Joan Margarit – Monumentos

O vazio que sentes, cada vez com mais força,
é o dos traidores.
Também os monumentos, por dentro, são vazios,
com as entranhas cheias de ferrugem e de morte:
escuros e corroídos pela história,
é tão sinistro seu interior
como arrogante o gesto que no ar
desenha a personagem.
À medida que os amigos nos traem
– e a morte é também uma traição –
nos vamos convertendo em monumentos.
Por fora, ainda resta um resquício de eloquência,
sobretudo ao falar com alguém jovem,
mas a voz ressoa no vazio,
perdida entre os vergalhões de uma oculta estrutura
que se desgasta em finas camadas de ferrugem.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/05/2019

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Joan Margarit – Monumentos

El vacío que sientes cada vez con más fuerza
es el de los traidores.
También los monumentos, por dentro, están vacíos,
con las entrañas llenas de óxido y de muerte:
oscuros y podridos por la historia,
es tan siniestro su interior
como arrogante el gesto que en el aire
dibuja el personaje.
Según van traicionando los amigos
—y la muerte es también una traición—
nos vamos convirtiendo en monumentos.
Por fuera queda un resto de elocuencia,
sobre todo al hablar con alguien joven,
pero la voz resuena en el vacío,
perdida entre los hierros de un oculto entramado
que se deshoja en leves capas de óxido.

Joan Margarit – O ano em que ela morreu

Na fotografia em sépia
és jovem e sorri. Faz-me lembrar
as mulheres dos filmes de guerra
da minha infância:
barcos na neblina, trens noturnos
e grandes cidades sob o alarme aéreo.
Na lápide está escrito que ela se foi
no inverno de 44,
aos vinte anos, quando me apaixonava
pela sufocante escuridão
cruzada por um raio de luz, a heroína
dos sonhos de amor de minha meninice.
A dura pedra
tem uma cavidade com água de chuva
onde os pássaros vão beber quando,
de casaco e cabelos grisalhos
desgrenhados pelo vento,
o narrador se afasta.
Tem o mesmo sonho nos olhos, em uma cidade,
em um cinema onde agora está só.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/04/2019

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El año em que murió

En la fotografía color sepia
es joven y sonríe. Me recuerda
a las muchachas de las películas de guerra
de mi infancia:
barcos entre la niebla, trenes nocturnos
y grandes ciudades bajo la alarma aérea.
En la losa está escrito que murió
en el invierno del cuarenta y cuatro,
a los veinte años, cuando me enamoraba
desde la bochornosa oscuridad
cruzada por un foco, la heroína
de los sueños de amor de mi niñez.
La dura piedra
tiene un hueco con agua de lluvia
donde beberán los pájaros cuando,
abrigo largo y pelo gris
desordenado por el viento,
se aleje el narrador.
Tiene el mismo sueño en los ojos, en una ciudad,
en un cine donde ahora está solo.

Joan Margarit – Helena

O ontem é teu inferno. É cada instante
em que, sem sabê-lo, te perdeste
e também cada instante em que foste salvo.
Quando o jovem que foste está muito distante,
o amor é vingança do passado.
Vens de uma guerra em que foste vencido,
de armas e acampamentos abandonados
na Troia que levas dentro de ti.
Buscar-te-ão de noite os aqueos
e estreitarão o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena são todos os sonhos de que a vida
foi-se apropriando. Defende-a bravamente
pela última vez, desarmado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/03/2019

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Helena

El ayer es tu infierno. Es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y también cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
el amor es venganza del pasado.
Viene de una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos abandonados
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por una mujer, a perder la ciudad.
Helena es todos los sueños que la vida
se ha ido apropiando. Defiéndela con valor
por última vez, desarmado.

Joan Margarit – Esboço para um Epílogo

Diante de ti sentes um rumor de passos
que vem do futuro, essa torre
demolida antes de ser construída.
Só existe a dúvida moral: ama,
não penses na camada de pó
a que tanto aludes, ostensivamente,
quando dizes: “minha vida”.
E, do prestígio das negações,
desconfia: a vida representa
não só a vitória dos anos
sobre nós. Também nos ensina
quão gloriosa foi
nossa vitória inicial sobre o tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Esbozo para un epílogo

Ante ti sientes un rumor de pasos
que viene del futuro, esa torre
derribada antes de que la construyeran.
Sólo existe la duda moral: ama,
no pienses en la lámina de polvo
que tanto nombras, ostentosamente,
cuando dices: “mi vida”.
Y, del prestigio de las negaciones,
desconfía: la vida representa
no sólo la victoria de los años
sobre nosotros. También nos enseña
lo gloriosa que fue
nuestra inicial victoria sobre el tiempo.

