James Tate – A promoção

Eu já fui um cachorro em minha vida passada, um cachorro
muito bom, e, por isso, fui promovido a ser humano.
Eu gostava de ser um cachorro. Trabalhava para um fazendeiro pobre,
protegendo e pastoreando suas ovelhas. Lobos e coiotes
tentavam passar por mim todas as noites, mas eu
nunca perdia uma ovelha. O fazendeiro me recompensava
com uma boa comida, comida de sua mesa. Ele pode ter
sido pobre, mas comia bem. E seus filhos
brincavam comigo quando não estavam na escola ou
trabalhando no campo. Eu tinha todo amor que um cachorro
poderia esperar. Quando envelheci, trouxeram um novo
cachorro e eu o treinei nas artimanhas do ofício.
Ele aprendeu rapidamente e o fazendeiro me trouxe para morar
com eles dentro de casa. De manhã, eu levava
os chinelos para o fazendeiro, pois ele também estava
envelhecendo. Eu estava morrendo lentamente, um pouco
a cada dia. O fazendeiro sabia disso e trazia o novo
cachorro para me visitar de vez em quando. Ele
me divertia com suas brincadeiras, cambalhotas
e focinhadas. Até que uma manhã, simplesmente
não me levantei. Eles me deram um belo enterro
perto de um riacho sob a sombra de uma árvore. Este foi o
fim da minha existência como cachorro. Às vezes sinto falta dela,
então sento perto da janela e choro. Moro em um arranha-céu
com vista para vários outros arranha-céus.
No meu emprego, trabalho em um cubículo e quase não falo
com ninguém o dia todo. Esta é a minha recompensa por ter sido
um bom cachorro. Os lobos humanos nem mesmo me percebem.
Eles não me temem.

The Promotion

I was a dog in my former life, a very good
dog, and, thus, I was promoted to a human being.
I liked being a dog. I worked for a poor farmer
guarding and herding his sheep. Wolves and coyotes
tried to get past me almost every night, and not
once did I lose a sheep. The farmer rewarded me
with good food, food from his table. He may have
been poor, but he ate well. And his children
played with me, when they weren’t in school or
working in the field. I had all the love any dog
could hope for. When I got old, they got a new
dog, and I trained him in the tricks of the trade.
He quickly learned, and the farmer brought me into
the house to live with them. I brought the farmer
his slippers in the morning, as he was getting
old, too. I was dying slowly, a little bit at a
time. The farmer knew this and would bring the
new dog in to visit me from time to time. The
new dog would entertain me with his flips and
flops and nuzzles. And then one morning I just
didn’t get up. They gave me a fine burial down
by the stream under a shade tree. That was the
end of my being a dog. Sometimes I miss it so
I sit by the window and cry. I live in a high-rise
that looks out at a bunch of other high-rises.
At my job I work in a cubicle and barely speak
to anyone all day. This is my reward for being
a good dog. The human wolves don’t even see me.
They fear me not.

Andreia C. Faria – Descarnação

Até aos trinta anos tens
a cara que Deus te deu. Depois
tens a cara que mereces. É uma promessa
de ironia, uma sentença sem recurso.

É-te assim dito:
estás entregue ao labor íntimo
do que comes, ao número de horas que dormes,
àquilo que fazes e sobretudo
àquilo em que pensas. Deus
(perdoa-lhe a fraqueza)
tolera-nos enquanto somos jovens,
ampara-nos, alisa-nos
a fronte após um desgosto, talvez
nos ame, mas deixa-nos
sozinhos quando a beleza
é terreno pouco firme

e assiste de longe
ao desafio temerário que lançou
a cada filho.

