Ian Hamilton – Admissão

Os lábios rachados do porteiro noturno uniformizado
Murmuram horrivelmente contra o vidro embaçado
De nossa ambulância escura.
Nossa aflição
Inspira um único olhar marcial de desdém
E logo ele nos indica o caminho, para a “Pátria”.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/04/2019

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Admission

The chapped lips of the uniformed night-porter
Mumble horribly against the misted glass
Of our black ambulance.
Our plight
Inspires a single, soldierly, contemptuous stare
And then he waves us on, to Blighty.

Vicente Gaos – Esquecei

Esquece, homem…

Esquece que és cinzas
e em cinzas te tornarás.

Esquece esta quarta-feira
e o in pulvis reverteris.

Pois embora sejas cinza e pó,
há vida, amor, beleza ao redor.

É verdade: beleza, amor, vida,
fugazes flores de um dia.

Mas flores, sim. Enquanto durar
a magia verdadeira de seu perfume,

esquece o pó e a morte.
É melhor não lembrar

do que, com ou sem memória,
baterá algum dia à tua porta.

Por ora, fecha-a. Abre a varanda,
que te penetre e embriague o sol.

Olha-o bem: fecha as pálpebras,
e que o sol te salve do caos.

No final, verás que tanto faz
viver e morrer, seja domingo

ou quarta-feira. Quando chegar
fria e borralheira a morte,

acolhe-a satisfeito, tranquilo,
com a certeza de haver vivido.

Com a lembrança de uma vida
que ignorou a profecia

funeral, que não se perdeu
em medo e dúvida de Deus.

Quando sentires o gosto amargo
da cinza na boca, sorve-o,

apura-o. Quando a morte chegar,
abre a porta e deita-te, dorme.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/04/2019

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Olvidaos

Olvida, hombre…

Olvida que eres ceniza
y has de convertirte en ceniza.

Olvídate de ese miércoles
y del in pulvis reverteris.

Pues aunque seas ceniza y polvo,
hay vida, amor, belleza en torno.

Es verdad: belleza, amor, vida,
fugitivas flores de un día.

Pero flores, sí. Mientras dure
la magia cierta de su perfume,

olvidate del polvo y la muerte.
Más vale que no recuerdes

lo que con memoria o sin ella
llamará algún día a tu puerta.

Ahora ciérrala. Abre el balcón
que te penetre y embriague el sol.

Míralo bien: cierra los párpados,
y que el sol te salve del caos.

Al final verás que es lo mismo
vivir y morir, el domingo

que el miércoles. Cuando llegue
cenicienta y fría la muerte,

acógela conforme, tranquilo,
seguro de haber vivido.

Con la memoria de una vida
que desoyó la profecía

funeral, que no se perdió
en el miedo y duda de Dios.

Cuando sientas el gusto amargo
de la ceniza en la boca, trágalo,

apúralo. Al llegar la muerte,
abre la puerta y tiéndete, duérmete.

Helena Zelic – Bem-vinda

em uma casa desconhecida
é preciso observar os movimentos das coisas:

o gás se vem da rua ou botijão
as árduas relações entre tomadas e eletrodomésticos
botões de liga e desliga
a política da limpeza
se toda sujeira é política.
as cores das chaves, as trancas trocadas
encaixar, tirar e encaixar de novo
na busca do que é espontâneo.
entrar na casa como se sempre fosse.
sair como quem volta ao pôr do sol.

conhecer as gavetas, os tacos soltos
os insetos que invadem o verão
a hora da caminhonete de frutas
o dia do lixo para fora
a vizinha, e a outra, e a outra.
as vizinhas são sempre muitas.

compreender a linguagem do cão
quando pede, quando avisa,
quando, cão, espanta os gatos do telhado.
aí descobres que há gatos no telhado
e os barulhos deixam de assustar.

em uma casa desconhecida
tudo o que se move é sinal
conversa intermediada
entre objetos e combinados.
em uma casa desconhecida
é preciso chegar manso
e apoderar-se.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 31/03/2019

