Warsan Shire – Feia

“Ugly”, by Anna Ginsburg

Feia

Sua filha é feia.
Ela conhece a perda de perto,
leva cidades inteiras em seu ventre.

Quando criança, parentes não a seguravam.
Ela era madeira estilhaçada e água do mar.
Diziam que ela lhes lembrava a guerra.

No seu décimo quinto aniversário, você a ensinou
a trançar o cabelo como corda
e perfumá-lo com incenso.

Você a fez gargarejar com água de rosas
e, enquanto ela engasgava, você dizia:
garotas macaanto como você não deveriam cheirar
a solidão ou vazio.

Você é a mãe dela.
Por que não a avisou,
não a amparou como um barco em ruínas
e não lhe disse que os homens não a amarão
se ela estiver coberta de continentes,
se seus dentes forem pequenas colônias,
se seu estômago for uma ilha,
se suas coxas forem fronteiras?

Que homem quer se deitar
e ver o mundo arder
em seu quarto? 

O rosto de sua filha é uma pequena rebelião,
suas mãos, uma guerra civil,
há um campo de refugiados atrás de cada orelha,
um corpo repleto de coisas feias,

mas Deus, 
o mundo não
lhe cai bem?

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ugly

Your daughter is ugly.
She knows loss intimately,
carries whole cities in her belly.
 
As a child, relatives wouldn’t hold her.
She was splintered wood and sea water.
They said she reminded them of the war.
  
On her fifteenth birthday you taught her
how to tie her hair like rope 
and smoke it over burning frankincense.
 
You made her gargle rosewater
and while she coughed, said
macaanto girls like you shouldn’t smell
of lonely or empty.
 
You are her mother.
Why did you not warn her,
hold her like a rotting boat
and tell her that men will not love her
if she is covered in continents,
if her teeth are small colonies,
if her stomach is an island
if her thighs are borders?
 
What man wants to lay down 
and watch the world burn 
in his bedroom? 
 
Your daughter’s face is a small riot,
her hands are a civil war,
a refugee camp behind each ear,
a body littered with ugly things
 
but God, 
doesn’t she wear
the world well.

Warsan Shire – para mulheres que são ‘difíceis’ de amar

Você é um corcel correndo sozinha
e ele tenta doma-la
compara você a uma autoestrada impossível
para uma casa em chamas
diz que você o está cegando
que ele nunca poderia deixar você
esquecer que você
não quer nada além de você
que você o atordoa, você é insustentável
que toda mulher antes ou depois de você
está embebida no seu nome
que você enche a boca dele
que os dentes dele doem com a memória do sabor
do seu corpo apenas uma grande sombra buscando a sua
mas que você é sempre muito intensa
assustadora no jeito que você o deseja
sem-vergonha e sacrificial
ele lhe diz que nenhum homem pode viver à altura daquele
que habita a sua cabeça
e você tentou mudar, não foi?
fechou mais a boca
tentou ser mais suave
mais bonita
menos volátil, menos desperta
mas mesmo enquanto dormia você podia senti-lo
se afastando de você em seus sonhos
então o que você queria fazer amor
abrir a cabeça dele?
você não pode fazer dos seres humanos um lar
alguém já deveria ter-lhe dito isso
e se ele quer ir embora
então deixe-o ir
você é assustadora
e estranha e bela
algo que nem todos sabem como amar.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: quem me apresentou esse belo poema foi minha filha, Ariadne, que “encomendou” também a sua tradução. Como eu não sou louco de dizer não para a mulher mais assustadora e estranha e bela de minha vida, eis o resultado. É seu, filha.

for women who are ‘difficult’ to love

You are a horse running alone
and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn’t you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do love
split his head open?
you can’t make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.

