Helena Zelic – Bem-vinda

em uma casa desconhecida
é preciso observar os movimentos das coisas:

o gás se vem da rua ou botijão
as árduas relações entre tomadas e eletrodomésticos
botões de liga e desliga
a política da limpeza
se toda sujeira é política.
as cores das chaves, as trancas trocadas
encaixar, tirar e encaixar de novo
na busca do que é espontâneo.
entrar na casa como se sempre fosse.
sair como quem volta ao pôr do sol.

conhecer as gavetas, os tacos soltos
os insetos que invadem o verão
a hora da caminhonete de frutas
o dia do lixo para fora
a vizinha, e a outra, e a outra.
as vizinhas são sempre muitas.

compreender a linguagem do cão
quando pede, quando avisa,
quando, cão, espanta os gatos do telhado.
aí descobres que há gatos no telhado
e os barulhos deixam de assustar.

em uma casa desconhecida
tudo o que se move é sinal
conversa intermediada
entre objetos e combinados.
em uma casa desconhecida
é preciso chegar manso
e apoderar-se.

Eugénio de Andrade – Fim de tarde em S Lázaro

Estou sozinho. Nas estantes, restos
da minha vida. É quase
noite sobre os telhados.
No livro abandonado nas mãos
corre um rio: à deriva
duas ou três coisas que foram
minhas: um punhado de amoras,
a porosa delícia do barro,
essas nuvens, essas
aves num céu branco de trigo,
um sorriso
que também era um copo de água

Luis Alberto de Cuenca – Mal de ausência

Desde que partiste, não sabes como devagar
passa o tempo em Madrid. Vi um filme
que terminou apenas há um século.
Não sabes que lento corre o mundo sem ti, noiva distante.

Os amigos pedem-me que volte a ser o mesmo
que o coração apodrece de tanta melancolia,
que a tua ausência não vale tanta ansiedade inútil,
que pareço um exemplo de subliteratura.

Levaste, porém, a minha paz na tua bolsa,
os fios do telefone, a rua em que vivo.
Mandaste a minha casa tropas ecologistas
saquear-me a alma contaminada e triste.

E, para cúmulo, continuo a sonhar com gigantes
e contigo, despida, beijando-lhes as mãos.
Com deuses a cavalo que destroem a Europa
e cativa te guardam até que eu esteja morto.

Trad.: Manuel Rodrígues

Mal de ausencia

Desde que tú te fuiste, no sabes qué despacio
pasa el tiempo en Madrid. He visto una película
que ha terminado apenas hace un siglo. No sabes
qué lento corre el mundo sin ti, novia lejana.

Mis amigos me dicen que vuelva a ser el mismo,
que pudre el corazón tanta melancolía,
que tu ausencia no vale tanta ansiedad inútil,
que parezco un ejemplo de subliteratura.

Pero tú te has llevado mi paz en tu maleta,
los hilos del teléfono, la calle en la que vivo.
Tú has mandado a mi casa tropas ecologistas
a saquear mi alma contaminada y triste.

Y, para colmo, sigo soñando con gigantes
y contigo, desnuda, besándoles las manos.
Con dioses a caballo que destruyen Europa
y cautiva te guardan hasta que yo esté muerto.

Francisco Brines – Última declaração de amor

Oh Vida,
que tudo me deste.
Agora já sei que, sendo isto verdade,
nada me deste.
Mas deixa-me olhar-te ainda com amor,
mesmo que eu já não mais deseje abraçar-te.
E embora saibas que eu não te abandono
podes tu abandonar-me.

Trad.: Nelson Santander

Última declaración de amor

Oh Vida,
que todo me lo has dado.
Ahora ya sé que, siendo esto verdad,
nada me has dado.
Más déjame mirarte aún con amor,
aunque no tenga ya deseos de abrazarte.
Y aunque sepas que yo no te abandono
puedes tú abandonarme.

José Fernando Guedes – Os pássaros cantam forte

Alguém me chama: vem ouvir!
Os pássaros cantam forte na manhã
Com a mesma tenacidade
De um prego ao penetrar a madeira.
Sem hesitações anunciam
O que é de sua obrigação.

Ignoram o estabelecido pela noite prévia
E sistematicamente, com os métodos da água
Fazem seu canto fluir
Entre insuspeitas ranhuras
Na estrutura do mundo,
Tornando explícito o que era implícito
Na solidão das coisas.

E mesmo ante a mudez de dois olhos abertos,
Os pássaros põem seu canto
De encontro aos muros
E convicção, se entre pássaros há,
Se assemelha a que numa lágrima há,
Quando a lágrima que há,
É como um pássaro que canta.

