Deixa eu te contar uma coisa, disse a senhora.
Estávamos sentadas, uma diante da outra,
no parque de cidade conhecida por seus brinquedos de madeira.
Na época, eu tinha fugido de um triste caso amoroso
e, por penitência ou autocastigo, fui trabalhar
numa fábrica, onde esculpia à mão minúsculos pés e mãos.
O parque era meu consolo, sobretudo nas horas calmas
depois do pôr do sol, quando costumava ficar às moscas.
Mas, naquele fim de tarde, ao entrar no Jardim da Condessa, que era como
se chamava o parque, vi que alguém já estava lá. Me aflige tanto pensar
que eu podia ter ido embora, mas estava
decidida a entrar; o dia todo pensando nas cerejeiras que ladeavam o caminho e cuja floração tinha sido pouco tempo antes.
Sentamos em silêncio. A noite caía
e a sensação era de clausura,
como numa cabine de trem.
Quando eu era jovem, ela disse, gostava de andar pelos parques ao anoitecer
e quando a alameda do parque era longa, dava tempo de ver a lua nascer.
Foi meu grande prazer na vida: nem sexo, nem comida, nem distrações mundanas.
Preferia ver a lua nascendo e de vez em quando ouvia,
na mesma hora, as notas sublimes do final de
A As bodas de Fígaro. De onde vinha aquela música?
Nunca descobri
Como as alamedas dos parques costumam ter o formato
circular, todas as noites, depois das minhas andanças,
eu acabava diante da porta da minha própria casa e ficava ali encarando-a,
sem conseguir ver direito, no escuro, o brilho da maçaneta.
Foi uma grande revelação para mim, ela disse, apesar de ser a minha própria vida.
Mas havia noites, ela disse, em que quase não se via a lua por entre as nuvens
e a música não tocava. Uma noite frustrante.
Porém, lá ia eu na noite seguinte e tudo corria bem.
Eu não sabia o que dizer a ela. A história, ainda mais desconexa por escrito
era interrompida por pausas, como devaneios,
e intervalos muito prolongados, até que nessa hora a noite chegou.
Ah noite que abarca todas as coisas, noite
ávida por percepções estranhas. Minha sensação era de estar a ponto
de ouvir um segredo importante, como a tocha que vai passando de mão em mão numa corrida de revezamento.
Minhas desculpas sinceras, disse ela,
confundi você com uma amiga.
E fez um gesto na direção das estátuas ao redor,
homens heroicos, mulheres se sacrificando como santas
apertando contra o peito seus bebês de granito.
As estátuas, ela disse, não são instáveis como os seres humanos.
Deles eu desisti, falou,
mas nunca deixei de gostar das viagens em círculo.
Talvez eu esteja enganada, não é mesmo?
Sobre as nossas cabeças, as flores das cerejeiras começaram
a se soltar no céu da noite, ou quem sabe eram estrelas flutuando,
flutuando e caindo, e no lugar onde pousavam
novos mundos iam se formando.
Depois disso, voltei para a minha cidade natal
e reatei com meu antigo amor.
Mas a cada dia pensava mais e mais nesse episódio,
tentando analisá-lo de todos os ângulos, e a cada ano ficava mais claro
que, mesmo sem evidências, ele continha uma espécie de segredo.
Concluí por fim que qualquer que fosse a mensagem
o conteúdo dela não estava nas palavras – era como minha mãe falando comigo
com seus silêncios bem afiados, que me advertiam e castigavam –
e me pareceu que eu tinha voltado não só ao meu antigo amor,
mas que agora voltava ao Jardim da Condessa,
com as cerejeiras que ainda estariam em flor,
tal como um peregrino que busca expiação e perdão,
assim, entendi que deve haver, em algum lugar,
uma porta com um brilho na maçaneta,
mas quando ela vai aparecer e onde, não faço a menor ideia.
Trad.: Marília Garcia
A Sharply Worded Silence
Let me tell you something, said the old woman.
We were sitting, facing each other,
in the park at ___, a city famous for its wooden toys.
At the time, I had run away from a sad love affair,
and as a kind of penance or self punishment, I was working
at a factory, carving by hand the tiny hands and feet.
The park was my consolation, particularly in the quiet hours
after sunset, when it was often abandoned,
But on this evening, when I entered what was called the Contessa’s Garden,
I saw that someone had preceded me. It strikes me now
I could have gone ahead, but I had been
set on this destination; all day I had been thinking of the cherry trees
with which the glade was planted, whose time of blossoming had nearly ended.
We sat in silence. Dusk was falling,
and with it came a feeling of enclosure
as in a train cabin.
When I was young, she said, I liked walking the garden path at twilight
and if the path was long enough I would see the moon rise.
That was for me the great pleasure: not sex, not food, not worldly amusement.
I preferred the moon’s rising, and sometimes I would hear,
at the same moment, the sublime notes of the final ensemble
of The Marriage of Figaro. Where did the music come from?
I never knew.
Because it is the nature of garden paths
to be circular, each night, after my wanderings,
I would find myself at my front door, staring at it,
barely able to make out, in darkness, the glittering knob.
It was, she said, a great discovery, albeit my real life.
But certain nights, she said, the moon was barely visible through the clouds
and the music never started. A night of pure discouragement.
And still the next night I would begin again, and often all would be well.
I could think of nothing to say. This story, so pointless as I write it out,
was in fact interrupted at every stage with trance-like pauses
and prolonged intermissions, so that by this time night had started.
Ah the capacious night, the night
so eager to accommodate strange perceptions. I felt that some important secret
was about to be entrusted to me, as a torch is passed
from one hand to another in a relay.
My sincere apologies, she said.
I had mistaken you for one of my friends.
And she gestured toward the statues we sat among,
heroic men, self-sacrificing saintly women
holding granite babies to their breasts.
Not changeable, she said, like human beings.
I gave up on them, she said.
But I never lost my taste for circular voyages.
Correct me if I’m wrong.
Above our heads, the cherry blossoms had begun
to loosen in the night sky, or maybe the stars were drifting,
drifting and falling apart, and where they landed
new worlds would form.
Soon afterward I returned to my native city
and was reunited with my former lover.
And yet increasingly my mind returned to this incident,
studying it from all perspectives, each year more intensely convinced,
despite the absence of evidence, that it contained some secret.
I concluded finally that whatever message there might have been
was not contained in speech—so, I realized, my mother used to speak to me,
her sharply worded silences cautioning me and chastizing me—
and it seemed to me I had not only returned to my lover
but was now returning to the Contessa’s Garden
in which the cherry trees were still blooming
like a pilgrim seeking expiation and forgiveness,
so I assumed there would be, at some point,
a door with a glittering knob,
but when this would happen and where I had no idea.