprios
Caminhamos para o silêncio
E para a escuridão indefinível dos bosques.

Wang Wei – Dedicado a Chang Yin

Instalar armadilhas e esperar pelas lebres astutas,
Lançar uma linha à água e espreitar os peixes,
Talvez acalme a boca e a barriga,
Mas não é esse o sentido da vida do eremita.

Eu amo a tranquilidade,
Alimento-me de legumes para me desembaraçar das paixões terrenas
Doravante, como tu livre e indiferente
Lamento aqueles que comem nas tabernas.

Moro no sopé da montanha
Movimento e repouso alternam naturalmente
Passeio junto das aves sem as incomodar
Gosto de todos os animais que encontro.

Nuvens coloridas são a minha companhia
Para habitar tenho o vazio imaculado
Porque teria então necessidade do teu convite?

(cerca de 701-761)

Versão: Manuel Silva-Terra

Halldís Moren Vesaas – Oração à Vida

A vida terrena, única, seja o meu quinhão!
Vida minha, tudo o que tenho na tua mão!
Toma-me e usa-me e exaure-me nos dias
e então me larga alhures, alijada de ti, fria
e impotente e condenada a não renascer
na noite, na eterna noite sem amanhecer!

Trad.: Luciano Dutra

BØN TIL LIVET

Eitt jordliv, eit einaste, vere min lut!
Mitt liv, du eige meg all!
Ta meg og bruk meg og brenn meg ut
og legg meg ifrå deg, kald
og duglaus og dømd frå å byrje påny
i natta, den evige natt utan gry!

Manuel de Freitas – CCB, 2002

Abrem-se devagar os túmulos
– e entramos neles.
É o nosso ofício, talvez o único.
Esperamos, anos fartos, o vazio.
Não há engano possível,
não há regresso. Todas
as ilhas devagar nos mentem.

Dançava perto de ti,
talvez demasiado só, uma
estrela d’nada, bo dispidida.

Não me digas que não ouviste.

José Mateos – Canção 1

Ainda quase um menino
te sentaste a esperar à
orla do grande silêncio.

Pensavas que estando a sós
com tua voz talvez pudesses
roubar ao mar seu segredo.

Foi-se tua juventude.
Mudos passaram os anos
e agora estás oco por dentro.

Podias, se ao fim soasse
a voz do grande silêncio,
chegar a cantar seu eco?

Trad.: Nelson Santander

José Mateos – Canción 1

Todavía casi un niño
y te sentaste a esperar
a orillas del gran silencio.

Pensabas que estando a solas
con tu voz quizás pudieras
robarle al mar su secreto.

Se te fue la juventud.
Mudos pasaron los anos
y ahora estás hueco por dentro.

¿Podrías, si al fin sonara
del gran silencio el acorde,
llegar a cantar su eco?

Paulo Henriques Britto – Nenhuma Arte

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

II

Tempo agora perdido
(todo tempo se perde)
vivo só nos vestígios

que resistem por leves
(tudo que pesa afunda)
no mais raso da pele

onde o que foi desejo
(tudo que fica dói)
até hoje lateja.

III

Pois era assim: o dia era mais dia,
diáfano, diíssimo, e entre um
e outro dia o luxo de uma noite.
E isso era tudo. Havia isso. E mais

a promessa de que após esse dia
viria uma noite, e, depois, mais um,
primícia da iguaria de uma noite.
Isso era vida. Isso era até demais,

e isso nenhum de nós nunca entendia,
e era dia claro, e isso nenhum
de nós via, como se fosse noite.
E isso bastava. Não havia mais

que a sucessão que não cessava: dia
se abrindo em noite a desabrochar num
dia em que sempre eclodia uma noite.
Isso era sempre. E agora, nunca mais.

IV

Uma vida inteira passada
dentro dos confins de um corpo
junto ao qual vem atrelada
a consciência, peso morto
que acusa o golpe sofrido
e cochicha ao pé do ouvido
depois que o fato se deu:
nada que te pertence é teu.

Único antídoto do nada
entre as peçonhas da vida,
coisa por sorte encontrada
e por desgraça perdida,
amor lega, em sua ausência,
um lembrete à consciência
(se ela por acaso esqueceu):
nada que te pertence é teu.

Princípio? Tudo é contingente.
Fim? Toda luz termina em breu.
Sentido? Quem quiser que invente,
quem não quiser se contente
com este presente besta
que, quando acabou a festa,
a vida avara lhe deu:
nada que te pertence é teu.