Giuseppe Ungaretti – Sou uma criatura

Valloncello di Cima Quattro, 5 de agosto de 1916

Como esta pedra
de S. Michele
tão fria
tão dura
tão seca
tão indiferente
tão completamente
sem ânimo

Como esta pedra
é meu pranto
que não se vê

A morte
se expia
vivendo

Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti

Giuseppe Ungaretti – Sono una creatura

Valloncello di Cima Quattro il 5 agosto 1916

Come questa pietra
del S. Michele
così fredda
così dura
così prosciugata
così refrattaria
così totalmente
disanimata

Come questa pietra
è il mio pianto
che non si vede

La morte
si sconta
vivendo

Raymond Carver – Esta manhã

Esta manhã foi especial. Um pouco de neve
cobria o chão. O sol flutuava num claro
céu azul. O mar estava azul, e verde-azulado,
até onde o olho podia enxergar.
Calmo. Quase sem ondas. Eu me vesti
e saí para caminhar – decidido a não voltar
até receber o que a Natureza tivesse a oferecer.
Passei perto de algumas árvores velhas, curvadas.
Atravessei um campo com pedras espalhadas
onde a neve se acumulara. Segui em frente
até chegar ao penhasco.
De onde fitei o mar, o céu e
as gaivotas revoando sobre a areia branca,
lá embaixo. Tudo adorável. Tudo banhado numa pura
luz fria. Mas, como sempre, meus pensamentos
começaram a vagar. Tive de me esforçar
para ver só o que estava vendo,
e nada mais. Tive que dizer a mim mesmo que aquilo
era o que importava, não o resto. (E de fato consegui,
por um ou dois minutos!) Por um ou dois minutos
consegui afastar as velhas ruminações
sobre o que é certe e o que é errado – deveres,
doces memórias, ideias de morte, como lidar
com minha ex-mulher. Todas as coisas
que eu esperava esquecer esta manhã.
As coisa com que vivo todos os dias. Tudo
o que superei para poder continuar vivo.
Mas, por um ou dois minutos, eu realmente esqueci
de mim e de tudo o mais. Sei que esqueci.
Pois quando me virei já não sabia
onde estava. Até que alguns pássaros emergiram
das árvores retorcidas – e voaram
na direção em que eu precisava seguir.

Trad.: Cide Piquet

Raymond Carver – This morning

This morning was something. A little snow
lay on the ground. The sun floated in a clear
blue sky. The sea was blue, and blue-green,
as far as the eye could see.
Scarcely a ripple. Calm. I dressed and went
for a walk — determined not to return
until I took in what Nature had to offer.
I passed close to some old, bent-over trees.
Crossed a field strewn with rocks
where snow had drifted. Kept going
until I reached the bluff.
Where I gazed at the sea, and the sky, and
the gulls wheeling over the white beach
far below. All lovely. All bathed in a pure
cold light. But, as usual, my thoughts
began to wander. I had to will
myself to see what I was seeing
and nothing else. I had to tell myself this is what
mattered, not the other. (And I did see it,
for a minute or two!) For a minute or two
it crowded out the usual musings on
what was right, and what was wrong — duty,
tender memories, thoughts of death, how I should treat
with my former wife. All the things
I hoped would go away this morning.
The stuff I live with every day. What
I’ve trampled on in order to stay alive.
But for a minute or two I did forget
myself and everything else. I know I did.
For when I turned back i didn’t know
where I was. Until some birds rose up
from the gnarled trees. And flew
in the direction I needed to be going.

Paulo Henriques Britto – Da irresolução

Por não se estar preparado
perde-se a vida inteira.
A preparação, porém,
pra ser completa e certeira,

exigiria no mínimo
uma existência e meia.
Compreende-se, portanto,
aquele que titubeia

ao se ver face a face
com tamanho compromisso
e termina decidindo
viver mesmo de improviso.

Joan Margarit – Helena

O ontem é teu inferno. É cada instante
em que, sem sabê-lo, te perdeste
e também cada instante em que foste salvo.
Quando o jovem que foste está muito distante,
o amor é vingança do passado.
Vens de uma guerra em que foste vencido,
de armas e acampamentos abandonados
na Troia que levas em ti mesmo.
Buscar-te-ão de noite os aqueos
e estreitarão o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena são todos os sonhos de que a vida
foi-se apropriando. Defende-a bravamente
pela última vez, desarmado.

Trad.: Nelson Santander

Helena

El ayer es tu infierno. Es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y también cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
el amor es venganza del pasado.
Viene de una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos abandonados
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por una mujer, a perder la ciudad.
Helena es todos los sueños que la vida
se ha ido apropiando. Defiéndela con valor
por última vez, desarmado.

Manuel António Pina – Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.