Stanley Kunitz – As camadas

Eu já passei por muitas vidas,
uma delas a minha própria,
e não sou quem eu era,
embora alguns dos princípios
se mantenham, e eu lute para deles não me afastar.
Quando olho para trás,
como sou obrigado a fazer
antes de reunir forças
para prosseguir em minha jornada,
vejo os marcos diminuindo
em direção ao horizonte
e os fogos baixos exilando-se
de acampamentos abandonados,
sobre os quais anjos necrófagos
sobrevoam com suas asas pesadas.
Oh, eu fiz de mim uma tribo
de meus verdadeiros afetos,
e minha tribo está dispersa!
Como deve o coração se reconciliar
com seu festival de perdas?
Em uma ventania crescente,
a obstinada poeira dos meus amigos,
aqueles que tombaram pelo caminho,
alfineta amargamente meu rosto.
No entanto, eu me volto, eu me volto,
ligeiramente exultante,
com minha vontade intacta de ir
aonde quer que eu precise,
e cada pedra no meio do caminho
é preciosa para mim.
Na minha noite mais escura,
quando a lua estava coberta
e eu perambulava pelos escombros,
uma nebulosa voz
me orientou:
“Viva nas camadas,
não no entulho.”
Embora eu não domine a arte
de decifra-la,
sem dúvida o próximo capítulo
do meu livro de transformações
já está escrito,
ainda não terminei as minhas mudanças.

Trad.: Nelson Santander

The Layers

I have walked through many lives,
some of them my own,
and I am not who I was,
though some principle of being
abides, from which I struggle not to stray.
When I look behind,
as I am compelled to look
before I can gather strength
to proceed on my journey,
I see the milestones dwindling
toward the horizon
and the slow fires trailing
from the abandoned camp-sites,
over which scavenger angels
wheel on heavy wings.
Oh, I have made myself a tribe
out of my true affections,
and my tribe is scattered!
How shall the heart be reconciled
to its feast of losses?
In a rising wind
the manic dust of my friends,
those who fell along the way,
bitterly stings my face.
Yet I turn, I turn,
exulting somewhat,
with my will intact to go
wherever I need to go,
and every stone on the road
precious to me.
In my darkest night,
when the moon was covered
and I roamed through wreckage,
a nimbus-clouded voice
directed me:
“Live in the layers,
not on the litter.”
Though I lack the art
to decipher it,
no doubt the next chapter
in my book of transformations
is already written,
I am not done with my changes.

Stanley Kunitz – O retrato

Minha mãe nunca perdoou meu pai
por ter-se suicidado,
especialmente em um momento tão estranho
e em um parque público,
naquela primavera
quando eu estava esperando para nascer.
Ela encarcerou o nome dele
em seu armário mais profundo
e não o deixou mais sair,
embora eu pudesse ouvi-lo batendo.
Quando desci do sótão, trazendo
na mão o retrato em tons pastéis
de um estranho de lábios compridos,
bigode valente
e profundos olhos castanhos,
ela o rasgou em pedaços
sem uma única palavra
e estapeou-me com força.
Aos sessenta e quatro anos,
posso sentir minha face
ainda queimando.

Trad.: Nelson Santander

The Portrait

My mother never forgave my father
for killing himself,
especially at such an awkward time
and in a public park,
that spring
when I was waiting to be born.
She locked his name
in her deepest cabinet
and would not let him out,
though I could hear him thumping.
When I came down from the attic
with the pastel portrait in my hand
of a long-lipped stranger
with a brave moustache
and deep brown level eyes,
she ripped it into shreds
without a single word
and slapped me hard.
In my sixty-fourth year
I can feel my cheek
still burning.