Francisca Aguirre – E se, depois de tudo, fosse o resto

E se, depois de tudo, fosse o resto
um ir morrendo para ao fim morrermos
por este louco afã de convertermo-nos
em contadores de um momento lesto.

E se afigura que o correto era
este sermão que vem nos repetir
que avança o furacão de nos ferir,
e é vã e absurda esta carreira.

Então fique tranquilo, amor meu,
e goza desta gruta que ofereço,
e esgota a água que eu não consumi.

O vento nos arrasta, cego e frio,
toma esta manta enquanto eu envelheço,
amar-te de outro modo não aprendi.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/04/2018

Francisca Aguirre – Y si después de todo, todo fuera

Y si después de todo, todo fuera,
un ir muriendo para al fin morirnos
a qué este loco empeño en convertirnos
en contables de un tiempo que no espera.

Y si resulta que lo cierto era
este sermón que viene a repetirnos
que avanza el huracán para abatirnos
y es inútil y absurda esta carrera.

Entonces, amor mío, ten sosiego,
y aprovecha esta cueva que te ofrezco
y apura el agua que yo no he bebido.

El viento nos arrastra, frío y ciego,
toma mi manta mientras yo envejezco,
amarte de otro modo no he sabido.

Petrarca – Soneto CXXXIII (“O Amor me Assinalou com sua Seta”)

O amor me assinalou com sua seta,
como a neve ao sol, como a cera ao fogo,
como névoa ao vento; e já estou rouco,
dama, de humilhar-me, feito um pateta.

De teus olhos o golpe mortal veio,
contra o qual tempo e espaço nada são;
Vêm de ti, e vês como diversão,
o sol, o fogo e o vento aos quais me atenho.

O pensar me flecha, me cresta o sol,
o desejo queima: com essas armas
o amor fere, me cega e me aniquila;

e sua voz e canto angelical,
e a doce alma com que me desarmas,
são o ar do qual minha vida se exila.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 18/11/2017

Petrarca – Soneto CXXXIII

Amor m’à posto come segno a strale,
come al sol neve, come cera al foco,
et come nebbia al vento; et son già roco,
donna, mercé chiamando, et voi non cale.

Dagli occhi vostri uscío ‘l colpo mortale,
contra cui non mi val tempo né loco;
da voi sola procede, et parvi un gioco,
il sole e ‘l foco e ‘l vento ond’io son tale.

I pensier’ son saette, e ‘l viso un sole,
e ‘l desir foco: e ‘nseme con quest’arme
mi punge Amor, m’abbaglia et mi distrugge;

et l’angelico canto et le parole,
col dolce spirto ond’io non posso aitarme,
son l’aura inanzi a cui mia vita fugge.

Paulo Henriques Britto – Soneto Inglês

A surpresa do amor — quando já não se
espera do mundo nada em especial,
e a evidência de que os anos vão se
acumulando sem nenhum sinal
de sentido já não dói nem comove —
quando em matéria de felicidade
não se deseja mais que uns nove
metros quadrados de privacidade
para abrigar os prazeres amenos
do sexo fácil e da literatura
difícil — eis que então, sem mais nem menos,
como quem não quer nada, surge a cura —
definitiva, radical, imensa —
do que nem parecia mais doença.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 29/12/2016

Garcilaso de la Vega – Soneto XXIII

Enquanto que de rosa e de açucena
se mostra toda a cor neste teu rosto,
enquanto o teu olhar ardente, honesto,
acende o coração e o serena;

e enquanto o teu cabelo, que das franjas
do ouro se escolheu, com voo presto,
sobre o formoso colo branco, ereto,
o vento move, espalha e desarranja:

colhe de tua alegre primavera
o doce fruto, antes que o tempo airado
recubra de neve o formoso cume;

murchará a rosa o vento gelado.
Mudará tudo o tempo que não espera,
tão só por não mudares teu costume.

Trad.: Nelson Santander

Soneto XXIII

En tanto que de rosa y azucena
se muestra la color en vuestro gesto,
y que vuestro mirar ardiente, honesto,
enciende al corazón y lo refrena;

y en tanto que el cabello, que en la vena
del oro se escogió, con vuelo presto,
por el hermoso cuello blanco, enhiesto,
el viento mueve, esparce y desordena:

coged de vuestra alegre primavera
el dulce fruto, antes que el tiempo airado
cubra de nieve la hermosa cumbre;

marchitará la rosa el viento helado.
Todo lo mudará la edad ligera
por no hacer mudanza en su costumbre.

