Lisel Mueller – Desenhos de criança

1

O sol pode estar visível ou não
(pode estar atrás de você,
o expectador dessas imagens)
mas o céu é sempre azul
se é dia. Se não,
as estrelas estão quase ao seu alcance;
inclinadas, elas chegam até você,
na iminência de cair.
Nunca é nascer ou pôr do sol;
não há nenhum olho ensanguentado
espiando você no horizonte.
É claramente dia ou noite,
é brilhante ou totalmente escuro,
é aqui e nunca lá.

2

No princípio, você só precisava da
sua cabeça, uma lua boiando no espaço
e quatro galhos nus;
e quando seu corpo foi adicionado,
era leve e fino no começo,
não a capela sombria
da qual, mais tarde, você tentou escapar.
Você vivia em um mundo não newtoniano,
seus braços cresciam dos seus ombros,
seus pés não tocavam o chão,
seus cabelos escorriam,
você ainda estava voando.

3

A casa é menor do que você se lembrava,
tem janelas mas não tem porta.
Uma chaminé se assenta no telhado de duas águas,
uma espiral de fumaça o tranquiliza.
Mas a casa tem apenas duas dimensões,
como uma máscara sem rosto;
as pessoas que ali vivem ficam do lado de fora
como se o tempo fosse sempre verão —
não há nada atrás da parede
exceto um espaço de onde o vento sopra,
mas isso você não pode ver.

Trad.: Nelson Santander

Drawings by children

1

The sun may be visible or not
(it may be behind you,
the viewer of these pictures)
but the sky is always blue
if it is day. If not
the stars come almost within your grasp;
crooked, they reach out to you,
on the verge of falling.
It is never sunrise or sunset;
there is no bloody eye
spying on you across the horizon.
It is clearly day or night,
it is bright or totally dark,
it is here and never there.

2

In the beginning, you only needed
your head, a moon swimming in space,
and four bare branches;
and when your body was added,
it was light and thin at first,
not yet the dark chapel
from which, later, you tried to escape.
You lived in a non-Newtonian world,
your arms grew up from your shoulders,
your feet did not touch the ground,
your hair was streaming,
you were still flying.

3

The house is smaller than you remembered,
it has windows but no door.
A chimney sits on the gable roof,
a curl of smoke reassures you.
But the house has only two dimensions,
like a mask without its face;
the people who live there stand outside
as though time were always summer —
there is nothing behind the wall
except a space where the wind whistles,
but you cannot see that.

Carlos Drummond de Andrade – Relógio do Rosário

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face… Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.

Joyce Carol Oates – Este não é um poema

Este não é um poema

em que o poeta descobre
delicados ossos branco-ressequidos
de uma pequena criatura
em uma margem do Grande Lago
ou os restos desidratados
dos mais grotescos atropelamentos
ao lado da apressada rodovia.

Nem é um poema em que
um espelho partido concebe
uma face assustada,
ou gramas secas sibi-
lando como consoantes
em uma língua estrangeira.
Álbum de fotos de família
repleto de saudosos
estranhos há muito falecidos,
de armário com as belas
roupas dos mortos.
Baú do sótão, poço de pedra,
ou metonímica lua
viajando no tempo por sabedoria
na era Paleolítica,
no Império Médio
ou Gênesis
ou na época de Bashō…

Em vez disso é uma série
de palavras em busca
de um recipiente —
um caule verde elegante,
um pulmão transparente,
um singular cacho de cabelo,
um arrulhar vogais
como pombas.

Trad.: Nelson Santander

Livros de Joyce Carol Oates

This Is Not a Poem

in which the poet discovers
delicate white-parched bones
of a small creature
on a Great Lake shore
or the desiccated remains
of cruder roadkill
beside the rushing highway.

Nor is it a poem in which
a cracked mirror yields
a startled face,
or sere grasses hiss-
ing like consonants
in a foreign language.
Family photo album
filled with yearning
strangers long deceased,
closet of beautiful
clothes of the dead.
Attic trunk, stone well,
or metonymic moon
time-travelling for wisdom
in the Paleolithic
age, in the Middle Kingdom
or Genesis
or the time of Bashō. . . .

Instead it is a slew
of words in search
of a container—
a sleek green stalk,
a transparent lung,
a single hair’s curl,
a cooing of vowels
like doves.