Sabes então que o rosto é uma flor
plantada no escuro, uma corola
tenra, redonda e impenetrável
que desabrocha e se abre
com as pétalas lisas e brilhantes, ou
confusas e despenteadas,
conforme a força
e a direção do vento.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/07/2018

Filodemo de Gádara – Estação da Rosa Silvestre

É a estação da rosa silvestre e da hortelã, Sosylos,
a estação do grão-de-bico e dos primeiros cortes dos brotos,
dos lambaris e dos queijos salgados, da alface-crespa
em cujas novas folhas a luz transfunde
um brilho quase esquecido. Ainda assim,
reparaste como neste ano algo mudou?
Como não fazemos mais nossas caminhadas matinais
ao longo da costa recém-povoada, nossos piqueniques
sob os plátanos e já não nos apressamos em sorver
o disco afundando do sol da tarde?
Como Antigenes e Bacchios, nossos amigos bronzeados,
musculosos e atléticos, ontem flertavam
e hoje levamos seus corpos para sepultar?

Trad.: Nelson Santander (a partir da versão em inglês feita por Sherod Santos)

Wildrose Season

It’s the season of wildrose and mint, Sosylos,
the season of chickpeas and first-cut sprouts,
of smelts and salted cheeses, of curly-edged
lettuce whose new leaves light transfuses
with a half-remembered glow. Even so,
have you noticed how this year something’s changed?
How we no longer take our morning walks
along the newly poppied shore, picnic
under the plane trees, or hurry over drinks
the sinking lozenge of the evening sun?
How Antigenes and Bacchios, our sun-bronzed,
buff, athletic friends, were flirting yesterday,
and today we carry them to their graves?

Manuel António Pina – M., A Última Palavra

Entre restos de vida passada
refugiava-se o coração de cada um de nós no seu covil,
uma gota de sangue, pequeno vitral de reflexos coloridos,
na orelha de M., a pistola no chão perto da mão, ainda quente a pistola.

O que quer que tivesse acontecido
fora em sítios inacessíveis às notícias dos jornais
e aos flashes das máquinas fotográficas
voando agora como aves cegas à sua volta.

Um grande mutismo cobrira tudo
gelando os nossos passos e o que disséssemos
ainda antes de pronunciado;
percebia-se, de quem sempre quis ter a última palavra.

Não se percebia era a falta de uma explicação ou de um sinal
(ao menos um sinal justificar-se-ia dadas as circunstâncias),
apenas um botão do casaco mal abotoado,
provavelmente sugerindo alguma impaciência.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/07/2018

Ellen Bass – Removendo a frente da casa

Estou à mesa da cozinha, tomando chá forte e comendo ovos
com gemas douradas como papoulas de nossas galinhas, Marilyn e Estelle.
Há um carro vermelho estacionado do outro lado da rua e as íris deslumbrantes do meu vizinho,
suas línguas franjadas saboreando o ar.
“A Monsanto está processando Vermont”, digo, folheando o Times.
Digo em voz alta porque Janet está na sala de estar,
na poltrona desbotada que o gato arranhou até à palha,
comento iogurte e os morangos que ela trouxe do campo
onde ela trabalha arduamente para aliviar as delicadas bagas de sua pesada carga química.
“O quê?” ela responde. Ela não está usando os aparelhos auditivos,
então eu respiro fundo e projeto minha voz. E enquanto enuncio os males corporativos,
de repente a frente da casa é removida.
Estamos em um palco, o público sentado no asfalto da Younglove Avenue,
assistindo a este casal peculiar tomar café da manhã e gritar
de uma sala para outra.
E durante todo o dia, enquanto coloco uma carga de roupa
na secadora, atendo o telefone, e enquanto ela se deita no sofá
lendo Grandes Esperanças e discutimos
sobre o barulho nas tubulações e se realmente precisamos chamar o encanador,
admiro como a atriz que interpreta minha personagem
e a atriz que interpreta a personagem dela
interpretam nossos papeis tão perfeitamente
nesta produção que durará
apenas um pouco antes de terminar de vez.
E quando chega a noite, fumamos um pouco de maconha – algo chamado Thunder Fuck,
que deve ser a elevada opinião que alguém tem de si mesmo,
mas que na verdade é muito boa, embora só nos permitamos dar um ou dois tragos,
já que Janet toma medicação para pressão e não pode
fazer o que fazia aos vinte anos, quando jogava uma mochila de pele de cabra
sobre os ombros e vagueava de sandálias pelo Senegal.
Enquanto me aproximo, ela diz: “Agora a plateia pode sentar-se no deque dos fundos
perto da churrasqueira e esta peça pode ser chamada de
As Velhas Lésbicas vão Dormir no Fim do Dia.”
Eu acendo a vela que a mãe dela me deu no meu último aniversário,
quando ela ainda podia passar batom.
O cenário é autêntico – uma pilha bagunçada de livros na minha mesinha-de-cabeceira
e do lado dela os aparelhos auditivos que ficam ali o dia todo.
E quando ela se vira para mim e sinto novamente
a maravilhosa estrutura de seus quadris, a lua,
esta especialista em iluminação, surge sobre a linha do telhado,
inundando-nos com seu impecável banho prateado.

