Marina Tsvetáieva – Um poema em duas traduções

Tentativa de ciúme
Trad.: Augusto de Campos

Como vai você com a outra?
Fácil, não é? — Um golpe de remo! —
E de pronto a linha da costa
Se foi e você já nem se lembra

De mim, ilha flutuante
(No céu, por certo, não no mar)!
Almas! Almas! — antes amar
Como irmãs, não como amantes!

Como vai você com a mulher
Comum? Sem nada de divino?
Sem soberana, sem sequer
Um trono (você foi o assassino),

Como vai, meu bem? Tudo a gosto?
E o dia-a-dia — sempre igual?
Como você se arranja com o imposto
Da banalidade imortal?

“Mil sobressaltos, incertezas —
Basta! Vou arrumar um teto!”
Como vai, com quem quer que seja —
O eleito pelo meu afeto?

A comida é melhor, mais familiar?
Diga a verdade. Como vai
Você com a imitação vulgar —
Você, que subiu ao Sinai?

Como é viver com uma estranha?
Você a ama? Não disfarce.
O chicote de Zeus da vergonha
Nenhuma vez lhe zurze a face?

E a saúde, vai bem? Que tal
A vida — uma canção? A ferida
Da consciência imortal
Como a suporta, meu querido?

Como vai você com o adereço
De feira? A taxa é muito cara?
Como é aspirar o pó do gesso
Depois do mármor de Carrara?

(Deus talhado em barro, termina
Em pedaços!) Como é o convívio
Com a milionésima da fila
Pra quem já conheceu Lilit?

As novidades de feira
Se acabaram? Farto de portentos,
Como é a vida corriqueira
Com a mulher terrena, sem sexto

Sentido? Vamos, tudo cor
De rosa? Ou não? Aí, nesse oco
Sem fundo, amor, como vai? Pior
Ou igual a mim com outro?

Ensaio de ciúme
Trad.: Décio Pignatari

Como vai indo com a outra?
Tão fácil, não? — basta um impulso
no remo — com a orla, a minha
imagem se borra, se afasta,

vira ilha flutuante (no céu,
— na água, não!). Alma e alma,
irmãs, sim — mas, amantes, não!
Uma é destino; outra — sem fim!

Que tal viver com tal pessoa
comum — vida sem divindades?
Jogou do trono-olimpo a deusa-
rainha, abdicou — e a coroa

de sua vida, como fica?
Ao despertar, como pagar
o preço de imortal banal-
idade — como? Menos rica?

“Chega de susto e suspeita!
Quero um lar!”. Mas… e a vida
só — com uma mulher qualquer —
Você — eleito de uma eleita?

Ah… E a comida? Apetitosa?
Você se queixa quando enjoa?
Depois do topo do Sinai,
Ir conviver com uma à-toa

da parte baixa da cidade,
uma coitada? Gostou da anca?
O açoite-vergonha de Zeus
ainda não vincou-lhe a estampa?

Entre viver e ser, dá para
contar? E como encara
o caro amigo a cicatriz
da consciência-meretriz?

Viver como boneca de gesso
—de feira!? Você me acha cara?
depois de um busto de Carrara,
um susto de papier-mâché?

(O deus que escavei de um bloco
só me deixou os ocos). Enleva
viver com uma igual a mil,
quem já teve a Lilit primeva?

Não lhe matou a fome a boa
bisca, que atendeu aos pedidos?
Como viver com a simplória
que só possui cinco sentidos?

Enfim, por fim…: você é feliz,
no sem-fundo dessa mulher?
Pior, melhor, igual a mim,
nos braços de um outro qualquer?

Peguei aqui: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/04/marina-tsvetaieva-1892-1941.html?m=1

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 21/05/2018

Anna Akhmátova – Último Brinde

Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz…

Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada veem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.

Trad.: Rubens Figueiredo

 

Последний тост

Я пью за разоренный дом,
За злую жизнь мою,
За одиночество вдвоем,
И за тебя я пью,—

За ложь меня предавших губ,
За мертвый холод глаз,
За то, что мир жесток и груб,
За то, что Бог не спас.

Marina Tsvetáieva – Um poema em duas traduções

Tentativa de ciúme
Trad.: Augusto de Campos

Como vai você com a outra?
Fácil, não é? — Um golpe de remo! —
E de pronto a linha da costa
Se foi e você já nem se lembra

De mim, ilha flutuante
(No céu, por certo, não no mar)!
Almas! Almas! — antes amar
Como irmãs, não como amantes!

Como vai você com a mulher
Comum? Sem nada de divino?
Sem soberana, sem sequer
Um trono (você foi o assassino),

Como vai, meu bem? Tudo a gosto?
E o dia-a-dia — sempre igual?
Como você se arranja com o imposto
Da banalidade imortal?

