Adília Lopes – A Propósito das Estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas 

Gary Snyder – Dezembro em Yase

Naquele Outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.

Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.

Agora se passaram os tais dez anos
e até mais um pouco: eu sempre soube
onde você estava –

Devia ter ido te ver
movido pela esperança de recuperar seu amor.
Você continua solteira.
Mas não fiz nada disso.

Só em sonhos, como esta madrugada,
a intensidade terrível
de nosso amor de garotos
me ocupa de novo a mente, a carne.

Tivemos aquilo que todos
se esforçam tanto para ter;
e abandonamos tudo para trás aos dezenove anos.

Me sinto com mil anos, como se tivesse
vivido muitas vidas.

E talvez nunca descubra
se sou um idiota
ou fiz o que exigia
o meu karma.

Yehuda Amichai – O Corpo é a Causa do Amor

Primeiro o corpo é a causa do amor
depois a fortaleza que o protege
por fim seu cárcere.
E quando o corpo morre, o amor jorra
caudalosamente
como de um caça-níqueis clandestino quebrado
jorram de súbito
com estrondo
todas as moedas de gerações
e gerações entregues à própria sorte.

William Shakespeare – Romeu e Julieta (excerto)

“Esses prazeres violentos têm fins violentos e morrem em seu triunfo, como o fogo e a pólvora, que, ao se beijarem, se consomem. O mais doce mel repugna por sua própria doçura, e seu sabor confunde o paladar. Portanto, ama com moderação. O amor duradouro é moderado. Quem corre demais chega tão atrasado como aquele que anda muito devagar.”

William Shakespeare, in “Romeu e Julieta”

Nicanor Parra – O que ganha um velho ao fazer ginástica?

e o que ganha falando ao telefone?
e o que ganha ficando famoso?
e o que ganha um velho olhando-se no espelho?

Nada
afundar cada vez mais na lama

Já são três ou quatro da madrugada
– por que não trata de dormir?
mas não – tome ginástica
tome ligações de longa distância
tome Bach
Beethoven
Tchaikovsky
tome olhadas no espelho
tome obsessão de seguir respirando

lamentável – melhor seria apagar a luz

Velho ridículo lhe diz sua mãe
você é igualzinho ao seu pai
ele também não queria morrer
Deus lhe dê vida para andar de carro
Deus lhe dê vida para falar ao telefone
Deus lhe dê vida para respirar
Deus lhe dê vida para enterrar sua mãe

Fica aí dormindo velho ridículo!
mas o ancião não está dormindo
não confunda chorar com dormir

Wislawa Szymborska -Retornos

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe – mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enrodilhado.

Jorge Luis Borges – Os Justos

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o mundo.

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Antero de Quental – Nox

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos…

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia…
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos…

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

QUENTAL, Antero de. “Nox”. In: VIEGAS, Francisco José (org.). Cem poemas para salvar a nossa vida. Lisboa: Quetzal, 2014.

John Keats – Ode sobre a Indolência

I

Numa certa manhã eu vi as três as figuras,
   Curvadas, de perfil, mãos juntas, uma a uma,
Seguindo atrás da outra, mudas e seguras,
   Sandálias suaves, vestes alvas, pés de pluma;
Como formas de mármore em alto-relevo
  Sobre uma urna, foram-se, ao girar a face
   Do vaso; mas voltando ao ângulo anterior,
Mostraram-se mais uma vez como as descrevo,
 E eram-me tão estranhas como se as achasse
   Numa ânfora de Fídias um pesquisador.

II

Como é possível, Sombras, que eu não as conheça,
  Máscaras mudas que se movem para mim?
Que plano silencioso tinham na cabeça
  Para a minha indolência arrebatar assim?
Era a hora madura e eu já me comprazia
  Na abençoada nuvem de ócio do verão.
   Pesado o olhar, a pulsação quase parada,
Os prazeres sem cor e a vida já vazia.
  Ah! por que não desaparecem e se vão,
   E me deixam em paz, sozinho, com meu – nada?

III

Uma terceira vez romperam minha paz as
  Figuras mudas; cada qual por um momento
Me olhou de frente, e eu só queria era ter asas
  Para segui-las e saber do seu intento;
A primeira, uma bela moça, era o Amor;
  A segunda, de rosto pálido e sem viço
   E olhos cansados, a Ambição que a tudo via.
A última, a que eu mais amo, e a quem o desfavor
  Persegue, era uma jovem com ar insubmisso;
   Essa era o meu demônio – a Poesia.