Trad.: Nelson Santander

Taking Off the Front of the House

I’m at the kitchen table, drinking strong tea, eating eggs
with poppy-gold yolks from our chickens, Marilyn and Estelle.
There’s a red car parked across the street and my neighbor’s gorgeous irises,
their frilled tongues tasting the air.
“Monsanto is suing Vermont,” I say, turning the pages of the Times.
I say it loud because Janet’s in the living room
in the faded chair the cat has scratched into hay
eating yogurt and the strawberries she brought home from the field
where she labors to relieve the tender berry of its heavy chemical load.
“What?” she says. She isn’t wearing her hearing aids
so I take a breath and project my voice. And as I enunciate the corporate evils,
suddenly the front of the house is sheared away.
We’re on a stage, the audience seated on the asphalt of Younglove Avenue,
watching this quirky couple eat their breakfast and yell
back and forth from one room to another.
And throughout the day, as I throw a load of laundry
in the dryer, answer the phone, as she lies on the couch
reading Great Expectations and we bicker
about the knocking in the pipes and whether we really need to call a plumber,
I admire how the actor who plays the character of me
and the actor who plays the character of her
perform our parts so perfectly
in this production that will last
just a little while before it closes for good.
And when night comes, we smoke a little weed – something called Thunder Fuck,
which must be someone’s high opinion of himself,
but in truth is quite nice, though we only take a couple tokes
since Janet’s on blood pressure medication and she can’t
do the way she did at twenty when she slung a goatskin bag
over her shoulder and wandered around Senegal in flip-flops.
As I reach for her, she says, “Now the audience can sit on the back deck
by the barbecue and this play can be called
The Old Lesbians Go to Bed at the End of the Day.”
I light the candle her mother gave me for my last birthday
when she could still put on her lipstick.
The set is authentic – a messy stack of books on my nightstand,
on her side, the hearing aids that sit there all day.
And as she turns toward me and I feel again
the marvelous architecture of her hips, the moon,
that expert in lighting, rises over the roofline,
flooding us in her flawless silvery wash.

Jorge Luis Borges – James Joyce (em três traduções)

Primeira tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques.
Revisão de trad.: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz

Em um dia do homem estão os dias
do tempo, desde o inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne a sua fonte,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no passado o que agora é meu.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

Segunda tradução: Josely Vianna Baptista

Num só dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias
até o outro em que o rio ubíquo
do tempo secular torne à nascente,
que é o Eterno, e se apague no presente,
no futuro, no ontem, no que ora possuo.
Entre a aurora e a noite está a história
universal. E vejo desde o breu,
junto a meus pés, os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dai-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

(Cambridge, 1968)

Terceira Tradução: Augusto de Campos

Em apenas um dia estão os dias
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Cambridge, 1968

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/07/2018

James Joyce

En un día del hombre están los días
Del tiempo, desde aquel inconcebible
Día inicial del tiempo, en que un terrible
Dios prefijó los días y agonías

Hasta aquel otro en que el ubicuo río
Del tiempo terrenal torne a su fuente,
Que es lo Eterno, y se apague en el presente,
El futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

Entre el alba y la noche está la historia
Universal. Desde la noche veo
A mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.
Dame, Señor, coraje y alegría
Para escalar la cumbre de este día.