Miguel D’Ors – Variações sobre um tema de Stevens

Não é o canto do melro:
é o silêncio
que nos deixa, um silêncio
que é algo diferente do silêncio
porque nele ainda soa
a memória do canto
do melro. Nem silêncio,
nem canto: o que ocorre
quando o canto
termina
e ainda não começou o silêncio.
Podes chamar-lhe de alma.

Trad.: Nelson Santander

Variaciones sobre un tema de Stevens

No es el canto del mirlo:
es el silencio
que nos deja, un silencio
que es algo diferente del silencio
porque en él suena aún
el recuerdo del canto
del mirlo. Ni silencio
ni canto: lo que ocurre
cuando el canto
ya ha acabado
y aún no ha empezado el silencio.
Puedes llamarlo el alma.

Seamus Heaney – [Como todo mundo]

Como todo mundo, inclinei minha cabeça
durante a consagração do pão e do vinho,
elevei meus olhos para a hóstia e para o cálice levantados,
acreditei (seja lá o que isso signifique) que uma mudança ocorrera.

Fui ao genuflexório e recebi o mistério
em minha língua, voltei para o meu lugar, fechei meus olhos depressa,
fiz um ato de ação de graças, abri meus olhos e senti o
tempo começando novamente.

Nunca houve um drama
em que eu discutisse comigo mesmo ou com outra pessoa.
A perda ocorreu fora do palco. No entanto, eu não consigo
renegar expressões como “ação de graças” ou “hóstia”
ou mesmo “pão da comunhão.” Elas têm uma imorredoura
vibração e, como água de poço, atraem para o fundo.

Trad.: Nelson Santander

[Like everybody else]

Like everybody else, I bowed my head
during the consecration of the bread and wine,
lifted my eyes to the raised host and raised chalice,
believed (whatever it means) that a change occurred.

I went to the altar rails and received the mystery
on my tongue, returned to my place, shut my eyes fast, made
an act of thanksgiving, opened my eyes and felt
time starting up again.

There was never a scene
when I had it out with myself or with another.
The loss occurred off stage. Yet I cannot
disavow words like “thanksgiving” or “host”
or even “communion bread.” They have an undying
tremor and draw, like well water far down.

Pattiann Rogers – Perspectiva de alcance

Lá em cima, longe desta estrada,
Longe das partículas de geada
Que revestem a casca de cada gravanço,
E do rijo inseto arqueiro em seu avanço
Na escuridão da manhã, pata farpada por pata farpada,
Subindo pela haste do trillium,
Diretamente ao longo do céu sobre esta estrada agora,
As galáxias do aglomerado de Cygnus A
Estão colidindo umas com as outras em um enxame maciço
De catástrofes interpenetrantes e explosivas.
Eu tento me lembrar disso.

E mesmo no fingimento violeta e dourado
Da noite, eu me esforço em recordar
Que levaria 40 mil anos cheios de ajuntamentos
e quedas de folhas, cheios de polpa rachando
E do duro enrugamento da semente, de ascensão
Das fibras das madeiras e de desintegração das florestas,
Deste lago desaparecendo completamente nos corpos
Lamacentos dos sapos e dos refúgios das lentilhas-d´água,
40 mil anos e a coisa mais veloz que possuímos
Para alcançar a estrela mais próxima de nós.

E quando você fala assim comigo
Eu tento me lembrar que as paredes de madeira e de cimento
Desta sala estão sendo varridas neste momento,
Molécula por molécula, por um vento lento e contínuo,
E que nada separa nossos corpos
Do vasto vazio em expansão, e sei que
Estamos sentados em nossas cadeiras
Dialogando no meio da escuridão do espaço.

E quando você olha para mim
Eu tento me lembrar que, neste momento,
Em algum lugar milhões de milhas na penumbra além
Do sol, o cometa de Biela, acelerando
Em suas rochas e gelos, está apenas começando a entrar
No arco mais amplo de sua elíptica curva.

Trad.: Nelson Santander

Achieving Perspective

Straight up away from this road
Away from the fitted particles of frost
Coating the hull of each chick pea,
And the stiff archer bug making its way
In the morning dark, toe hair by toe hair,
Up the stem of the trillium,
Straight up through the sky above this road right now,
The galaxies of the Cygnus A cluster
Are colliding with each other in a massive swarm
Of interpenetrating and exploding catastrophes.
I try to remember that.

