Jorge Luis Borges – Maio 20, 1928

Agora é invulnerável como os deuses.
Nada na terra pode feri-lo, nem o desamor de uma 
     mulher, nem a tísica, nem as ansiedades do verso, 
     nem essa coisa branca, a lua, que já não precisa fixar 
     em palavras.
Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas 
     e as portas, não para recordá-las.
Já sabe quantas noites e quantas manhãs lhe faltam.
Sua vontade lhe impôs uma severa disciplina. Cumprirá 
     determinados atos, cruzará previstas esquinas, tocará 
     uma árvore ou um gradil, para que o futuro seja tão 
     irrevogável quanto o passado.
Age dessa maneira para que o fato que deseja e teme não 
     seja senão o termo final de uma série.
Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará este 
     ou aquele saguão lateral.
Sem que ninguém desconfiasse, já se despediu de muitos 
     amigos.
Pensa naquilo que nunca saberá, se o dia seguinte será 
     um dia de chuva.
Cruza com um conhecido e lhe faz um gracejo. Sabe que 
     este episódio, por algum tempo, fará parte do 
     anedotário.
Agora é invulnerável como os mortos.
Na hora marcada, subirá alguns degraus de mármore. 
     (Isto irá perdurar na memória de outros.)
Descerá até o banheiro; no piso axadrezado a água 
     apagará rapidamente o sangue. O espelho o aguarda.
Ajeitará os cabelos, ajustará o nó da gravata (sempre foi 
     um pouco dândi, como convém a um jovem poeta) e 
     tentará imaginar que o outro, o do cristal, executa os 
     atos e que ele, seu duplo, repete-os. Sua mão não irá 
     tremer quando ocorrer o último. Docilmente, 
     magicamente, já terá apoiado a arma contra a 
     têmpora.
Assim, creio, passaram-se as coisas.

Trad.: Josely Vianna Baptista

mayo 20, 1928

Ahora es invulnerable como los dioses.
Nada en la tierra puede herirlo, ni el desamor de una mujer, ni la tisis, ni las ansiedades del verso, ni esa cosa blanca, la luna, que ya no tiene que fijar en palabras.
Camina lentamente bajo los tilos; mira las balaustradas y las puertas, no para recordarlas.
Ya sabe cuántas noches y cuántas mañanas le faltan.
Su voluntad le ha impuesto una disciplina precisa. Hará determinados actos, cruzará previstas esquinas, tocará un árbol o una reja, para que el porvenir sea tan irrevocable como el pasado.
Obra de esa manera para que el hecho que desea y que teme no sea otra cosa que el término final de una serie.
Camina por la calle 49; piensa que nunca atravesará tal o cual zaguán lateral.
Sin que lo sospecharan, se ha despedido ya de muchos amigos.
Piensa lo que nunca sabrá, si el día siguiente será un día de lluvia.
Se cruza con un conocido y le hace una broma. Sabe que este episodio será, durante algún tiempo, una anécdota.
Ahora es invulnerable como los muertos.
En la hora fijada, subirá por unos escalones de mármol. (Esto perdurará en la memoria de otros.)
Bajará al lavatorio; en el piso ajedrezado el agua borrará muy pronto la sangre. El espejo lo aguarda.
Se alisará el pelo, se ajustará el nudo de la corbata (siempre fue un poco dandy, como cuadra a un joven poeta) y tratará de imaginar que el otro, el del cristal, ejecuta los actos y que él, su doble, los repite. La mano no le temblará cuando ocurra el último. Dócilmente, mágicamente, ya habrá apoyado el arma contra la sien.
Así, lo creo, sucedieron las cosas.