Cambridge, 1968

Hanif Willis-Abdurraqib – E qual será a utilidade de sua vaidade quando o arrebatamento chegar?

E qual será a utilidade de sua vaidade quando o arrebatamento chegar?,

questiona o homem com um carrinho de garrafas vazias na esquina da igreja com a
lincoln enquanto fixo meu olhar no meu telefone e digo
Eu sei sim eu sei enquanto tento encontrar o filtro
adequado que fará o pôr-quase-perfeito-do-sol parecer

com a descrição que eu faria dele em um poema e o homem
diz o momento já está bem na sua frente e eu
respondo eu sei mas todos que eu amo não estão aqui e digo
aqui como nesta esquina comigo enquanto dou

ao céu um tom de vermelho mais intenso em meu telefone e digo
aqui com relação a todos que amo e ainda posso tocar, e não a
passar meus dedos como o vento em um sonho
mas quando olho para o homem, vejo um caleidoscópio

de sombras – suas sombras têm sombras,
elas são pequenas e se arrastam atrás dele e eu sei
então que todos que ele ama também não estão aqui e o homem não pergunta
mesmo assim eu digo ei cara, eu não tenho nada, nada embora eu tenha muito

para voltar para casa e o sol ainda está quente mesmo em seu
flerte interminável com a submissão e a palma da mão do homem tem um pequeno
rio dentro, quero dizer, ele tomou a minha mão na sua e agora aqui estamos
unidos e imóveis e o homem diz de que cor você está fazendo

o céu?
 e eu respondo que é daquela que eu posso descrever em um poema, eu digo toda rendição
termina em sangue 
e ele diz de que cor você está fazendo o céu e
eu digo algo brilhante o suficiente para fazer as pessoas desejarem estar aqui
e ele aperta os olhos para os fragmentos dançantes de luz

agonizante ao longo de um telhado e diz eu amo as coisas apenas como elas são
e tenho certeza de que já amei também mas não posso provar para ninguém ultimamente
e ele diz o fim nem sempre é sobre o que morre e eu sei que sei
ou que já soube e agora escrevo sobre coisas belas

como se nunca mais fosse toca-las outra vez e o homem
me olha nos olhos e aponta para a abóbada azul-alaranjada
além dos portões do céu e diz os rostos de todos de quem você sente falta
estão lá em cima
 e eu sei, eu sei que não posso vê-los mas eu sei

e ele vira meu rosto para o horizonte e diz
não temos muito tempo sobrando e eu percebo que ele se refere ao tempo
antes do sol finalmente encerrar seu trabalho diário ou acho
que foi isso que entendi mas ainda não consigo parar de tremer e fecho

meus olhos e estou soluçando na esquina da igreja com a
lincoln e quando abro os olhos o sol está puxando das nuvens
todos que escolheram me amar e levando-os consigo
para o horizonte embriagado de luz e eu estou vendo isso e sei
que estou vendo isso: a garota que me beijou quando eu era um menino na seção de laticínios

do mercado enquanto nossos pais faziam compras, e o rapaz mais velho do
time de basquete que me ensinou a fazer um bom punho e acertá-lo
na mandíbula de um valentão e os amigos que já rastejaram até minha varanda

em qualquer verão de qualquer ano em que estive vivo, todos eles estavam lá
eu vi seus rostos e foi como se me tivessem dado os olhos de um recém-nascido
novamente e uma vez que você sabe o que é ser sozinho é difícil deixar
de ver o que serve como um lembrete de que você nem sempre foi

vazio e eu estou ofegante no ar agora escuro e puxo minha camisa
para cima para enxugar as lágrimas que ainda caem e vejo o homem caminhando na
outra direção e o persigo e toco em seu braço e digo
você viu o que eu vi?
 e ele se vira e se inclina para o

clarão de um poste de luz e agora está ancorado por uma única sombra
e ele debocha e diz já nos conhecemos? e ele escarnece e empurra
seu carrinho noite adentro e eu posso ouvir o tilintar do vidro enquanto
o vejo diminuir de tamanho e desaparecer e eu olho para o meu

telefone e o céu na tela ainda está vermelho como o sangue.

