Diogo Vaz Pinto – Guilty pleasures

No princípio correram ainda uns dias
sem que o desencanto desse
pela nossa falta. Seja como for,
não fomos muito longe.

Íamos mais era ao cinema mas aí eu
já olhava menos para o lado, apaixonava-me
pelas tipas que enchiam o ecrã, para depois,
com o sexo aceso e louco por se molhar
entre quaisquer pernas, a levar a casa
e nos despirmos entre o corredor e o quarto,
sem grandes cerimônias nem truques.
Na cama víamo-nos rapidamente desfeitos
entre as simples urgências de um desejo
sem nome.

A meio daquilo lembrava-se de perguntas,
insistia repetidamente “onde tens
a cabeça?”, “aqui mesmo” dizia-lhe,
mas sentia-a rolar para longe
do triste e descoordenado impacto
que prendia cada orgasmo.

Chegava a fechar os olhos para não ver.
Mesmo nas paredes sangrava uma adolescência
sem explicação: posters, postais e bilhetes,
o lixo vago das recordações e a linha de sorrisos
que unia as fotografias – anjinhos
desfigurados, as asas pisadas
com os sonhos entretanto devorados
por insônias.

Pedia-lhe
que desligasse a luz e ficava em silêncio alvejando
as constelações sobre nós, estrelas de plástico
fluorescentes coladas no tecto. Ali, no escuro,
as palavras que tínhamos
favoreciam efeitos tão óbvios e piedosos,
terríveis delicadezas a que cedíamos
por vergonha, pudor
ou uma outra porra qualquer.

A carne dividida nos lençóis, usada,
o rádio ou a televisão aligeirando o vazio,
e aos poucos erguíamos-nos, como adultos.
Enquanto ela apanhava o cabelo e outros
restos de si, ou simplesmente se limpava,
eu fugia cobardemente
para um cigarro, este caderno, um copo
de leite morno. A ela, por hábito (talvez),
servia-lhe vodka
e deixava-a amuar, fedendo no suor
frio das inseguranças. Os olhos
baixos, entre os chinelos, sublinhados
de vez em quando por lágrimas.

Antes de sair via-me no papel
de um desses gajos de que é tão fácil
pensar o pior. “Até amanhã” ou “eu ligo-te”,
um beijo à traição e abandonava o que se parecia
cada vez mais com a cena de um crime.

No fim deixamos os corações
arrumados numa estatística qualquer,
não houve gritos, acusações nem aqueles
episódios com louça pelo ar, apenas a repetição
das noites, a garganta arranhada de suspiros
cada vez mais fundos e mortes dessas
a que ninguém dá importância. Pequenos,
desprezados sinais – o batom
rosado que não voltei a encontrar
nas camisas, o perfume que lhe dei
também não, o afterworld de Leonard
Cohen onde se refugiava cada vez mais cedo
e para onde não voltou a chamar-me,
além dos últimos desabafos passeando-se
nas bordas do delírio, florindo como se
apesar de tudo ainda houvesse
esperança.

E hoje acredito que sim
– talvez haja alguma, para ela.