Vitor Nogueira – Sementes

É claro que me lembro. Havia dois atalhos
pelo meio do pinhal, direcções espantosamente
precisas, animais que não voltei a ver.

Enquanto as colheitas amadureciam nos campos,
havia talismãs pendurados nas árvores e mercúrio
para tratar certas lesões, uma peça vital
do equipamento. Havia girassóis à volta da casa
e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma
de evitar que endoidecêssemos. E havia um muro
que era preciso saltar, a manhã gloriosa
da escalada, a ciência das grandes migrações.

Mas não vale a pena entrar em mais detalhes.
Este é o meu corpo. Esta é a minha mente.
Conhecem-se desde a infância e cumpriram pena juntos.

Do futuro nada sei. Apenas que vem aí.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 08/05/2018

Brad Aaron Modlin – O que você perdeu no dia em que não foi à aula

A Sra. Nelson explicou como ficar imóvel e ouvir
o vento, como encontrar sentido em encher o tanque,

como descascar batatas pode ser uma forma de oração. Ela respondeu
a perguntas sobre como não se sentir perdido no escuro.

Depois do recreio, ela distribuiu folhas de exercícios
que abordavam maneiras de como lembrar as vozes de nossos

avôs. Em seguida, a turma discutiu sobre adormecer
sem sentir que você esqueceu de fazer mais alguma coisa —

algo importante — e como se convencer de que
a casa em que você despertou é seu lar. Isso levou

a Sra. Nelson a desenhar um diagrama na lousa, explicando
como entoar os Salmos durante os intervalos para fumar,

e como não se contorcer por um som quando seus próprios pensamentos
são tudo o que você ouve; e também que você se basta.

Na aula de gramática aprendemos que eu sou
é uma sentença completa.

E pouco antes do sinal da tarde, ela fez a equação matemática
parecer fácil. O que prova que centenas de perguntas,

e sentir frio, e todas aquelas noites procurando
o que quer que você tenha perdido, e uma pessoa

resultam em algo.

Trad.: Nelson Santander

What You Missed That Day You Were Absent From Fourth Grade

Mrs. Nelson explained how to stand still and listen
to the wind, how to find meaning in pumping gas,

how peeling potatoes can be a form of prayer. She took
questions on how not to feel lost in the dark.

After lunch she distributed worksheets
that covered ways to remember your grandfather’s

voice. Then the class discussed falling asleep
without feeling you had forgotten to do something else—

something important—and how to believe
the house you wake in is your home. This prompted

Mrs. Nelson to draw a chalkboard diagram detailing
how to chant the Psalms during cigarette breaks,

and how not to squirm for sound when your own thoughts
are all you hear; also, that you have enough.

The English lesson was that I am
is a complete sentence.

And just before the afternoon bell, she made the math equation
look easy. The one that proves that hundreds of questions,

and feeling cold, and all those nights spent looking
for whatever it was you lost, and one person

add up to something.

Ana Martins Marques – de “Três Postais”

São Paulo

Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal

Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 06/05/2018

Wendy Cope – Em um trem

O livro que estou lendo
repousa em meu joelho. Você dorme.

Lá fora é tão bonito —
campos, pequenos lagos e árvores de inverno
sob o sol de fevereiro,
cada estacionamento um brilhante mosaico.

Longos e radiantes minutos,
sua mão na minha mão,
ainda quente, ainda quente.

Trad.: Nelson Santander

On a Train

The book I’ve been reading
rests on my knee. You sleep.

It’s beautiful out there-
fields, little lakes and winter trees
in February sunlight,
every car park a shining mosaic.

Long radiant minutes,
your hand in my hand,
still warm, still warm.

José Alcaraz – Volta para Casa

Atravessa as ruas
absorto nos ecos das pessoas,
distante até de seus pensamentos.
Não chove, não abre o seu guarda-chuva,
no entanto, como sempre, molham-se
não só seus sapatos
como a vida também, porque às vezes
esquece que o mundo o reclama.
Caminha como quem não sabe para onde,
em cada passo crê estar sozinho,
mais distante das outras pessoas,
por isso demora a encontrar as palavras,
e quando as pronuncia já não há ninguém
esperando. Depois,
novamente, o caminho de volta,
as ruas, a tristeza. E nada mais,
além de sua casa, e ele,
diante de um espelho,
olhando-me nos olhos.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 04/05/2018

Vuelta a Casa

Atraviesa las calles
ensimismado en ecos de la gente,
distante incluso de sus pensamientos.
No llueve, no despliega su paraguas,
pero a él, como siempre, se le mojan
no solo los zapatos
sino también la vida porque a veces
no recuerda que el mundo lo reclama.
Camina como quien no sabe adónde,
a cada paso cree que está solo
y más lejos del resto de personas,
así que llega tarde a sus palabras
y cuando las pronuncia ya no hay nadie
esperando. Después
nuevamente el camino de regreso,
las calles, la tristeza. Y nada más,
salvo su casa, y él,
delante de un espejo,
mirándome a los ojos.