Jorge Luis Borges – Cristo na Cruz

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
Os três madeiros são de igual altura.
Cristo não é o do meio. É o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é este das gravuras.
É áspero e judeu. Mas não o vejo
E vou buscá-lo sempre até o dia
De meu último passo sobre a terra.
O homem alquebrado sofre e cala.
A coroa de espinhos o castiga.
A chacota da plebe não o alcança
Já tantas vezes viu sua agonia.
A sua ou a desse outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
Pensa no reino que talvez o espera,
Pensa numa mulher que não foi sua.
Não lhe foi dado ver a teologia,
A Trindade indecifrável, os gnósticos,
As catedrais, a navalha de Occam,
Nem a púrpura, a mitra, a liturgia,
A conversão de Guthum pela espada,
A Inquisição, o sangue de seus mártires,
As atrozes Cruzadas, Joana d´Arc,
O Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é deus e que é um homem.
Ele morre com o dia. Não lhe importa.
Importa o duro ferro desses cravos.
Não é romano. Não é grego. Geme.
A nós deixou esplêndidas metáforas
E uma doutrina de perdão que pode
Anular o passado. (Esta sentença
Escreveu-a um irlandês no cárcere.)
Sua alma busca o fim, impaciente.
Escureceu um pouco. Já está morto.
Anda uma mosca pela carne quieta.
De que vale saber que tenha esse homem
Por mim sofrido, se eu sofro agora?

Trad.: Ivo Barroso

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/08/2018

Conheça outros livros de Jorge Luis Borges clicando aqui

Cristo en la cruz

Cristo en la cruz. Los pies tocan la tierra.
Los tres maderos son de igual altura.
Cristo no está en el medio. Es el tercero.
La negra barba pende sobre el pecho.
El rostro no es el rostro de las láminas.
Es áspero y judío. No lo veo
y seguiré buscándolo hasta el día
último de mis pasos por la tierra.
El hombre quebrantado sufre y calla.
La corona de espinas lo lastima.
No lo alcanza la befa de la plebe
que ha visto su agonía tantas veces.
La suya o la de otro. Da lo mismo.
Cristo en la cruz. Desordenadamente
piensa en el reino que tal vez lo espera,
piensa en una mujer que no fue suya.
No le está dado ver la teología,
la indescifrable Trinidad, los gnósticos,
las catedrales, la navaja de Occam,
la púrpura, la mitra, la liturgia,
la conversión de Guthrum por la espada,
la inquisición, la sangre de los mártires,
las atroces Cruzadas, Juana de Arco,
el Vaticano que bendice ejércitos.
Sabe que no es un dios y que es un hombre
que muere con el día. No le importa.
Le importa el duro hierro con los clavos.
No es un romano. No es un griego. Gime.
Nos ha dejado espléndidas metáforas
y una doctrina del perdón que puede
anular el pasado. (Esa sentencia
la escribió un irlandés en una cárcel.)
El alma busca el fin, apresurada.
Ha oscurecido un poco. Ya se ha muerto.
Anda una mosca por la carne quieta.
¿De qué puede servirme que aquel hombre
haya sufrido, si yo sufro ahora?

Jorge Luis Borges – James Joyce (em três traduções)

Primeira tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

Segunda tradução: Josely Vianna Baptista

Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Terceira Tradução: Augusto de Campos

Em apenas um dia estão os dias
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Cambridge, 1968

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/07/2018

James Joyce

En un día del hombre están los días
Del tiempo, desde aquel inconcebible
Día inicial del tiempo, en que un terrible
Dios prefijó los días y agonías

Hasta aquel otro en que el ubicuo río
Del tiempo terrenal torne a su fuente,
Que es lo Eterno, y se apague en el presente,
El futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

Entre el alba y la noche está la historia
Universal. Desde la noche veo
A mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.
Dame, Señor, coraje y alegría
Para escalar la cumbre de este día.

Cambridge, 1968

Jorge Luis Borges – Labirinto

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/06/2018

Jorge Luis Borges – Laberinto

No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.

Jorge Luis Borges – As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/04/2018

Jorge Luis Borges – Las Causas

Los ponientes y las generaciones.
Los días y ninguno fue el primero.
La frescura del agua en la garganta
de Adán. El ordenado Paraíso.
El ojo descifrando la tiniebla.
El amor de los lobos en el alba.
La palabra. El hexámetro. El espejo.
La Torre de Babel y la soberbia.
La luna que miraban los caldeos.
Las arenas innúmeras del Ganges.
Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña.
Las manzanas de oro de las islas.
Los pasos del errante laberinto.
El infinito lienzo de Penélope.
El tiempo circular de los estoicos.
La moneda en la boca del que ha muerto.
El peso de la espada en la balanza.
Cada gota de agua en la clepsidra.
Las águilas, los fastos, las legiones.
César en la mañana de Farsalia.
La sombra de las cruces en la tierra.
El ajedrez y el álgebra del persa.
Los rastros de las largas migraciones.
La conquista de reinos por la espada.
La brújula incesante. El mar abierto.
El eco del reloj en la memoria.
El rey ajusticiado por el hacha.
El polvo incalculable que fue ejércitos.
La voz del ruiseñor en Dinamarca.
La escrupulosa línea del calígrafo.
El rostro del suicida en el espejo.
El naipe del tahúr. El oro ávido.
Las formas de la nube en el desierto.
Cada arabesco del calidoscopio.
Cada remordimiento y cada lágrima.
Se precisaron todas esas cosas
para que nuestras manos se encontraran.

