Hugo Vera Miranda – Os cavaleiros do apocalipse

Como defender-se dos furtivos invernos
que aninham as moradas obscuras do desejo?
Como voltar por um instante
ao tempo feroz da infância
onde um velho com cara de sapo
solta pombas enquanto o trem passa?
Como decifrar a carícia longínqua
que agora atormenta a insônia?
Vamos ficando sozinhos,
cercados por demônios dançarinos
e um tiro de misericórdia
que produzirá efeitos
tão logo cruzemos
o umbral da esperança.

Trad.: Nelson Santander

Los jinetes del apocalipsis

¿Cómo defenderse de los solapados inviernos
que anidan las moradas oscuras del deseo?
¿Cómo volver por un instante
al tiempo feroz de la infancia
donde un viejo con cara de sapo
lanza palomas al paso del tren?
¿Cómo descifrar la caricia lejana
y que ahora atormenta el insomnio?
Nos vamos quedando solos,
rodeados de demonios danzando
y un tiro de gracia
que se hará efectivo
apenas crucemos
el umbral de la esperanza.

Joan Margarit – Noite escura na rua Balmes

Cumpridas as ameaças e temores
— hoje já todas as ruas levam à velhice —,
passo defronte à clínica em que tu nasceste,
vinte e seis anos atrás, em uma noite
de corredores feridos pela luz.
Aqui foi a tua chegada, pequena e indefesa,
à praia feliz do teu sorriso,
à dificuldade da palavra,
às escolas que não te quiseram,
aos ossos cansados, à calma
cruel e aparente dos corredores
que observam batas brancas silenciosas
com o frio burburinho dos anjos.
Polegares torcidos, o nariz
como bico de pássaro e as desordenadas
linhas da mão: nossas fisionomias
e, ao mesmo tempo, a da síndrome,
como se se tratasse de outra mãe
desconhecida, oculta no jardim.
Longe da beleza e da inteligência:
agora só importa a ternura,
o resto é uma questão de um mundo inóspito
do qual nos é difícil escondermo-nos
em raras rotas de felicidade.

Volto ao jardim escuro, à máquina
de café que me fez companhia
ao longo daquelas madrugadas.
Volto à culpa e ao remorso,
velhos escombros que ainda atravesso.
Como agora respeito aquelas mãos,
sua lucidez recusando o que desejava.
Hoje, voltas contra mim,
me agarram pelo pescoço na velhice,
forçando-me a enfrentar a manhã
em que tua ternura te salvou.
A antiga confusão da felicidade
e um mundo ao redor, nem amigo, nem inimigo:
vejo pessoas passando pelas ruas,
pelas obras, escritórios,
sempre indagando sobre as lágrimas perdidas.

Tu eras a flor, nós, um ramo
e, ao desfolhar-te, o vento
nos embalava desnudos de dor.
Ainda te protejo e ao passar tão perto
do escuro jardim daquele verão,
olho e vejo novamente
a débil luz daquela máquina
de café. Há vinte e seis anos.
E sei que sou feliz, que tive a vida
que deveria merecer. Nunca serei
nada diferente dela, azar e fogo.
Azar, pela vida.
Fogo, pela morte. E não ter nenhum túmulo.

Trad.: Nelson Santander

Noche Oscura en la Calle Balmes

Cumplidos amenazas y temores
— hoy ya todas las calles llevan a la vejez —,
paso frente a la clínica en la que tú naciste,
hace veintiséis años, una noche
de pasillos herida por la luz.
Aquí fue tu llegada, pequeña e indefensa,
a la playa feliz de tu sonrisa,
a la dificultad de la palabra,
a las escuelas que no te quisieron,
a los huesos cansados, a la calma
cruel y aparente de los corredores
que vigilan calladas batas blancas
con frío rumor de ángeles.
Torcidos los pulgares, la nariz
como pico de pájaro y las desordenadas
líneas de la mano: nuestras fisonomías
y a la vez la del síndrome,
como si se tratara de otra madre
desconocida, oculta en el jardín.
Lejos de la belleza y de la inteligencia:
ahora sólo importa la ternura,
lo demás es cuestión de un mundo inhóspito
del cual nos es difícil escondernos
en raras vías de felicidad.

Vuelvo al jardín oscuro, a la máquina
de café que me hizo compañía
a lo largo de aquellas madrugadas.
Vuelvo a la culpa y al remordimiento,
viejos escombros que atravieso aún.
Cómo respeto ahora aquellas manos,
su lucidez negándose a lo que deseaba.
Hoy, vueltas contra mí,
me agarran por el cuello en la vejez,
forzándome a enfrentarme a la mañana
en la que tu ternura te salvó.
La antigua confusión de la felicidad
y un mundo alrededor, ni amigo ni enemigo:
veo gente que pasa por las calles,
las obras, los despachos,
siempre indagando acerca de lágrimas perdidas.

