Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo

Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia
dos frutos e dos animais.
Maio trouxe cravos como outrora,
cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora
passa e não se demora
na tristeza das nossas alegrias.
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste ritmo, o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude.
Não estamos sós:
setembro traz ainda
um fruto em cada mão.
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direção.
Cai, como antigamente, das estrelas
um frio que se espalha na cidade.
Não é noite nem dia, é o tempo ardente
da memória das coisas sem idade.
O que sonhei cabe nas tuas mãos
gastas a tecer melancolia:
um país crescendo em liberdade,
entre medas de trigo e de alegria.
Porém a morte passeia nos quartos,
ronda as esquinas, entra nos navios,
o seu olhar é verde, o seu vestido branco,
cheiram a cinza os seus dedos frios.
Entre um céu sem cor e montes de carvão
o ardor das estações cai apodrecido;
os mastros e as casas escorrem sombra,
só o sangue brilha endurecido.
Não é verdade tanta loja de perfumes,
não é verdade tanta rosa decepada,
tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,
tanto relógio, tanta pomba assassinada.
Não quero para mim tanto veneno,
tanta madrugada varrida pelo gelo,
nem olhos pintados onde morre o dia,
nem beijos de lágrimas no meu cabelo.
Amanhece.
Um galo risca o silêncio
desenhando o teu rosto nos telhados.
Eu falo do jardim onde começa
um dia claro de amantes enlaçados.
Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.
Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança ou o calor
de uns dedos com restos de ternura.
Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
XIX
Terra: se um dia lhe tocares
o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio,
sê leve para quem o foi contigo.
Dá-lhe o meu cabelo para sonho,
e deixa as minhas mãos para tecer
a mágoa infinita das raízes
que no seu corpo um dia hão-de beber
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
Com o tempo aproximar-se-ão os rios
e os montes, com o tempo
acabará por te vir comer à mão
e fazer ninho na tua cama
o silêncio.