Jorge Luis Borges – Limites

Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar,
Há uma rua próxima que está vedada a meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até o fim do mundo.
Entre os livros de minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que já nunca abrirei.
Este verão cumprirei cinqüenta anos:
A morte me desgasta, incessante.

Trad.: Antonio Cicero

REPUBLICAÇÃO. Poema publicado no blog originalmente em 17/02/2016.

Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar,
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos,
Hay un espejo que me ha visto por última vez,
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Entre los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cincuenta años:
La muerte me desgasta, incesante.

De Inscripciónes (Montevideo, 1923), de Julio Platero Haedo

Jorge Luis Borges – Mortes de Buenos Aires

I
La Chacarita

Porque a entranha do cemitério do Sul
foi saciada pela febre amarela até dizer basta;
porque os tugúrios fundos do Sul
lançaram morte sobre a face de Buenos Aires
e porque Buenos Aires não pôde encarar essa morte,
golpes de pá te abriram
na ponta perdida do Oeste,
atrás das tempestades de pó
e do barro pesado e primitivo que moldou os quarteadores.
Ali só existia o mundo
e os costumes das estrelas sobre umas chácaras,
e o trem saía de um galpão em Bermejo
com os esquecimentos da morte:
mortos de barba desabada e olhos desvelados,
mortas de carne desalmada e sem magia.

As trapaças da morte — suja como o nascimento do homem —
continuam multiplicando teu subsolo e assim recrutas
teu cortiço de almas, tua guerrilha clandestina
de ossos
que caem no fundo de tua noite, tão enterrada
quanto as profundezas de um mar.
Uma dura vegetação de restos desolados
investe contra teus paredões intermináveis
cujo sentido é perdição,
e as margens, compenetradas de mortalidade,
apressam sua vida quente a teus pés
em ruas transpassadas por um lampejo pálido de barro
ou se atordoam com desgosto de bandoneões
ou com balidos de cornetas insossas no carnaval.
(A sentença inalterável do destino
que dura em mim eu ouvi nessa noite em tua noite
quando a viola na mão do ribeirinho
disse o mesmo que as palavras, e elas diziam:
A morte é vida vivida,
a vida é morte que vem;
a vida não é outra coisa
senão morte se exibindo.)

Macaco do cemitério, La Quema
gesticula adventícia morte a teus pés.
Gastamos e adoecemos a realidade: 210 carroças
infamam as manhãs, levando
a essa necrópole de fumaça
as coisas cotidianas que contagiamos de morte.
Cúpulas desengonçadas de madeiras e cruzes no alto
se movem — peças pretas de um xadrez final — por tuas ruas
e sua enfermiça majestade vai encobrindo
as vergonhas de nossas mortes.
Em teu disciplinado recinto
a morte é incolor, oca, numérica;
reduz-se a datas e a nomes,
mortes da palavra.

Chacarita:
desaguadouro desta pátria de Buenos Aires, encosta final,
bairro que sobrevives aos outros, que sobremorres,
lazareto que estás nesta morte, não na outra vida,
ouvi tua palavra de caducidade e não acredito nela,
porque tua própria convicção de angústia é ato de vida
e porque a plenitude de uma só rosa é maior que teus mármores.

II
La Recoleta

Aqui a morte é briosa,
é a recatada morte portenha,
a consangüínea da duradoura luz venturosa
do átrio do Socorro
e da cinza minuciosa dos braseiros
e do fino doce de leite dos aniversários
e das fundas dinastias de pátios.
Combinam bem com ela
essas velhas doçuras e também os velhos rigores.