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Raymond Carver – Esta manhã

Esta manhã foi especial. Um pouco de neve
cobria o chão. O sol flutuava num claro
céu azul. O mar estava azul, e verde-azulado,
até onde o olho podia enxergar.
Calmo. Quase sem ondas. Eu me vesti
e saí para caminhar – decidido a não voltar
até receber o que a Natureza tivesse a oferecer.
Passei perto de algumas árvores velhas, curvadas.
Atravessei um campo com pedras espalhadas
onde a neve se acumulara. Segui em frente
até chegar ao penhasco.
De onde fitei o mar, o céu e
as gaivotas revoando sobre a areia branca,
lá embaixo. Tudo adorável. Tudo banhado numa pura
luz fria. Mas, como sempre, meus pensamentos
começaram a vagar. Tive de me esforçar
para ver só o que estava vendo,
e nada mais. Tive que dizer a mim mesmo que aquilo
era o que importava, não o resto. (E de fato consegui,
por um ou dois minutos!) Por um ou dois minutos
consegui afastar as velhas ruminações
sobre o que é certe e o que é errado – deveres,
doces memórias, ideias de morte, como lidar
com minha ex-mulher. Todas as coisas
que eu esperava esquecer esta manhã.
As coisa com que vivo todos os dias. Tudo
o que superei para poder continuar vivo.
Mas, por um ou dois minutos, eu realmente esqueci
de mim e de tudo o mais. Sei que esqueci.
Pois quando me virei já não sabia
onde estava. Até que alguns pássaros emergiram
das árvores retorcidas – e voaram
na direção em que eu precisava seguir.

Trad.: Cide Piquet

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 25/03/2019

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Raymond Carver – This morning

This morning was something. A little snow
lay on the ground. The sun floated in a clear
blue sky. The sea was blue, and blue-green,
as far as the eye could see.
Scarcely a ripple. Calm. I dressed and went
for a walk — determined not to return
until I took in what Nature had to offer.
I passed close to some old, bent-over trees.
Crossed a field strewn with rocks
where snow had drifted. Kept going
until I reached the bluff.
Where I gazed at the sea, and the sky, and
the gulls wheeling over the white beach
far below. All lovely. All bathed in a pure
cold light. But, as usual, my thoughts
began to wander. I had to will
myself to see what I was seeing
and nothing else. I had to tell myself this is what
mattered, not the other. (And I did see it,
for a minute or two!) For a minute or two
it crowded out the usual musings on
what was right, and what was wrong — duty,
tender memories, thoughts of death, how I should treat
with my former wife. All the things
I hoped would go away this morning.
The stuff I live with every day. What
I’ve trampled on in order to stay alive.
But for a minute or two I did forget
myself and everything else. I know I did.
For when I turned back i didn’t know
where I was. Until some birds rose up
from the gnarled trees. And flew
in the direction I needed to be going.

Paulo Henriques Britto – Da irresolução

Por não se estar preparado
perde-se a vida inteira.
A preparação, porém,
pra ser completa e certeira,

exigiria no mínimo
uma existência e meia.
Compreende-se, portanto,
aquele que titubeia

ao se ver face a face
com tamanho compromisso
e termina decidindo
viver mesmo de improviso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/03/2019

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Joan Margarit – Helena

O ontem é teu inferno. É cada instante
em que, sem sabê-lo, te perdeste
e também cada instante em que foste salvo.
Quando o jovem que foste está muito distante,
o amor é vingança do passado.
Vens de uma guerra em que foste vencido,
de armas e acampamentos abandonados
na Troia que levas dentro de ti.
Buscar-te-ão de noite os aqueos
e estreitarão o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena são todos os sonhos de que a vida
foi-se apropriando. Defende-a bravamente
pela última vez, desarmado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/03/2019

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Helena

El ayer es tu infierno. Es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y también cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
el amor es venganza del pasado.
Viene de una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos abandonados
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por una mujer, a perder la ciudad.
Helena es todos los sueños que la vida
se ha ido apropiando. Defiéndela con valor
por última vez, desarmado.