Warsan Shire – Casa

ninguém sai de casa a não ser que
a casa seja a boca de um tubarão
você só corre para a fronteira
quando vê a cidade inteira correndo também

seus vizinhos correm mais rápidos do que você
respiram o sangue em suas gargantas
o menino com quem você ia para a escola e
que a beijou atordoada atrás da velha fábrica de estanho
segura uma arma maior do que o próprio corpo
você só sai de casa
quando a casa não deixa você ficar.

ninguém sai de casa a não ser que a casa a persiga
fogo sob os seus pés
sangue quente em sua barriga
não é algo que você tenha planejado fazer
até a lâmina queimar ameaças em
seu pescoço
e mesmo assim você carregou o hino
silenciosamente
apenas rasgando seu passaporte em um banheiro de aeroporto
soluçando enquanto cada pedacinho de papel
deixava claro que você não iria voltar.

você tem que entender
que ninguém coloca seus filhos em um barco
a menos que a água seja mais segura do que a terra
ninguém queima as palmas das mãos
sob trens
debaixo de vagões
ninguém passa dias e noites no estômago de um caminhão
se alimentando de jornais a menos que as milhas percorridas
signifiquem algo mais do que a jornada
ninguém rasteja sob cercas
ninguém quer ser espancado
lamentado

ninguém escolhe campos de refugiados
ou revistas íntimas em que seu
corpo fica todo dolorido
ou a prisão,
porque a prisão é mais segura
do que uma cidade de fogo
e um carcereiro
na noite
é melhor do que um caminhão
de homens que se parecem com seu pai
ninguém poderia aguentar
ninguém teria estômago pra isso
nenhuma pele seria resistente o suficiente

vão
para casa negros
refugiados
imigrantes imundos
suplicantes de asilo
sugando nosso país até seca-lo
pretos com as mãos estendidas
eles cheiram estranho
selvagens
bagunçaram seu país e agora querem
bagunçar o nosso
como fazem as palavras
os olhares de reprovação
escorrem pelas suas costas
talvez porque o golpe seja mais suave
do que um membro arrancado

ou as palavras sejam mais ternas
do que quatorze homens entre
suas pernas
ou os insultos sejam mais fáceis
de engolir
do que cascalho
do que osso
do que o corpo do seu filho
em pedaços.
eu quero ir para casa,
mas a casa é a boca de um tubarão
a casa é o cano da arma
e ninguém deixaria sua casa
a menos que a casa persiga você até a costa
a menos que a casa mande você
acelerar seus passos
deixar suas roupas para trás
rastejar através do deserto
vagar pelos oceanos
afogar-se
salvar-se
passar fome
implorar
esquecer o orgulho
sua sobrevivência é mais importante

ninguém sai de casa até que a casa seja uma voz suada em seu ouvido
dizendo –
vá embora,
fuja de mim agora
eu não sei o que me tornei
mas sei que qualquer lugar
é mais seguro do que aqui

Trad.: Nelson Santander

Home

no one leaves home unless
home is the mouth of a shark
you only run for the border
when you see the whole city running as well

your neighbors running faster than you
breath bloody in their throats
the boy you went to school with
who kissed you dizzy behind the old tin factory
is holding a gun bigger than his body
you only leave home
when home won’t let you stay

no one leaves home unless home chases you
fire under feet
hot blood in your belly
it’s not something you ever thought of doing
until the blade burnt threats into
your neck
and even then you carried the anthem under
your breath
only tearing up your passport in an airport toilets
sobbing as each mouthful of paper
made it clear that you wouldn’t be going back

you have to understand,
that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land
no one burns their palms
under trains
beneath carriages
no one spends days and nights in the stomach of a truck
feeding on newspaper unless the miles travelled
means something more than journey.
no one crawls under fences
no one wants to be beaten
pitied

no one chooses refugee camps
or strip searches where your
body is left aching
or prison,
because prison is safer
than a city of fire
and one prison guard
in the night
is better than a truckload
of men who look like your father
no one could take it
no one could stomach it
no one skin would be tough enough

the
go home blacks
refugees
dirty immigrants
asylum seekers
sucking our country dry
niggers with their hands out
they smell strange
savage
messed up their country and now they want
to mess ours up
how do the words
the dirty looks
roll off your backs
maybe because the blow is softer
than a limb torn off

or the words are more tender
than fourteen men between
your legs
or the insults are easier
to swallow
than rubble
than bone
than your child body
in pieces.
i want to go home,
but home is the mouth of a shark
home is the barrel of the gun
and no one would leave home
unless home chased you to the shore
unless home told you
to quicken your legs
leave your clothes behind
crawl through the desert
wade through the oceans
drown
save
be hunger
beg
forget pride
your survival is more important

no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear
saying-
leave,
run away from me now
i dont know what i’ve become
but i know that anywhere
is safer than here