Tua fronte é o pórtico valoroso
e a generosidade de cego da árvore
e a dicção de pássaros que aludem, sem conhecê-la, à morte
e o rufo, endeusador de peitos, dos tambores
nos enterros militares;
teu dorso, os tácitos cortiços do norte
e o paredão das execuções de Rosas.

Cresce em dissolução sob os sufrágios de mármore
a nação irrepresentável de mortos
que se desumanizaram em tua treva
desde que María de los Dolores Maciel, menina do Uruguai
— semente de teu jardim para o céu —
adormeceu, definhada, em teu descampado.

Mas eu quero demorar-me no pensamento
das flores leves que são teu comentário piedoso
— chão amarelo sob as acácias de tua encosta,
flores içadas para comemorar em teus mausoléus —
e no porquê de seu viver belo e adormecido
junto às terríveis relíquias dos que amamos.

Falei do enigma e direi também sua palavra:
as flores sempre vigiaram a morte,
porque nós, homens, sempre soubemos, de um modo incompreensível
que seu existir adormecido e belo
é o que melhor pode acompanhar os que morreram
sem ofendê-los com soberba de vida,
sem ser mais vida que eles.

Trad.: Josely Vianna Baptista

Muertes de Buenos Aires

I

La Chacarita

Porque la entraña del cementerio del sur
fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;
porque los conventillos hondos del sur
mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires
y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,
a paladas te abrieron
en la punta perdida del oeste,
detrás de las tormentas de tierra
y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.

Allí no había mas que el mundo
y las costumbres de las estrellas sobre unas chacras,
y el tren salía de un galón en Bermejo
con los olvidos de la muerte:
muertos de barba derrumbada y ojos en vela,
muertas de carne desalmada y sin magia.

Trapacerías de la muerte -sucia como el nacimiento del hombre-
siguen multiplicando tu subsuelo y asi reclutas
tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos
que caen al fondo de tu noche enterrada
lo mismo que a la hondura del mar.

Una dura vegetación de sobras en pena
hace fuerza contra tus paredones interminables
cuyo sentido es la perdición,
y convencidas de mortalidad las orillas
apuran su caliente vida a tus pies
en calles traspasadas por una llamarada baja de barro
o se aturden con desgano de bandoneones
o con balidos de cornetas sonsas de carnaval.

(El fallo de destino más para siempre,
que dura en mí lo escuche esa noche en tu noche
cuando la guitarra bajo la mano del orillero
dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:
La muerte es vida vivida
la vida es muerte que viene;
la vida no es otra cosa
que muerte que anda luciendo.)

Mono del cementerio, la Quema
gesticula advenediza muerte a tus pies.
Gastamos y enfermamos la realidad: 210 carros
infaman las mañanas, llevando
a esa necrópolis de humo
las cotidianas cosas que hemos contagiado de muerte.

Cúpulas estrafalarias de madera y cruces en alto
se mueven -piezas negras de un ajedrez final- por tus calles
y su achacosa majestad va encubriendo
las vergüenzas de nuestras muertes.

En tu disciplinado recinto
la muerte es incolora, hueca, numérica;
se disminuye a fechas y a nombres,
muertes de la palabra.

Chacarita:
desaguadero de esa patria de Buenos Aires, cuesta final,
barrio que sobrevives a los otros, que sobremueres,
lazareto que estas en esta muerte no en la otra vida,
he oído tu palabra de caducidad y no creo en ella,
porque tu misma convicción de angustia es acto de vida
y porque la plenitud de una sola rosa es más que
tus mármoles.

II

La Recoleta

Aquí es pundonorosa la muerte
aquí es la recatada muerte porteña,
la consanguínea de la duradera luz venturosa
del atrio del Socorro
y de la ceniza minuciosa de los braseros
y del fino dulce de leche de los cumpleaños
y de las hondas dinastías de los patios.
Se acuerdan bien con ella
esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.

Tu frente es el pórtico valeroso
y la generosidad de ciego del árbol
y la dicción de pájaros que aluden, sin saberla, a la muerte
y el redoble, endiosador de pechos, de los tambores
en los entierros militares;
tu espalda, los tácitos convetillos del norte
y el paredón de las ejecuciones de Rosas.