Manuel António Pina – Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 22/03/2019

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Fernando Pinto do Amaral – Por causa de uma ave

        para a minha mãe

Cada vez gosto menos de saborear
o travo tão pastoso da morte, o murmúrio
secreto dos seus olhos invisíveis
dentro de mim. Porém, há pouco tempo,
num fim de tarde deste fim de julho,
passou-me um episódio que rompeu
de repente na alma todas as comportas
que fingem proteger os ópios tranquilos
a que chamamos vida. Aconteceu
depois de ter chegado a esta casa
perdida numa encosta de província
e onde venho só de longe em longe:
foi durante a limpeza da sala maior
que, afastando um armário, descobri
entre pequenas teias, quase envolto
num sudário de pó, ali esquecido,
na treva e no silêncio dos meses de inverno,
o esqueleto de um pássaro. Entrara
pela chaminé de pedra e escorregara
até cair junto à lareira. Hoje
imagino o pavor do seu voo suicida
pousando às cegas de móvel em móvel,
dias e dias pelo escuro deserto
da sala fria, à toa, procurando
escapar ao seu naufrágio, encontrar
uma réstia de céu, até que, já sem forças,
se deixou deslizar para trás desse armário
onde morreu de sede e fome e solidão
enquanto mal batia as asas
em arremedos de frustradas fugas.

Ao ter na mão aquele resto de corpo
os “pedacinhos de ossos”, toda a quilha
do peito sustentando o arco das costelas,
as minúsculas patas quase intactas,
lembrei-me, num relance de terror,
de outros ossos maiores, os do meu pai,
a não muitas centenas de metros daqui,
num absurdo cubículo de pedra
sobre o qual está gravado um nome de família.
Apodrecem há mais de quinze anos
em sombras que serão iguais a nós
– passageiros ingênuos e translúcidos
de corpos consumidos no seu próprio lume.
Ao sentir entre os dedos o que foram asas,
vi nos últimos gestos dessa ave,
chocando com as paredes, sem saída,
o mesmo desespero esbracejante
de uma noturna cama de hospital
onde houve um homem que lutou às cegas
no seu estertor febril e consciente,
junto à fronteira íntima, abissal,
que nem a voz transpõe. Nenhum dos gritos
pode ecoar nos meus, aqui, agora,
nesta dádiva exangue e sem destinatário,
porque toda a poesia se resume
a um calafrio embalsamado em letras,
palavras destinadas a morrer
no momento em que as páginas de um livro,
como as asas de um pássaro, os braços de um homem,
se fecham num sono a que ninguém responde.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 21/03/2019

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Rui Diniz – O desaguar dos crepúsculos no Ebro

Eu estava presente quando o corpo do hernandez
deu à costa. Era um corpo magro e extraordinariamente
roxo, evocava os últimos dias da sua vida,
quando se demorava o menos possível nos cafés de
barcelona, perseguido até por si próprio.
De facto a loucura procurava-o lentamente.
Durante a noite, em tempo de lua cheia, a sua
sombra por vezes corria pelo silêncio dorsal
das colinas, rindo. Eu lia então até tarde as
suas descrições de uma espanha enlouquecida,
sonhadora de sangue, impulsionada pelos
cemitérios sombrios onde corpos se iam decompondo
enquanto esperavam. Os seus dedos crispavam-se
quando o vi trazido para terra naquele poente
áspero como poentes da cantábria. Os seus olhos
eram duas covas percorridas por algas e
peixes minúsculos, os lábios articulavam ainda as
últimas palavras para o aniquilamento negro dos
seus dias. Mas a boca, submetida no silêncio de
estar morto, esboçava o mais puro sorriso,
a ironia de poemas inteiros meditando o mais
violento infortúnio.

A noite escurecia a praia e os rostos estranhos
das falésias. Vinha com as asas de morta umedecidas
de sangue, irmã de hernandez despedindo-se
suavemente da lua negra.
Olhei-o uma derradeira vez:
o ebro cobria-lhe os cabelos agitados
e no espesso desaguar das narinas
o seu estilo reaparecia.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 17/03/2019

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Carmen Conde – [Declaro que morreu e que seu túmulo]

Declaro que morreu e que seu túmulo
está dentro de mim; sou seu sudário.
A ninguém se enterrou porque seu trânsito
no tempo foi de loucas esperanças.

Circundam o contorno desta cova
– quente é a vinha que escala as paredes –
os pâmpanos mais tenros e suculentos
que arrancam do silêncio seu tumulto.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/03/2019

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Declaro que se ha muerto y que su tumba

Declaro que se ha muerto y que su tumba
está dentro de mí; soy su mortaja.
A nadie se enteró porque su tránsito
descanso fue de locas esperanzas.

Rodean el contorno de esta fosa
— caliente está la vid que escala muros —
los pámpanos más tiernos y jugosos
que arrancan del silencio su tumulto.