And even in the gold and purple pretense
Of evening, I make myself remember
That it would take 40,000 years full of gathering
Into leaf and dropping, full of pulp splitting
And the hard wrinkling of seed, of the rising up
Of wood fibers and the disintegration of forests,
Of this lake disappearing completely in the bodies
Of toad slush and duckweed rock,
40,000 years and the fastest thing we own,
To reach the one star nearest to us.

And when you speak to me like this,
I try to remember that the wood and cement walls
Of this room are being swept away now,
Molecule by molecule, in a slow and steady wind,
And nothing at all separates our bodies
From the vast emptiness expanding, and I know
We are sitting in our chairs
Discoursing in the middle of the blackness of space.

And when you look at me
I try to recall that at this moment
Somewhere millions of miles beyond the dimness
Of the sun, the comet Biela, speeding
In its rocks and ices, is just beginning to enter
The widest arc of its elliptical turn.

Wendy Cope – Para minha irmã, emigrando

Você deixou comigo
as coisas que não podia levar
ou que não conseguia doar – …
livros, discos e uma lata de biscoitos
que Nanna deu para você.

É velha e suja
e a tampa não encaixa.
Inerte em um canto do meu quarto,
totalmente inútil, é tão comovente
quanto um brinquedo que já foi amado.

Sim, estou sentimental –
mas se você tivesse ficado,
teríamos brigado
como sempre, encontrado
desculpas para não telefonar.

Nós nunca aprendemos. Crescemos
brigando, com medo
de que a família nos asfixie,
apenas cedendo ao amor
quando alguém morre ou se vai.

Trad.: Nelson Santander

For my sister, emigrating

You’ve left with me
the things you couldn’t take
or bear to give away – …
books, records and a biscuit-tin
that Nanna gave you.

It’s old and dirty
and the lid won’t fit.
Standing in the corner of my room,
quite useless, it’s as touching
as a once loved toy

Yes, sentimental now –
but if you’d stayed,
we woulkd have quarrelled
just the same as ever,
found excuses not to phone.

We never learn. We’ve grown up
struggling, frightened
that the family would drown us,
only giving in to love
when someone’s dead or gone.

Stephen Dunn – O não dito

Uma noite, ambos precisaram de coisas diferentes
do mesmo tipo; ela, de consolo; ele, ser consolado.
Assim, depois de um jantar regado a vinho,
quando eles chegaram em casa separados
no mesmo carro, cada um já havia falhado com
o outro com o que parecia
um insuportável atraso do que sentiam lhes ser devido.
Consolo significava para ela ser compreendida
tão bem que você o daria antes mesmo que ela pedisse.
Para ele, consolação era uma rede
de compromissos: diga o que quiser
desde que aceite o que eu quero dizer.
No quarto, eles se despiram e se vestiram
e foram para a cama. O silêncio é o que preenche
um túnel depois que uma locomotiva o atravessa.
Dias depois, o mais carente finalmente falou.
“O que tem na TV hoje à noite?” disse ele desta vez,
e ela respondeu, e eles estavam bem novamente.
Cada um, para sempre, se lembraria do fracasso
em dar consolo, do fracasso em ser consolado.
E muitas, muitas noites futuras
os surpreenderiam virando-se para seus respectivos lados
da cama, terrivelmente despertos e torcendo
as cobertas, ou, com a mesma probabilidade, se aproximando
e dormindo esquecidos a noite toda.

Trad.: Nelson Santander

The Unsaid

One night they both needed different things
of a similar kind; she, solace; he, to be consoled.
So after a wine-deepened dinner
when they arrived at their house separately
in the same car, each already had been failing
the other with what seemed
an unbearable delay of what felt due.
What solace meant to her was being understood
so well you’d give it to her before she asked.
To him, consolation was a network
of agreements: say what you will
as long as you acknowledge what I mean.
In the bedroom they undressed and dressed
and got into bed. The silence was what fills
a tunnel after a locomotive passes through.
Days later the one most needy finally spoke.
“What’s on TV tonight?” he said this time,
and she answered, and they were okay again.
Each, forever, would remember the failure
to give solace, the failure to be consoled.
And many, many future nights
would find them turning to their respective sides
of the bed, terribly awake and twisting up
the covers, or, just as likely, moving closer
and sleeping forgetfully the night long.