Crece en disolución bajo los sufragios de mármol
la nación irrepresentable de los muertos
que se deshumanizaron en tu tiniebla
desde que María de los Dolores Maciel, niña del Uruguay
-simiente de tu jardín para el cielo-
se durmió, tan poca cosa, en tu descampado.

Pero yo quiero demorarme en el pensamiento
de las livianas flores que son tu comentario piadoso
-suelo amarillo bajo las acacias de tu costado,
flores izadas a conmemoración en tus mausoleos-
y el porqué de su vivir gracioso y dormido
junto a las terribles reliquias de los que amamos.

Dije el enigma y diré también su palabra:
siempre las flores vigilaron la muerte,
porque siempre los hombres incomprensiblemente supimos
que su existir dormido y gracioso
es el que mejor puede acompañar a los que murieron
sin ofenderlos con soberbia de vida,
sin ser mas vida que ellos.

Jorge Luis Borges – A noite que no sul o velaram

A noite que no sul o velaram

                    para Letizia Álvarez de Toledo

Pelo passamento de alguém
— mistério cujo desconhecido nome possuo e cuja realidade
não abarcamos —
há até o alvorecer uma casa aberta no Sul,
uma casa ignorada que não estou destinado a rever,
mas que me espera esta noite
com tresnoitada luz nas altas horas do sono,
consumida por noites em claro, diferente,
minuciosa de realidade.

Para sua vigília que gravita em morte caminho
por ruas elementares como lembranças,
pelo tempo exuberante da noite,
sem outra vida audível
que não os vadios do bairro junto ao armazém apagado
e algum assovio perdido no mundo.

O andar lento, na posse da espera,
chego à quadra e à casa e à singela porta que busco
e me recebem homens constrangidos à seriedade
que viveram na época de meus antepassados,
e nivelamos destinos no aposento arrumado que dá para
o pátio
— pátio que está sob o poder e na integridade
da noite —
e dizemos, porque a realidade é maior, coisas indiferentes
e somos apáticos e argentinos no espelho
e o mate compartilhado mede horas vãs.

Comovem-me as miúdas sabedorias
que em todo falecimento se perdem
— hábito de alguns livros, de uma chave, de um corpo
entre os outros —
Eu sei que todo privilégio, embora obscuro, é da linhagem
do milagre
e é grande o de participar desta vigília,
reunida ao redor do que não se sabe: do Morto,
reunida para acompanhar e guardar sua primeira noite
na morte.

(O velório gasta os rostos;
nossos olhos estão morrendo no alto como Jesus.)

E o morto, o incrível?
Sua realidade está sob as flores diferentes dele
e sua mortal hospitalidade vai nos dar
uma lembrança a mais para o tempo
e sentenciosas ruas do Sul para merecê-las devagar
e brisa obscura sobre a fronte que se volta
e a noite que nos livra da maior angústia:
a prolixidade do real.

Trad.: Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista

 

La noche que en el Sur lo velaron

                    A Letizia Álvarez de Toledo

Por el deceso de alguien
– misterio cuyo vacante nombre poseo y cuya reali-
dad no abarcamos –
hay hasta el alba una casa abierta en el Sur,
una ignorada casa que no estoy destinado a rever,
pero que me espera esta noche
con desvelada luz en las altas horas del sueño,
demacrada de malas noches, distinta,
minuciosa de realidad.

A su vigilia gravitada en muerte camino
por las calles elementales como recuerdos,
por el tiempo abundante de la noche,
sin más oíble vida
que los vagos hombres de barrio junto al apagado
almacén
y algún silbido solo en el mundo.

Lento el andar, en la posesión de la espera,
llego a la cuadra y a la casa y a la sincera puerta que
busco
y me reciben hombres obligados a gravedad
que participaron de los años de mis mayores,
y nivelamos destinos en una pieza habilitada que mira
al patio
-patio que est?bajo el poder y en la integridad de la
noche-
y decimos, porque la realidad es mayor, cosas indife-
rentes
y somos desganados y argentinos en el espejo
y el mate compartido mide horas vanas.