V

Veja e toque, e se contente.
Nada mais lhe é permitido.
Pois tudo que você tem
só é seu no escasso sentido

em que é sua a sombra escassa
que esse seu corpo segrega,
que some assim que se apaga
a exata luz que ela nega.

VI

Aprender enfim
a cruel lição:
a que só se aprende
por subtração:

a que não saber
não é desvantagem
(pois nem sempre é ganho
uma aprendizagem

(o que vai de encontro
ao que muitos pensam)),
e sim uma sorte,
uma vera bênção:

a que não é arte
nem tampouco ciência:
pois não há teoria —
só práxis — da ausência.

(Mas dizer-lhe o nome
já é exorcizá-la:
quem a vivencia
cala.)

Aqui: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/14473.pdf

Eunice de Souza – Primavera Relutante

os corrupiões dourados se foram.
as mariquitas estão em silêncio.
a última folha vermelha na amendoeira
recusa o próprio outono.

Trad.: Nelson Santander

Reluctant Spring

the golden orioles have gone.
the warblers are silent.
the last red leaf on the almond tree
refuses to fall

Juan Ramón Jiménez – Com tua Voz

Quando eu estiver com as raízes
chama-me com tua voz.
A mim parecerá que entrou
tremendo a luz do sol.

Trad.: Nelson Santander

Juan Ramón Jiménez – Con tu voz

Cuando esté con las raíces
llámame tú con tu voz.
Me parecerá que entra
temblando la luz del sol.

André Tecedeiro – de “O Número de Strahler”

nem o poema dá
a dimensão da contradição.

o tom dizia odeio-te
mas o que lhe saía da boca era
amo-te.

eu sabia que ficar era morte
mas o que me dizia era que fugir era morte.

a um hematoma eu teria chamado
alívio.

Yves Bonnefoy – As Árvores

Olhávamos as árvores, era do alto
Do terraço que nos foi caro, o sol
Ficava junto a nós mais esta vez ainda
Mas retirado, silencioso anfitrião
No limiar da casa em ruínas, que deixávamos
A seu poder, imensa, iluminada.

Vê, dizia-te eu, ele faz deslizar
Na pedra desigual, insondável do nosso apoio
A sombra do teu ombro confundido ao meu,
A das amendoeiras junto a nós
E aquela até do alto dos muros que se mescla às outras,
Rota, barca queimada, proa que deriva,
Como excesso de sonho ou de fumaça.

Mas lá longe estão imóveis os carvalhos,
Nem mesmo a sombra deles se move, na luz,
São as margens do tempo que corre aqui onde estamos,
E é inatingível o seu chão, de tão veloz
Que é o fluir da esperança grávida da morte.

Toda uma hora olhamos para as árvores.
O sol ficava à espera, em meio às pedras,
Teve pena depois, e estendeu
Para eles, mais abaixo do barranco,
Nossas sombras que parecem atingi-los
Como, estendendo o braço, pode-se tocar
Por vezes, na distância entre dois seres,
Um instante do sonho do outro, que vai sem fim.

Trad.: Mário Laranjeira

Les Arbres

Nous regardions nos arbres, c’était du haut
De la terrasse qui nous fut chère, le soleil
Se tenait près de nous cette fois encore
Mais en retrait, hôte silencieux
Au seuil de la maison en ruines, que nous laissions
À son pouvoir, immense, illuminée.

Vois, te disais-je, il fait glisser contre la pierre
Inégale, incompréhensible, de notre appui
L’ombre de nos épaules confondues,
Celle des amandiers qui sont près de nous
Et celle même du haut des murs qui se mêle aux autres,
Trouée, barque brûlée, proue qui dérive,
Comme un surcroît de rêve ou de fumée.

Mais ces chênes là-bas sont immobiles,
Même leur ombre ne bouge pas, dans la lumière,
Ce sont les rives du temps qui coule ici où nous sommes,
Et leur sol est inabordable, tant est rapide
Le courant de l’espoir gros de la mort.

Nous regardâmes les arbres toute une heure.
Le soleil attendait, parmi les pierres,
Puis il eut compassion, il étendit
Vers eux, en contrebas dans le ravin,
Nos ombres qui parurent les atteindre
Comme, avançant le bras, on peut toucher
Parfois, dans la distance entre deux êtres,
Un instant du rêve de l’autre, qui va sans fin.