Tú eras la flor, nosotros una rama
y, al deshojarte, el viento
nos mecía desnudos de dolor.
Aún te protejo y al pasar tan cerca
del oscuro jardín de aquel verano,
me asomo y vuelvo a ver
la débil luz de aquella máquina
de hacer café. Hace veintiséis años.
Y sé que soy feliz, que he tenido la vida
que debí merecer. No seré nunca
nada distinto de ella, azar y fuego.
Azar para la vida.
Fuego para la muerte. Y no tener ni tumba.

Marianne Moore – Uma água-viva

Visível, invisível,
uma flutuante sedução
que uma ametista cor de âmbar
habita, se aproximam
seus tentáculos, abrem
e fecham; você pretendia
pega-los e eles tremem;
você abandona este intento.

Trad.: Nelson Santander

A Jelly-Fish

Visible, invisible,
a fluctuating charm
an amber-tinctured amethyst
inhabits it, your arm
approaches and it opens
and it closes; you had meant
to catch it and it quivers;
you abandon your intent.

Antonia Pozzi – Erros

Cai graciosamente a neve
sobre os cestos das floristas: embranquece
os junquilhos e as violetas,
as delicadas frésias vindas
dos países do sol.
Ao vê-las pensamos
nos muitos destinos errados
que sofrem
pelos caminhos da terra
e um furor nostálgico investe
pelos caminhos de ouro da alma
aonde não chega a neve.

Trad.: Inês Dias

Errori

Fiocca la neve leggiadramente
sui cesti delle fioraie: imbianca
le giunchiglie e le viole,
le fresie magre, venute
dai paesi del sole.
A guardarle si pensa
dei tanti destini errati
che dolgono
per le vie della terra
ed un furore nostalgico serra
per le vie d’oro dell’anima
a cui neve non giunge.

Milano, 2 marzo 1932

Rodrigo da Silva – Chegará um dia em que o seu coração parará de bater

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater. A sua pupila dilatará. A sua pele ficará pálida e a sua temperatura corporal esfriará. Você ficará inteiramente esquálido; e então roxo. O seu sangue se tornará mais ácido com o acúmulo de dióxido de carbono. E as suas células começarão a se dividir, esvaziando as enzimas dos tecidos. O cálcio endurecerá os seus músculos. E o seu corpo passará a exalar um odor acre, fruto de uma mistura química constituída por mais de quatrocentos compostos orgânicos.

Tudo o que constitui a sua existência entrará em colapso – o que significa dizer que a sua linha do tempo chegará ao derradeiro ponto final. A partir destes preciosos segundos você não deixará mais qualquer rastro nesta bola azul gigante perdida no espaço. Não haverá mais nenhum som. Nem qualquer imagem. Nem tato. Nem cheiro. Restará apenas o inadiável: carne em processo de decomposição, um fenômeno da natureza conhecido como morte, óbito, falecimento, perecimento, fim.

E não se engane, o mundo permanecerá no mesmo lugar. As partidas de futebol não farão um minuto de silêncio em homenagem à sua história. Nas ruas os carros continuarão buzinando aleatoriamente, e nas emissoras de TV os apresentadores de telejornal prosseguirão dando notícias que você jamais ouvirá. Nas esquinas os pedestres insistirão em atravessar as ruas como se você nunca tivesse existido.

No seu círculo social, a implacável indiferença tomará conta do tempo. Os seus amigos permanecerão dedicando vastas horas ao consumo dos milhões de vídeos de gatinhos disponíveis na internet. E nas redes sociais os seus inimigos pleitearão longas batalhas retóricas sobre política com pessoas que eles nunca viram. Os seus entes mais próximos padecerão de sofrimento nas primeiras semanas, mas paulatinamente voltarão a executar os processos naturais da vida, adaptando-se à sua ausência.

Tudo permanecerá intocado: as baladas, os bares, os programas de auditório, o carnaval, os shows de humor, os barulhos ensurdecedores dos carros rebaixados. Virá a primavera, o verão, o outono, o inverno. E então tudo se repetirá num novo ciclo. Você deixará de ser carne para virar memória. E o tempo não falhará em transformar sua existência numa vaga lembrança, um túmulo abandonado no meio de um cemitério, uma refeição ordinária numa quarta-feira entediante para uma porção de bactérias e insetos.