José Lino Grünewald – Soneto Burocrático

Salvo melhor juízo doravante,
Dessarte, data vênia, por suposto,
Por outro lado, maximé, isso posto,
Todavia deveras, não obstante

Pelo presente, atenciosamente,
Pede deferimento sobretudo,
Nestes termos, quiçá, aliás, contudo
Cordialmente alhures entrementes

Sub-roga ao alvedrio ou outrossim
Amiúde nesse ínterim, senão
Mediante qual mormente, oxalá quão

Via de regra te-lo-ão enfim
Ipso facto outorgado, mas porém
Vem substabelecido assim, amém.

Petrarca – Soneto CXXXIII (“O Amor me Assinalou com sua Seta”)

O amor me assinalou com sua seta,
como a neve ao sol, como a cera ao fogo,
como névoa ao vento; e já estou rouco,
dama, de humilhar-me, feito um pateta.

De teus olhos o golpe mortal veio,
contra o qual tempo e espaço nada são;
Vêm de ti, e vês como diversão,
o sol, o fogo e o vento aos quais me atenho.

O pensar me flecha, me cresta o sol,
o desejo queima: com essas armas
o amor fere, me cega e me aniquila;

e sua voz e canto angelical,
e a doce alma com que me desarmas,
são o ar do qual minha vida se exila.

Trad.: Nelson Santander

Petrarca – Soneto CXXXIII

Amor m’à posto come segno a strale,
come al sol neve, come cera al foco,
et come nebbia al vento; et son già roco,
donna, mercé chiamando, et voi non cale.

Dagli occhi vostri uscío ‘l colpo mortale,
contra cui non mi val tempo né loco;
da voi sola procede, et parvi un gioco,
il sole e ‘l foco e ‘l vento ond’io son tale.

I pensier’ son saette, e ‘l viso un sole,
e ‘l desir foco: e ‘nseme con quest’arme
mi punge Amor, m’abbaglia et mi distrugge;

et l’angelico canto et le parole,
col dolce spirto ond’io non posso aitarme,
son l’aura inanzi a cui mia vita fugge.

Petrarca – Soneto CCLXXII

A vida foge e não recua um passo
E a morte, em grande marcha, vai em frente;
As coisas do passado e do presente,
Ao futuro reclamam meu espaço.

A jornada que nesta vida eu traço
Na espera e na lembrança inutilmente,
Por pena de mim mesmo descontente
Este caminho que ora fiz, desfaço.

Se à lembrança me vem algum desejo
Do peito que a alegria abandonou,
Ao navegar em alto mar eu vejo

O porto onde meu barco desistiu,
A nave que lá fora naufragou
E o fogo que dos olhos teus fugiu.

Trad.: Afonso Teixeira Filho

Pablo Neruda – De “Cem Sonetos de Amor”

XII

Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
Espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
Que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
Que antiga noite o homem toca com seus sentidos?

Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos
e dois corpos por um só mel derrotados.

Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia

corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra um raio.

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Vinicius de Moraes – Soneto de Quarta Feira de Cinzas

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

Rio de Janeiro, 1941

Paulo Henriques Britto – De “Seis Sonetos Soturnos”

I

A qualquer hora, o que se chama vida
pode mudar da água pro vinho. Ou vice-
-versa. Cada palavra proferida —
uma sentença grave, uma tolice —
pode retornar feito um bumerangue
capaz de destruir o que encontrar.
E nada que se funde em carne e sangue
escapa dessas bólides de ar:
o amor e demais estados de graça,
reputações, ações, fazendas, gado,
longos corredores, salas de espera —
tudo à mercê do que afinal não passa
de ar comprimido, aos poucos exalado,
que logo se dissipa na atmosfera.

(…)

V

As coisas sempre podem piorar.
Não há limite para o abismo estreito
que se abre justamente no lugar
onde a relação entre causa e efeito
parece indicar que a crosta é mais dura
e é mais remoto o risco da ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, uma vez
desmascarada a aparência enganosa
de integridade e estrita solidez,
a mente busca uma saída honrosa
e com algo assim por fim se contenta:
Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temer mais nada,
expõe um novo flanco à próxima porrada.