IV

Foram-se as três e eu só queria asas ainda;
  Loucura! O que é o Amor? Quem sabe onde ele mora?
Quanto à Ambição! – é desprezível, porque vinda
  De um coração pequeno, a febre de uma hora;
À Poesia! – não doa uma só alegria, –
  Ao menos para mim, – de dia imersa em suas
   Cismas; à noite, no ópio do seu tédio imenso;
Pudesse eu ter uma era livre de agonia,
  Sem conhecer jamais a mutação das luas
   Nem ouvir nunca a voz penosa do bom-senso!

V

E uma vez mais vieram; – ah! por que razão?
  Meu sono se adornava de secretos sonhos,
Minha alma era uma relva, flores pelo chão,
  Com sombras sugestivas e raios risonhos;
A névoa da manhã não me trazia chuva;
  Nas pálpebras de maio, só lágrimas prestes;
   Calor, botões em flor, um tordo ia cantar,
E da janela aberta eu via a vide e a uva;
  Sombras, a hora do adeus chegou; em suas vestes
   Nenhuma lágrima desceu do meu olhar.

VI

Adeus, meus três fantasmas! Não há quem me faça
  Erguer esta cabeça da relva e das flores.
Não quero ser a ovelha-guia de uma farsa,
  Nem seguirei uma dieta de louvores.
Voltem a ser figuras-máscaras de urna.
  Adeus! deixem morrer de tedio a minha mente.
   Visões? Já tenho a minha provisão noturna,
E outras, mais tênues, para as horas matinais.
  Retirem-se, de vez, do meu ser indolente,
   Para as nuvens dos céus, e não voltem jamais.

Trad.: Augusto de Campos

 

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Ode on Indolence

I

One morn before me were three figures seen,
With bowèd necks, and joinèd hands, side-faced;
And one behind the other stepp’d serene,
In placid sandals, and in white robes graced;
They pass’d, like figures on a marble urn,
When shifted round to see the other side;
They came again; as when the urn once more
Is shifted round, the first seen shades return;
And they were strange to me, as may betide
With vases, to one deep in Phidian lore.

II

How is it, Shadows! that I knew ye not?
How came ye muffled in so hush a mask?
Was it a silent deep-disguisèd plot
To steal away, and leave without a task
My idle days? Ripe was the drowsy hour;
The blissful cloud of summer-indolence
Benumb’d my eyes; my pulse grew less and less;
Pain had no sting, and pleasure’s wreath no flower:
O, why did ye not melt, and leave my sense
Unhaunted quite of all but—nothingness?

III

A third time pass’d they by, and, passing, turn’d
Each one the face a moment whiles to me;
Then faded, and to follow them I burn’d
And ached for wings, because I knew the three;
The first was a fair Maid, and Love her name;
The second was Ambition, pale of cheek,
And ever watchful with fatiguèd eye;
The last, whom I love more, the more of blame
Is heap’d upon her, maiden most unmeek,—
I knew to be my demon Poesy.

IV

They faded, and, forsooth! I wanted wings:
O folly! What is Love? and where is it?
And for that poor Ambition! it springs
From a man’s little heart’s short fever-fit;
For Poesy!—no,—she has not a joy,—
At least for me,—so sweet as drowsy noons,
And evenings steep’d in honey’d indolence;
O, for an age so shelter’d from annoy,
That I may never know how change the moons,
Or hear the voice of busy common-sense!

V

And once more came they by:—alas! wherefore?
My sleep had been embroider’d with dim dreams;
My soul had been a lawn besprinkled o’er
With flowers, and stirring shades, and baffled beams:
The morn was clouded, but no shower fell,
Tho’ in her lids hung the sweet tears of May;
The open casement press’d a new-leaved vine,
Let in the budding warmth and throstle’s lay;
O Shadows! ’twas a time to bid farewell!
Upon your skirts had fallen no tears of mine.

VI

So, ye three Ghosts, adieu! Ye cannot raise
My head cool-bedded in the flowery grass;
For I would not be dieted with praise,
A pet-lamb in a sentimental farce!
Fade softly from my eyes, and be once more
In masque-like figures on the dreamy urn;
Farewell! I yet have visions for the night,
And for the day faint visions there is store;
Vanish, ye Phantoms! from my idle spright,
Into the clouds, and never more return!

John Keats – Do Endymion

O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.

From Endymion

A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o’er-darkened ways::
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven’s brink.

Byron e Keats: entreversos; traduções de Augusto de Campos – Campinas, SP; Editora da Unicamp, 2009. p. 168-169.