Ricardo Domeneck – Doentes

Doentes.
Nós, todos

doentes. Há tanto
doentes

todos. Nós.
Pungidos, conquanto
impunes.

Não,
não impunes.
Não

se constrói impune
a casa

sobre covas.
Não se ergue

o prédio
em grão-cemitério.

Não
sem

velar e lavar

carinhosos
e doridos

os ossos
e os dentes.

Não impunes.
Doentes

de cada gota
derramada.

Por nós
ou avós.

Os parentes
doentes
em cada gota

que corre.
A casa

abala-se. O sangue
embebe

os alicerces.
A mola

mestre afrouxa.
O reboco

despenca.
Não

se constrói
república impune

nas costas
de escravos

e depois se mente
impune, mente,

finge-se fraterno,

diz irmão,
diz irmã,

mas mente impune.

Não sente
na pele,

não cose
as costas,

não pede
perdão

e bença
a irmão, a irmã

pela construção
impune

da casa
sobre suas covas,

do prédio
sobre suas costas

em frangalhos.

Punidos
não fomos,

mas não

estamos impunes.
Estamos doentes.

Nossas costas
destrinchadas.

Entre
trincheiras.

Nossas casas
ensangüentadas.

E o Omo
não lava.

Os ossos.
E o sangue.
O Omo
não lava.

SOS
SOS

tele-
grafam os ossos.

Doentes. De cada
mãe
de pele tonalizada.

De rubro, de negro.

Cada mãe
roubada,

sequestrada
e violentada.

E morta. O Omo
não lava
os sequestros,

não desmancha
as mortes.

De mães. De filhos
doentes.

As manchas
que a família merece.

Todos
nós, uns doentes

de beber
sangue e comer
carne,

nós que moemos
gente,

todos nós
uns Pôncios Pilatos

nesta Jerusalém
infernal.

Não há Cristo
que baste.

Não há Cristo
que lave

com sangue o sangue.

Basta de lavar
o sangue com sangue.
Basta.

Doentes.
Basta a doença

já sangrada,
diagnosticada

e sem bula.

Doentes pilhamos,
pilhados e doentes.

E a aula de Pilates
não cura

os doentes,

e a aula de Yoga
não cura

os doentes,

e os ovos
orgânicos

não pagam
os ossos

orgânicos

ainda
que em cálcio.

E os docentes
não adoçam

o amargo
em

nós.
Cauterizados,
nós
calcificados.

SOS SOS
tele
-grafam os ossos.

A nós,
uns doentes,
nós,
os doentes.

*

[in memoriam Marielle Franco]