Maria Cecilia Brandi – A Dança

Se a festa começou às dez e meia
e terminou por volta das quatro
teve trezentos e trinta minutos
e como foram setenta e dois convidados
neste meu aniversário
de trinta e oito anos
tive menos de cinco minutos
para conversar com cada um
na verdade ainda menos
pois poucos chegaram no início
e saíram no fim
e eu devo ter ido
ao banheiro quatro vezes e
gasto dois minutos por vez
o que consumiu oito minutos meus
sem falar com ninguém
fui algumas vezes à cozinha
para repor comes e bebes
e nesse tempo também
não falei com meus convidados
só com J. que não via há três anos
devo ter conversado
por mais de dez minutos
havia muita coisa para contar
e tudo parecia ter que ser ali
como se não morássemos a sete
quilômetros de distância
mas havia outras distâncias
impedindo o encontro antes
há algo de mágico nas festas
um fogo reafirmado
talvez seja pelas velas
o tempo derretendo
a conversa para ficar boa
costuma demorar um pouco
as palavras se soltam lentamente
mesmo que o entorno acelere
eram todos meus convidados
mas não pude falar com cada um
.

Por isso a dança
A vida pisando na cara do tempo
o triunfo do coração
o discurso vitorioso dos pés
Os corpos que se dobram para contar
qualquer coisa subjetiva
e fácil de se entender
no ritmo da canção
A interação pública dos corpos
O pacto delicado que ativa as relações
e a ciência que nasce
em pulsações e movimentos
que têm neles mesmos seu fim
O congelamento mental
de alguns instantes
em meio ao fluxo enérgico
como se o corpo solto
libertasse o olhar
Menos dizer e mais sentir
A expansão do sujeito
feito bailarina do Degas:
rodopia em bronze
quente e não protela o gozo
A dança engendra
toda uma plástica:
o prazer de dançar irradia
ao seu redor
o prazer de ver dançar
A única âncora:
o próprio corpo
o mesmo corpo
que produz as ondas
antes das despedidas

Publicado originalmente na Ilustríssima, da Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/03/1867374-leia-o-poema-inedito-a-danca-de-maria-cecilia-brandi.shtml