“Mil sobressaltos, incertezas —
Basta! Vou arrumar um teto!”
Como vai, com quem quer que seja —
O eleito pelo meu afeto?

A comida é melhor, mais familiar?
Diga a verdade. Como vai
Você com a imitação vulgar —
Você, que subiu ao Sinai?

Como é viver com uma estranha?
Você a ama? Não disfarce.
O chicote de Zeus da vergonha
Nenhuma vez lhe zurze a face?

E a saúde, vai bem? Que tal
A vida — uma canção? A ferida
Da consciência imortal
Como a suporta, meu querido?

Como vai você com o adereço
De feira? A taxa é muito cara?
Como é aspirar o pó do gesso
Depois do mármor de Carrara?

(Deus talhado em barro, termina
Em pedaços!) Como é o convívio
Com a milionésima da fila
Pra quem já conheceu Lilit?

As novidades de feira
Se acabaram? Farto de portentos,
Como é a vida corriqueira
Com a mulher terrena, sem sexto

Sentido? Vamos, tudo cor
De rosa? Ou não? Aí, nesse oco
Sem fundo, amor, como vai? Pior
Ou igual a mim com outro?

Ensaio de ciúme
Trad.: Décio Pignatari

Como vai indo com a outra?
Tão fácil, não? — basta um impulso
no remo — com a orla, a minha
imagem se borra, se afasta,

vira ilha flutuante (no céu,
— na água, não!). Alma e alma,
irmãs, sim — mas, amantes, não!
Uma é destino; outra — sem fim!

Que tal viver com tal pessoa
comum — vida sem divindades?
Jogou do trono-olimpo a deusa-
rainha, abdicou — e a coroa

de sua vida, como fica?
Ao despertar, como pagar
o preço de imortal banal-
idade — como? Menos rica?

“Chega de susto e suspeita!
Quero um lar!”. Mas… e a vida
só — com uma mulher qualquer —
Você — eleito de uma eleita?

Ah… E a comida? Apetitosa?
Você se queixa quando enjoa?
Depois do topo do Sinai,
Ir conviver com uma à-toa

da parte baixa da cidade,
uma coitada? Gostou da anca?
O açoite-vergonha de Zeus
ainda não vincou-lhe a estampa?

Entre viver e ser, dá para
contar? E como encara
o caro amigo a cicatriz
da consciência-meretriz?

Viver como boneca de gesso
—de feira!? Você me acha cara?
depois de um busto de Carrara,
um susto de papier-mâché?

(O deus que escavei de um bloco
só me deixou os ocos). Enleva
viver com uma igual a mil,
quem já teve a Lilit primeva?

Não lhe matou a fome a boa
bisca, que atendeu aos pedidos?
Como viver com a simplória
que só possui cinco sentidos?

Enfim, por fim…: você é feliz,
no sem-fundo dessa mulher?
Pior, melhor, igual a mim,
nos braços de um outro qualquer?

Peguei aqui: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/04/marina-tsvetaieva-1892-1941.html?m=1

Mikhail Svetlov – Dois

Deitaram-se junto à fogueira,
estenderam os corpos sem forças,
e uma bala atravessou a têmpora de um
entrando pela nuca do outro.

Abraçados às metralhadoras,
de que cuidavam escrupulosamente,
nem a tempestade, nem a neve convertida em gelo
conseguiram retirar-lhas.

Um oficial aproximou-se dos moribundos,
tirou-os dos braços um do outro desajeitadamente
e enquanto o seu olho verificava a mira
ordenou que entregassem a arma.

Mas os rostos mortos não revelam medo,
a alegria adormeceu nas suas expressões…
E o terceiro logo sentiu frio
face à sinistra felicidade daqueles dois.

1924

Versão de Diogo Vaz Pinto, a partir de tradução de Natalia Litvinova
(http://omelhoramigo.blogspot.com.br/2016/12/dois.html)

Marina Tsvetáieva – Você me Amava

Você me amava: as honestas mentiras
pareciam na verdade ter raiz.
Maior que o tempo, que imenso, imensís-
simo (eu cria) um tal amor que aspiras-

se ser tão grande quanto o meu ardor!
Então, sem mais, a mão abana, o amor
se vai, respiro mal, mal digo a mim:
— Eis a verdade do início e do fim.

Trad.: Décio Pignatari

Ósip Mandelstam – Pedra (excerto)

Não posso tocar, no escuro,
Teu vulto vago e sombrio.
“Senhor!”, por erro, murmuro,
Alheio ao que balbucio.

De mim, tal uma ave enorme,
O nome de Deus se evola.
À frente, um abismo informe,
Atrás, vazia, a gaiola.

Trad.: Augusto de Campos

Vladimir Maiakovski – O Amor

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.

Trad.: Augusto de Campos e Boris Schnaiderman