Joan Margarit – Amor e tempo

Lembras quando ainda desconhecias
que a vida não teria piedade de ti?
Amor e tempo: o tempo nos habita
como a areia do rio que, lentamente,
vai moldando a forma da margem.
O amor, que refletiu em teu olhar
o esplendor da ilha do tesouro.
Sensual, solitária, cercada
pela sonora senectude do mar
e os gritos militares das gaivotas.
O sonho clandestino dos cinquenta anos.

Trad.: Nelson Santander

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Amor y tiempo

Recuerda cuando aún desconocías
que la vida no tendría piedad contigo.
Amor y tiempo: el tiempo nos habita
como arena del río que, despacio,
va cambiando la forma de la costa.
El amor, que ha copiado en tu mirada
la claridad de la isla del tesoro.
Sensual, solitaria, rodeada
por la sonora senectud del mar
y gritos militares de gaviotas.
El sueño clandestino de los cincuenta años.

Joan Margarit – Cemitério de Montjuïc

Algo resta das almas,
como a brisa que surge
depois de alguém passar,
e que faz estremecer
uma fina cortina na janela.
Pela trilha de pedras ásperas que não esquecem
mas calam, severas, o que sabem,
o vento deixa um silêncio de lágrimas
por vidas como a nossa, perdidas.
“Jazigo perpétuo”, a terra
sempre dura, fileiras de ciprestes:
provinciano teatro da morte.
Nosso amor é como o que eles perderam.
Já é noite. Olha, do topo
da colina dos mortos, sob o céu negro,
as luzes da cidade:
um navio ancorado no firmamento
que nos espera para zarpar.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/12/2018

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Joan Margarit – Cementerio de Montjuïc

Algo queda de las ánimas,
como la brisa que surge
después de que alguien ha pasado,
y que hace estremecer
una leve cortina en la ventana.
Por la senda de piedras ásperas que no olvidan
pero callan, severas, lo que saben,
el viento deja un silencio de lágrimas
por vidas como la nuestra, perdidas.
«Concesión perpetua», la tierra
siempre dura, hileras de cipreses:
provinciano teatro de la muerte.
Nuestro amor es como el que ellos perdieron.
Ya es de noche. Mira, desde la cumbre
de la colina de los muertos, bajo el cielo negro,
las luces de la ciudad:
un navío anclado en el firmamento
que está esperándonos para zarpar.

Joan Margarit – Aventura Doméstica

Sozinho em casa, vasculhando os armários.
Encontro um antigo mapa rodoviário,
contratos vencidos, canetas-tinteiro
que já não escreverão mais cartas,
calculadoras com pilhas descarregadas
e relógios que o tempo derrotou.
Nas profundezas das gavetas, como um rato triste,
aninha-se o passado. Vazios, os vestidos
pendem como velhos personagens
que nos interpretaram.
De repente, encontro também tua lingerie,
cor de areia, da noite, com pequenos bordados.
Calcinhas, sutiãs, meias que desdobro
e que me fazem voltar à brilhante
– e ao mesmo tempo misteriosa –
essência do amor e do sexo:
o que verdadeiramente dá vida às casas,
assim como se lhe dá aos portos distantes
a luz de seus cafés e de seus barcos

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 17/11/2018

Joan Margarit – Aventura Doméstica

Solo en casa y mirando en los armarios.
Encuentro algún antiguo mapa de carreteras,
contratos que han vencido, estilográficas
que ya no escribirán ninguna carta,
calculadoras con las pilas secas
y relojes que el tiempo ha derrotado.
En los cajones suele, como una rata triste,
anidar el pasado. Vacíos, los vestidos
cuelgan igual que viejos personajes
que nos interpretaron.
Pero encuentro también tu lencería,
color arena, o noche, con pequños bordados.
Bragas, sostenes, medias que despliego
y que me hacen volver hasta el brillante
– y a la vez misterioso – fondo de amor y sexo:
lo que da, de verdad, vida a las casas,
igual que se la da a los puertos lejanos
la luz de sus cafés y de sus barcos.

