Manuel António Pina – KM 82

I’m on the highway to hell a 170 à hora
no CD, ou então o rádio para sempre sintonizado
na final da Taça.
Nunca saberás o resultado, Faéton,
hey, mumma, look at me,
I’m on may way to the promised land
e está visto que uma ligação directa não chega
para pôr em marcha uma vida como a tua,
de subúrbio, ou para ir de encontro a um destino
diferente do abono da Caixa ou de um poste de betão.
Para quê palavras agora,
com a moral da história inteiramente à mostra?
E lágrimas, quem as chorará?
Nem a companhia de seguros, pois que
a tua morte foi facto de terceiro
e a tua vida não estava coberta
senão pela chuva da madrugada de sábado.
Um raio de Júpiter ou um pneu rebentado, que importa?
Ovídio ou o Jornal de Notícias?
Ilic frena jacent, ilic temone revulsus
axis, in hac radii fractarum parte rotarum.

The White Buffalo – This Year

Acho que toda mensagem de “Feliz Ano Novo” se resume à ideia contida na letra desta música: tente melhorar sempre e sempre. Se não der, tente de novo no ano que vem. E no outro. E no outro. Uma hora dá certo. Ou não.

Feliz 2019!

The White BuffaloThis Year (Tradução e Legendas: Nelson Santander)

Joan Margarit – Canção de Ninar

Dorme, Joana.
E que este Loverman obscuro e trágico
do sax de teu irmão em Montjuïc
possa acompanhar-te
toda a eternidade pelos caminhos
que são bem conhecidos pela música.
Dorme, Joana, dorme.
E de preferência não esqueças
de teus anos no ninho
que dentro de nós tu deixaste.
Enquanto envelhecemos,
conservaremos todas as cores
que brilharam em teus olhos.
Dorme, Joana. Esta é nossa casa,
e tudo ilumina teu sorriso.
Um tranquilo silêncio: aqui esperamos
arredondar estas pedras de dor
para que o quanto foste seja música,
a música que preenche o nosso inverno.

Trad.: Nelson Santander

Canción de Cuna

Duerme, Joana.
Y que este Loverman oscuro y trágico
del saxo de tu hermano en Montjuïc
te pueda acompañar
toda la eternidad por los caminos
que son bien conocidos por la música.
Duerme, Joana, duerme.
Y a poder ser no olvides
tus años en el nido
que dentro de nosotros has dejado.
Mientras envejecemos,
conservaremos todos los colores
que han brillado en tus ojos.
Duerme, Joana. Esta es nuestra casa,
y todo lo ilumina tu sonrisa.
Un tranquilo silencio: aquí esperamos
redondear estas piedras del dolor
para que cuanto fuiste sea música,
la música que llene nuestro invierno.

José Mateos – Canção 10

Canção 10

(Ruínas de Bolonha)

Aqui, defronte ao mar, disse
o sol do entardecer:
Morrer
é começar a revir.

Trad.: Nelson Santander

José Mateos – Canción 10

(Ruinas de Bolonia)

Aquí, frente al mar, lo dice
el sol del atardecer:
Morir
es empezar a volver.

Inês Dias – Um estranho no meu túmulo

Chegamos tarde a nós.
Eu tinha a pele gasta, o coração no fio.
Tu eras um longo muro de cimento areado
em que deixava a carne inteira
a caminho do encontro.

A primavera ficava-nos sempre
à esquerda e tu cada vez mais
dentro de mim até não sentir nada,
até estares já do outro lado.
Para trás, a cova matinal na almofada,
o postal entre a leitura suspensa,
o número a chamar de um fantasma.

Se apagar as marcas de onde pousaste
a cabeça sobre a minha vida,
se ganhar novo espaço para o fôlego,
faz-me só um favor:
nunca mais me reconheças.

Carlos Drummond de Andrade – Procura

Procurar sem notícia, nos lugares
onde nunca passou;
inquirir, gente não, porém textura,
chamar à fala muros de nascença,
os que não são nem sabem, elementos
de uma composição estrangulada.

Não renunciar, entre possíveis,
feitos de cimento do impossível,
e ao sol-menino opor a antiga busca,
e de tal modo revolver a morte
que ela caia em fragmentos, devolvendo
seus intactos reféns — e aquele volte.

Venha igual a si mesmo, e ao tão-mudado,
que o interroga, insinue
a sigla de um armário cristalino,
além do qual, pascendo beatitudes,
os seres-bois, completos, se transitem,
ou mugidoramente se abençoem.

Depois, colóquios instantâneos
liguem Amor, Conhecimento,
como fora de espaço e tempo hão de ligar-se,
e breves despedidas
sem lenços e sem mãos
restaurem — para outros — na esplanada
o império do real, que não existe.