Me conmueven las menudas sabidurías
que en todo fallecimiento de hombres se pierden
-hábito de unos libros, de una llave, de un cuerpo
entre los otros-
frecuencias irrecuperables que fueron
la precisión y la amistad del mundo para él.
Yo s?que todo privilegio, aunque oscuro, es de linaje
de milagro
y mucho lo es el de participar en esta vigilia,
reunida alrededor de lo que no se sabe: del muerto,
reunida para incomunicar y guardar su primera noche
en la muerte.

(El velorio gasta las caras;
los ojos se nos están muriendo en lo alto como Jesús).

¿Y el muerto, el increíble?
Su realidad est?bajo las flores diferentes de él
y su mortal hospitalidad nos dar?
un recuerdo más para el tiempo
y sentenciosas calles del Sur para merecerlas despacio
y brisa oscura sobre la frente que vuelve
y la noche que de la mayor congoja nos libra:
la prolijidad de lo real.

Jorge Luis Borges – O cego

I

Foi despojado do diverso mundo,
Dos rostos, que ainda são o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.

Dos livros lhe restou só o que deixa
A memória, essa fórmula do olvido
Que o formato retém, não o sentido,
E que apenas os títulos enfeixa.

O desnível espreita. Cada passo
Pode levar à queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento

Que não registra aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Lavro este meu insípido universo.

Trad.: Augusto de Campos

El ciego

I

Lo han despojado del diverso mundo,
De los rostros, que son lo que eran antes.
De las cercanas calles, hoy distantes,
Y del cóncavo azul, ayer profundo.

De los libros le queda lo que deja
La memoria, esa forma del olvido
Que retiene el formato, no el sentido,
Y que los meros títulos refleja.

El desnivel acecha. Cada paso
Puede ser la caída. Soy el lento
Prisionero de un tiempo soñoliento

Que no marca su aurora ni su ocaso.
Es de noche. No hay otros. Con el verso
Debo labrar mi insípido universo.

Jorge Luis Borges – João 1,14

Não será menos enigmática esta página
que as de Meus livros sagrados nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
por julgá-las de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será
torno a condescender com a linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com um menino brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia nasci
curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos, a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão, a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até as fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
a noite e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o díspar, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a relva,
o odor da chuva na Galileia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escrita a um homem qualquer;
nunca será o que desejo dizer,
não deixará de ser seu reflexo.
De Minha eternidade caem estes signos.
Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no odor dessa carpintaria.

Trad.: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Conheça outros livros de Jorge Luis Borges clicando nesse link

Jorge Luis Borges – Juan, I, 14

No será menos un enigma esta hoja
que las de Mis libros sagrados
ni aquellas otras que repiten
las bocas ignorantes,
creyéndolas de un hombre, no espejos
oscuros del Espíritu.
Yo que soy el Es, el Fue y el Será,
vuelvo a condescender al lenguaje,
que es tiempo sucesivo y emblema.
Quien juega con un niño juega con algo
cercano y misterioso;
yo quise jugar con Mis hijos.
Estuve entre ellos con asombro y ternura.
Por obra de una magia
nací curiosamente de un vientre.
Viví hechizado, encarcelado en un cuerpo
y en la humildad de un alma.
Conocí la memoria,
esa moneda que no es nunca la misma.
Conocí la esperanza y el temor,
esos dos rostros del incierto futuro.
Conocí la vigilia, el sueño, los sueños,
la ignorancia, la carne,
los torpes laberintos de la razón,
la amistad de los hombres,
la misteriosa devoción de los perros.
Fui amado, comprendido, alabado y pendí de una cruz.
Bebí la copa hasta las heces.
Vi por Mis ojos lo que nunca había visto:
la noche y sus estrellas.
Conocí lo pulido, lo arenoso, lo desparejo, lo áspero,
el sabor de la miel y de la manzana,
el agua en la garganta de la sed,
el peso de un metal en la palma,
la voz humana, el rumor de unos pasos sobre la hierba,
el olor de la lluvia en Galilea,
el alto grito de los pájaros.
Conocí también la amargura.
He encomendado esta escritura a un hombre cualquiera;
no será nunca lo que quiero decir,
no dejará de ser su reflejo.
Desde Mi eternidad caen estos signos.
Que otro, no el que es ahora su amanuense, escriba el poema.
Mañana seré un tigre entre los tigres
y predicaré Mi ley a su selva,
o un gran árbol en Asia.
A veces pienso con nostalgia
en el olor de esa carpintería.