Joan Margarit – A moça do semáforo

Tens a mesma idade que eu tinha
quando comecei a sonhar em encontrar-te.
Ignorava então, assim como tu ignoras,
que o amor se transforma na arma carregada
de solidão e melancolia
que aponta agora para ti em meus olhos.
Tu és a moça que busquei
durante tanto tempo, quando ainda não existias.
E eu o homem a quem, um dia,
desejarás que oriente teus passos.
Mas estarei tão distante de ti então
quanto estás agora de mim neste semáforo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 14/10/2018

Joan Margarit – La muchacha del semáforo

Tienes la misma edad que yo tenía
cuando empecé a soñar con encontrarte.
Entonces ignoraba, igual que tú lo ignoras,
que el amor se transforma en el arma cargada
de soledad y de melancolía
que ahora está apuntándote en mis ojos.
Tú eres la muchacha que busqué
durante tanto tiempo cuando aún no existías.
Y yo el hombre hacia quien querrás
alguna vez encaminar tus pasos.
Pero estaré tan lejos de ti entonces
como lo estás ahora de mí en este semáforo.

Joan Margarit – Era Rubra

     A Àlex Susanna

Levaste tanto tempo para aprender
que chegas tarde ao grande amor:
nunca viveste uma era de ouro.
As rosas de Ronsard*
jamais perfumarão teu olhar,
nenhum outono desfolhará
morosas pétalas nos braços de ninguém.
Com negligência ocultas os espelhos
como se fazia nas casas
onde havia um defunto.
Não voltam as mulheres com as quais
trocaste anos de solidão
por um fugaz momento de ternura.
Tão ardente é a vida no outono
que nas horas de angústia não poderás
amar nem a mulher que já perdeste.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: o verso ‘As rosas de Ronsard’ pode ser interpretado de duas maneiras distintas. Por um lado, o poeta pode estar se referindo à espécie de rosa conhecida como ‘Rosa Pierre de Ronsard’, uma rosa trepadeira famosa por suas flores exuberantes. Por outro lado, pode estar aludindo ao famoso poema “Quand vous serez bien vieille” (Quando você estiver bem velha, em livre tradução), do poeta renascentista francês Pierre de Ronsard, um um exemplo clássico do tema do ‘carpe diem’. Ambas interpretações são válidas, inclusive concomitantemente, pois o poeta parece estar evocando tanto a beleza transitória das rosas como um símbolo do amor e da juventude efêmeros, quanto a reflexão sobre o tempo e a impossibilidade de alcançar uma era de ouro. A menção às rosas de Ronsard no poema de Margarit traz uma camada adicional de significado, ampliando o tema da fugacidade e da perda no poema.

REPUBLICAÇÃO com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 30/09/2018

Edad roja

     A Àlex Susanna

Tanto tiempo has tardado en aprender
que llegas tarde al gran amor:
Que nunca habrás vivido una edad de oro.
Las rosas de Ronsard
nunca serán perfume en tu mirada,
ningún otoño habrá de deshojar,
en los brazos de nadie, lentos pétalos.
Con el olvido tapas los espejos
igual que acostumbraban en las casas
donde había un difunto.
No vuelven las mujeres con las cuales
cambiabas años de tu soledad
por un fugaz momento de ternura.
Tan ardiente es la vida en el otoño,
que en las horas de angustia no podrás
amar ni a la mujer que ya has perdido.

Joan Margarit – A partida

Definitivamente, este é o meu Outono,
um tempo de alianças impossíveis,
a era rubra de todos os perigos
para homens maduros e mulheres solitárias.
A era do adultério e da desmemória
sem nenhuma esperança, a era do gelo,
a partida final contra mim mesmo.
Permaneço à mesa, sem esperar pela sorte,
já não há chances neste jogo.
É o tempo de jogar paciência
com as cartas marcadas da vida.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com alterações na tradução. Poema publicado na página originalmente em 29/09/2018

La partida

Definitivamente se trata de mi otoño,
un tiempo de alianzas imposibles,
la edad roja de todos los peligros
para hombres maduros y chicas solitarias.
La edad del adulterio y el olvido
sin ninguna esperanza, la edad fría,
la partida final contra uno mismo.
Permanezco en la mesa, sin esperar la suerte,
ya no cabe el azar en este juego.
Es el tiempo de hacer un solitario
con las cartas marcadas de la vida.