Trad.: Nelson Santander

And What Good Will Your Vanity Be When The Rapture Comes

says the man with a cart of empty bottles at the corner of church
and lincoln while I stare into my phone and I say
I know oh I know while trying to find the specific
filter that will make the sun’s near-flawless descent look

the way I might describe it in a poem and the man
says the moment is already right in front of you and I
say I know but everyone I love is not here and I mean
here like on this street corner with me while I turn

the sky a darker shade of red on my phone and I mean
here like everyone I love who I can still touch and not
pass my fingers through like the wind in a dream
but I look up at the man and he is a kaleidoscope

of shadows I mean his shadows have shadows
and they are small and trailing behind him and I know
then that everyone he loves is also not here and the man doesn’t ask
but I still say hey man I’ve got nothing I’ve got nothing even though I have plenty

to go home to and the sun is still hot even in its
endless flirt with submission and the man’s palm has a small
river inside I mean he has taken my hand now and here we are
tethered and unmoving and the man says what color are you making

the sky
 and I say what I might say in a poem I say all surrender
ends in blood 
and he says what color are you making the sky and
I say something bright enough to make people wish they were here
and he squints towards the dancing shrapnel of dying

light along a rooftop and he says I love things only as they are
and I’m sure I did once too but I can’t prove it to anyone these days
and he says the end isn’t always about what dies and I know I know
or I knew once and now I write about beautiful things

like I will never touch a beautiful thing again and the man
looks me in the eyes and he points to the blue-orange vault
over heaven’s gates and he says the face of everyone you miss
is up there
 and I know I know I can’t see them but I know

and he turns my face to the horizon and he says
we don’t have much time left and I get that he means the time
before the sun is finally through with its daily work or I
think I get that but I still can’t stop trembling and I close

my eyes and I am sobbing on the comer of church and
lincoln and when I open my eyes the sun is plucking everyone
who has chosen to love me from the clouds and carrying them
into the light-drunk horizon and I am seeing this and I know
I am seeing this the girl who kissed me as a boy in the dairy aisle

of meijer while our parents shopped and the older boy on the
basketball team who taught me how to make a good fist and swing
it into the jaw of a bully and the friends who crawled to my porch

in the summer of any year I have been alive they were all there
I saw their faces and it was like I was given the eyes of a newbor
again and once you know what it is to be lonely it is hard to
unsee that which serves as a reminder that you were not always

empty and I am gasping into the now-dark air and I pull my shirt
up to wipe whatever tears are left and I see the man walking in the
other direction and I chase him down and tap his arm and I say did
you see it did you see it like I did
 and he turns and leans into the

glow of a streetlamp and he is anchored by a single shadow now
and he sneers and he says have we met and he scoffs and pushes
his cart off into the night and I can hear the glass rattling even
as I watch him become small and vanish and I look down at my

phone and the sky on the screen is still blood red.