Pádraig Ó Tuama – Como [não] ser sozinho

Como não ser sozinho

Tudo começa com a compreensão
de que nada dura para sempre.
Por isso, é melhor você começar a fazer as malas agora.
Mas, nesse meio tempo,
pratique estar vivo.

Haverá uma festa
em que você sentirá
que ninguém está prestando atenção em você.
E haverá outra
em que atenção é tudo o que você receberá.
O que você precisa fazer
é lembrar-se de conversar
consigo mesmo
entre esses eventos.

E,
novamente,
haverá um dia,
— uma década —
em que você não se
sentirá bem no próprio corpo,
embora esteja
no único corpo em que pode estar.

Você precisa controlar
seu hábito de esquecer
de respirar.

Lembra quando você era jovem
e praticava beijos em seu próprio braço?
Você estava no caminho certo então.
Às vezes, o mal conhece a própria cura.
Conforta a própria compreensão.
O bem também.
Não precisa de um motivo.

Existe um você
contando outra história sobre você.
Ouça-a.

Qual parte do seu corpo
lhe causa inquietação?
O peito? O punho? O sonho antes de despertar?
A cabeça que sente estar no ponto mais alto do balanço
ou o aperto no estômago como se estivesse caindo
& caindo & caindo e caindo?
Ele sabe de algo: você está morrendo.
Tente permanecer vivo.

Por ora, toque-se.
Estou falando sério.

Toque em você
mesmo.
Pegue sua mão
e coloque-a em
algum ponto
sobre seu corpo.
E ouça
a comunhão de insanidades
que
você é.
Você é
uma
conversa interessante.

Seu lugar
é aqui.

Trad.: Nelson Santander

How to belong be alone

It all begins with knowing
nothing lasts forever.
So you might as well start packing now.
But, in the meantime,
practice being alive.

There will be a party
where you’ll feel like
nobody’s paying you attention.
And there will be a party
where attention’s all you’ll get.
What you need to do
is to remember
to talk to yourself
between these parties.

And,
again,
there will be a day,
— a decade —
where you won’t
fit in with your body
even though you’re in
the only body you’re in.

You need to control
your habit of forgetting
to breathe.

Remember when you were younger
and you practiced kissing on your arm?
You were on to something then.
Sometimes harm knows its own healing.
Comfort its own intelligence.
Kindness too.
It needs no reason.

There is a you
telling you another story of you.
Listen to her.

Where do you feel
anxiety in your body?
The chest? The fist? The dream before waking?
The head that feels like it’s at the top of the swing
or the clutch of gut like falling
& falling & falling and falling
It knows something: you’re dying.
Try to stay alive.

For now, touch yourself.
I’m serious.

Touch your
self.
Take your hand
and place your hand
some place
upon your body.
And listen
to the community of madness
that
you are.
You are
such an
interesting conversation.

You belong
here.

Stevie Smith – Sozinha na floresta

Sozinha na floresta, senti
A amarga hostilidade do céu e das árvores
A Natureza ensinou suas criaturas a odiar o
Homem que ferve e fumega
Inquieto homem
Como a seiva sobe nas árvores
Como a seiva pinta as árvores de um verde violento
Assim cresce a ira das criaturas da Natureza
Contra o homem
Assim pinta-se a face da Natureza de um verde violento.
A Natureza está doente do homem
Doente de sua fervura e fumaça
Doente de suas agonias
Doente de sua mente extravagante
Que conduz seu corpo
Cada vez mais rapidamente
Mais e mais
Na direção errada.

Trad.: Nelson Santander

Alone in the woods

Alone in the woods I felt
The bitter hostility of the sky and the trees
Nature has taught her creatures to hate
Man that fusses and fumes
Unquiet man
As the sap rises in the trees
As the sap paints the trees a violent green
So rises the wrath of Nature’s creatures
At man
So paints the face of Nature a violent green.
Nature is sick at man
Sick at his fuss and fume
Sick at his agonies
Sick at his gaudy mind
That drives his body
Ever more quickly
More and more
In the wrong direction.