Táxis Varvitsiótis – Assim também a morte

          À memória de Andréa Karandonis

Asa ou marfim
É tudo espesso
Como o ferro e a madeira
Como a proa inquebrável
De um navio
Rumo ao infinito

Assim também a morte
Espessa impenetrável
Como galeria de mina
Muro indestrutível
Poço sem fundo
Carvão aceso
Para alcançar-lhe o duro cerne
Tons de rasgar
O pano entretecidos de fagulhas

Asa ou marfim
É tudo espesso
Lâmina de aço

Assim também a morte
Sangue congelado
Relógio de granito
Parado
Ardor de braseiro
Sobre lábios tenros
Negro fio enrolado
Em negra serpentina
Sobre a neve

Asa ou marfim
Tudo é diáfano
Qual uma vidraça

Assim também a morte
Prata fosca
De um espelho
Rosto pálido
Imaterial
Oculto
Entre as pedras
Com o veludo do sono
Eterno
E a bruma dos dias

Asa ou marfim
Tudo é diáfano
Como o véu da aurora

Assim também a morte
Cais a pique
De infrangível porcelana
Onde atracam
Os que nada têm
Os que nada sabem
Os que definitivamente ganharam
A sua inocência

Trad.: José Paulo Paes

Nuno Júdice – Natal

Deito-me à sombra da árvore sem sombra – a árvore
cujas raízes nascem da infância – e é natal, e
nunca mais chega a meia-noite
dessa noite sem fim. Rezo pelas
mais obscuras incertezas, pelas almas que
hesitam nas encruzilhadas, pelos vagabundos que
esperam a meia-noite para se sentarem à porta da igreja,
na única noite em que têm onde se sentar. Aprendi
com eles o destino dos passos humanos, a ausência
de deus nos caminhos do mundo, o silêncio
do céu nas noites sem lua. Joguei com as suas cartas
enquanto a missa não acabava, aproveitando o calor
que saía pela porta da igreja, e ouvindo o refrão
dos mortos no cemitério do adro. Aceitei
a sua batota – por essas almas que nos ouviam
enquanto o jogo mudava de parceiros. Paguei
o dinheiro que me exigiam à entrada, para que
não tivesse de os acompanhar na barca do tempo; e
vi-os fazerem-me adeus, antes que o esquecimento
os vestisse de obscuridade.

E conto, agora, as bolas douradas que enfeitam
a árvore – sem nunca chegar ao fim. Conto-as, no entanto,
enquanto as vou colhendo, como se fosse o tempo dos
frutos. Uma a uma, essas bolas amontoam-se na minha memória,
dando um rosto a cada um desses que batiam
à porta da noite, pedindo o pão que sobrara do natal. Ouço-os
baterem, agora, à porta do poema; distribuo por eles
cada uma destas palavras, para que as levem consigo – e
eles deixam-me o pó, a cera de velas consumidas até ao fim
da sua eternidade, o refrão dos mortos em resposta
ao latim do padre. Pergunto-lhes o caminho para esse
adro da infância; peço-lhes que me devolvam a moeda que
lhes emprestei para pagarem ao barqueiro. Desaparecem,
um a um, sem nada me dizerem.

Rezem por mim!, digo-lhes. E eles não me ouvem,
como se o seu destino fosse o da sombra desta árvore
sem sombra, de raízes na infância, cujos frutos conto,
um a um, enquanto espero a meia-noite.

Joan Margarit – Cemitério de Montjuïc

Algo permanece das almas,
como a brisa que surge
depois que alguém passou,
e que faz estremecer
uma leve cortina na janela.
Pelo caminho de pedras ásperas que não esquecem
mas calam, severas, o que sabem,
o vento deixa um silêncio de lágrimas
por vidas como as nossas, perdidas.
“Jazigo perpétuo”, a terra
sempre dura, fileiras de ciprestes:
provinciano teatro da morte.
Nosso amor é como o eles perderam.
Já é de noite. Olhe, do cume
da colina dos mortos, sob o céu negro,
as luzes da cidade:
um navio ancorado no firmamento
esperando-nos para zarpar.

Trad.: Nelson Santander

Joan Margarit – Cementerio de Montjuïc

Algo queda de las ánimas,
como la brisa que surge
después de que alguien ha pasado,
y que hace estremecer
una leve cortina en la ventana.
Por la senda de piedras ásperas que no olvidan
pero callan, severas, lo que saben,
el viento deja un silencio de lágrimas
por vidas como la nuestra, perdidas.
«Concesión perpetua», la tierra
siempre dura, hileras de cipreses:
provinciano teatro de la muerte.
Nuestro amor es como el que ellos perdieron.
Ya es de noche. Mira, desde la cumbre
de la colina de los muertos, bajo el cielo negro,
las luces de la ciudad:
un navío anclado en el firmamento
que está esperándonos para zarpar.

Amalia Bautista – Noite de São João

Que queimaremos esta noite, quantas
velhas feridas daremos nós às chamas,
de que nos livraremos para não o recordar
nem sequer dos piores pesadelos diurnos?
Que lançaremos nós ao fogo ou em que fogueiras
limparemos a vida para nos renovarmos,
para o tempo que reste, para o que consigamos
roubar a tantas mortes?
Chega a noite de São João, continuamos
vivos e juntos apesar de tudo.
Cada vez resta menos por queimar.
Todo o fogo se esconde no nosso abraço.

Trad.: Inês Dias

Amalia Bautista – Noche de San Juan

¿Qué quemaremos esta noche, cuánta
vieja herida daremos a las llamas,
de qué nos libraremos para no recordarlo
ni en las peores pesadillas diurnas?
¿Qué echaremos al fuego o en qué hogueras
limpariemos la vida para entregarnos nuevos,
para el tiempo que quede, para el que consigamos
robarle a tantas muertes?
Llega la noche de San Juan, seguimos
vivos y juntos a pesar de todo.
Cada vez queda menos por quemar.
Todo el fuego se esconde en nuestro abrazo.