Emily Dickinson – “Senti um Féretro em meu Cérebro…”

Senti um Féretro em meu Cérebro,
E Carpideiras indo e vindo
A pisar — a pisar — até eu sonhar
Meus sentidos fugindo —

E quando tudo se sentou,
O Tambor de um Ofício —
Bateu — bateu — até eu sentir
Inerte o meu Juízo

E eu os ouvi — erguida a Tampa —
Rangerem por minha Alma com
Todo o Chumbo dos pés, de novo,
E o Espaço — dobrou,

Como se os Céus fossem um Sino
E o Ser apenas um Ouvido,
E eu e o Silêncio estranha Raça
Só, naufragada, aqui —

Partiu-se a Tábua em minha Mente
E eu fui cair de Chão em Chão —
E em cada Chão achei um Mundo
E Terminei sabendo — então —

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 08/07/2018

Emily Dickinson – I felt a Funeral, in my Brain

I felt a Funeral, in my Brain,
And Mourners, to and fro
Kept treading — treading — till it seemed
That Sense was breaking through —

And when they all were seated,
A Service like a Drum —
Kept beating — beating — till I thought
My Mind was going numb —

And then I heard them lift a Box
And creak across my Soul
With those same Boots of Lead, again,
Then Space — began to toll,

As all the Heavens were a Bell,
And Being, but an Ear,
And I, and Silence, some strange Race
Wrecked, solitary, here —

And then a Plank in Reason, broke,
And I dropped down, and down —
And hit a World, at every plunge,
And Finished knowing — then —

Yusef Komunyakaa – Ode à Larva

Irmã da mosca-varejeira
& da divindade, você faz mágica
Nos campos de batalha,
Em pedaços de carne suína estragada

& em lugares sujos. Sim, você
Chega à raiz de todas as coisas.
Você é sólida & matemática.
Jesus Cristo, você é implacável

Com a verdade. Ontológica & lustrosa,
Você lança feitiços em mendigos & reis
Atrás da porta de pedra do túmulo de César
Ou em trincheiras abertas num campo de ambrósias.

Nenhum credo ou decreto pode proscrevê-la
Enquanto você dizima cada coisa viva. Pequena
Mestra da terra, ninguém chega ao céu
Sem antes passar por você.

Trad.: Nelson Santander

Ode to the Maggot

Brother of the blowfly
& godhead, you work magic
Over battlefields,
In slabs of bad pork

& flophouses. Yes, you
Go to the root of all things.
You are sound & mathematical.
Jesus Christ, you’re merciless

With the truth. Ontological & lustrous,
You cast spells on beggars & kings
Behind the stone door of Caesar’s tomb
Or split trench in a field of ragweed.

No decree or creed can outlaw you
As you take every living thing apart. Little
Master of earth, no one gets to heaven
Without going through you first.

Manuel de Freitas – Pompe Inutili

a Silvina Rodrigues Lopes

Ninguém nasce; seria descabido
chamar alguém aos resíduos
de placenta que envolvem
um conjunto de órgãos
a tudo ou quase tudo predispostos.

Só os mortos, verdadeiramente,
existem. Escreveram ou não
escreveram livros, cartas de amor,
diários. Não importa: cruzaram-se
connosco, sentaram-se por vezes
à mesma mesa, acreditaram até
no terno suplício do amor.
E tinham mãos reais, ao tocarem
o rosto imberbe de que se despediam.
Um beijo, sobre rugas apenas,
conseguia tornar menos frias as manhãs.

Despedem-se muito mal, os mortos.
Embora, por uma vez, sejam
exactos e sinceros – no momento
em que descem à terra e nos impedem
de partilhar com eles um cigarro,
o último copo, uma espécie de destino.

São terrivelmente reais, os mortos.
A vida inteira não chega
para que possamos matá-los a todos,
um a um, como decerto aconselharia
a mais elementar higiene metafísica.
Dão-nos, contudo, a força necessária
para morrer cada vez mais, tolerando
dias de aluguer, casas ligeiramente
inabitáveis. Porque os outros, na
verdade, não passam de mortos imperfeitos.
Estão, como nós, um pouco demasiado vivos.

Talvez um dia, porém, venham a
assinar um poema assim (e pode até não ser
um poema, muito menos assim), em que se note,
além das influências óbvias, uma certa
– digamos – especialização no horror.
Pois é disso apenas que se trata.

Os mortos sabem-no.
A sabedoria é inútil.
A poesia também.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/07/2018