Ferreira Gullar – Poema

Se morro
o universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                se apago a lâmpada:
os sapatos–da–ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó–
dos–andes,
               bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
               morrem comigo.

Ou não:
               o sol voltará a marcar
               este mesmo ponto do assoalho
               onde esteve meu pé;
                                         deste quarto
               ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
                       uma nova cidade
                       surgirá de dentro desta
                       como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Manuel António Pina – Interiores

Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que nós não conhecemos?

Será que alguma coisa permaneceu
do nosso amor como uma inevitabilidade,
uma saudade pousada agora na mão de Deus
existindo para sempre na sua breve eternidade?

Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos reconheceremos?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/05/2018

Finn Butler – Marinho

Todos os que o amedrontam são sessenta e cinco por cento água.
E todos os que você ama são feitos de poeira estelar, e eu sei que
às vezes
você nem consegue respirar profundamente,
o céu noturno não é seu lar e
você já chorou sozinho até dormir tantas vezes
que chegou aos seus últimos dois por cento, mas

nada é infinito,
nem mesmo a perda.

Você é feito do mar e das estrelas, e um dia
vai se encontrar novamente.

Trad.: Nelson Santander

Saltwater

Everyone who terrifies you is sixty-five percent water.
And everyone you love is made of stardust, and I know
sometimes
you cannot even breathe deeply, and
the night sky no home, and
you have cried yourself to sleep enough times
that you are down to your last two percent, but

nothing is infinite,
not even loss.

You are made of the sea and the stars, and one day
you are going to find yourself again.

Jorge Luis Borges – As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/04/2018

Jorge Luis Borges – Las Causas

Los ponientes y las generaciones.
Los días y ninguno fue el primero.
La frescura del agua en la garganta
de Adán. El ordenado Paraíso.
El ojo descifrando la tiniebla.
El amor de los lobos en el alba.
La palabra. El hexámetro. El espejo.
La Torre de Babel y la soberbia.
La luna que miraban los caldeos.
Las arenas innúmeras del Ganges.
Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña.
Las manzanas de oro de las islas.
Los pasos del errante laberinto.
El infinito lienzo de Penélope.
El tiempo circular de los estoicos.
La moneda en la boca del que ha muerto.
El peso de la espada en la balanza.
Cada gota de agua en la clepsidra.
Las águilas, los fastos, las legiones.
César en la mañana de Farsalia.
La sombra de las cruces en la tierra.
El ajedrez y el álgebra del persa.
Los rastros de las largas migraciones.
La conquista de reinos por la espada.
La brújula incesante. El mar abierto.
El eco del reloj en la memoria.
El rey ajusticiado por el hacha.
El polvo incalculable que fue ejércitos.
La voz del ruiseñor en Dinamarca.
La escrupulosa línea del calígrafo.
El rostro del suicida en el espejo.
El naipe del tahúr. El oro ávido.
Las formas de la nube en el desierto.
Cada arabesco del calidoscopio.
Cada remordimiento y cada lágrima.
Se precisaron todas esas cosas
para que nuestras manos se encontraran.

Maya C. Popa – Vida querida

Não posso desfazer tudo o que fiz a mim mesma,
o que permiti que um apetite por amor me fizesse.

Eu quis o mundo todo, suas maravilhas
e suas mazelas; alguns dias
acho que já houve castigo suficiente.

Com frequência, recebi mais do que pedi,

que é como isso funciona — você pesca em mar aberto
pronta para ser ferida pelo que fisgar.

Joga-lo de volta era um pesadelo.
Joga-lo de volta e ver minha própria face

enquanto ela desaparecia na água escura.

Fisgar de repente minha língua no metal,
cuspindo o anzol na palma da minha mão aberta.

Vida querida: hoje sinto esse anzol mais profundamente.

Você afrouxaria a linha? — você me ouvirá

caso eu lhe pergunte

se você é do tipo de vida que eu acho que é?

Trad.: Nelson Santander

Dear Life

I can’t undo all I have done unto myself,
what I have let an appetite for love do to me.

I have wanted all the world, its beauties
and its injuries; some days,
I think that is punishment enough.

Often, I received more than I’d asked,

which is how this works—you fish in open water
ready to be wounded on what you reel in.

Throwing it back was a nightmare.
Throwing it back and seeing my own face

as it disappeared into the dark water.

Catching my tongue suddenly on metal,
spitting the hook into my open palm.

Dear life: I feel that hook today most keenly.

Would you loosen the line—you’ll listen

if   I ask you,

if   you are the sort of  life I think you are.