Dentro da gente habita uma bomba relógio invisível. Ninguém sabe exatamente o prazo dela, mas o artefato abstrato atravancado é religiosamente pontual. Cada instante da vida é uma escolha sobre como gastar o tempo que o tempo tem. Mesmo a decisão que levou à leitura deste texto até aqui. Pode parecer clichê de empreendedor de palco, melodrama de parachoque de caminhão, mas você é literalmente a única pessoa no mundo capaz de administrar cada minuto que resta entre o término desta frase e o seu túmulo.

Nesse caminho, tentarão até prometer vagas soluções, parceladas em doze vezes sem juros. Mas acredite: não há outro indivíduo neste planeta apto a salvá-lo da apatia e da improdutividade. Nem quem tenha a capacidade de libertá-lo dos relacionamentos tóxicos, dos subempregos e dos vampiros emocionais. Há um monte de gente bacana lá fora esperando encontrar gente bacana. E há um monte de babaca tentando sugar cada gota da sua energia. Há um monte de coisas grandes prontas para serem conquistadas. E há o tempo perdido. É você quem determina o que fazer com o que resta desse relógio.

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater.

Mas não hoje. Não agora.

Eloy Sánchez Rosillo – O segredo

Se por acaso a alegria se assuste
e se apresse em me deixar,
eu a escondo das pessoas e não digo a ninguém
que veio à minha casa depois de muito tempo.
Falo com ela, e com frequência vê-la
de novo tão próxima
me faz chorar, e rio.
Depois a deixo sozinha e vou
para a rua muito sério.
A ninguém direi que veio a minha casa.
Espero que aqui esteja quando eu voltar.

Trad.: Nelson Santander

El secreto

Por si acaso se asusta la alegría
y se apresura a irse,
se la escondo a la gente y no le digo a nadie
que ha llegado a mi casa después de mucho tiempo.
Hablo con ella, y con frecuencia verla
de nuevo tan cercana
me hace llorar, y río.
Después la dejo sola y yo me voy
a la calle muy serio.
A nadie le diré que ha venido a mi casa.
Espero que esté aquí cuando regrese.

Jorge Valdés Díaz-Vélez – Naquele agora

As chances de encontrar-te novamente
eram remotas. Uma em um bilhão. E havendo
infinitos lugares dispersos pelos números
de um cálculo improvável, quem imaginaria
que eu te veria naquela cantina, transformando-te
na luz daqueles tempos felizes, ou isso quiseram
crer, anos atrás, aqueles dois que fomos.

Estavas ali, de repente e sem aviso
prévio, com um tímido sorriso, apoiando-se
no ombro de um cara de aspecto desprezível
que poderia ter sido eu. Não reconheceste
meu rosto entre as pessoas do bar. Embora talvez,
suponho, pretendias saber onde e quando
viste minhas feições, em que lugar mais recente
fizeste uma parada, sob que estranhas circunstâncias
encontraste com alguém que se me parecia
de longe. Mas não recordaste, se é que
tentaste, a quem prometeste um sonho
que não irias realizar, quando nos despedimos
atrás de uma janela. De volta a este agora,
teu rosto era o mesmo onde vi o resplendor
do anjo e o toque de um crepúsculo cinza
e hermético. Tinhas o rosto corado
e os cabelos mais negros que minhas mãos
já tocaram no vale lunar de tua cintura.

A bem-aventurança foi nossa companheira
de viagem às estrelas tão próximas à fome
de nossos corações e suas dores difusas.
Era a idade do bronze polido de teus seios.
As noites eram lentas palavras inaudíveis
do mundo que brotavam sem encaixes. Bebíamos
a vida entre os versos de uma poetisa árabe
e bailava nua a luz no terraço.

Tu então te acendias e o vento ia contigo
por algum beco a sórdidas tabernas,
levantando tua saia minúscula, mostrando-me
as rotas que de repente me alçavam ao mistério.
Sem dúvida, eras feliz de uma maneira ingovernável.
Também o fui. Fomos. Eu te disse, lembro-me
como se fosse ontem, que um deus faria seus
os traços de teu nome e do vinho teu sabor
de amêndoa e paraíso. Ainda és a mesma, inclusive
até te achei mais bonita, talvez menos
alegre que a imagem que de ti conservei
todo este tempo em vão. Por detrás do teu olhar
não encontrei o resplendor daquela garota insone,
mas uma palidez cinza de brasas
que ainda parecem guardar a vertigem do fogo.

Não posso assegura-lo. E tampouco importa.

Trad.: Nelson Santander

Aquel Ahora

Las posibilidades de volverte a encontrar
eran remotas. Una entre un billón. Y habiendo
infinitos lugares dispersos por los números
de un cálculo improbable, quién imaginaría
que te iba a ver en esa cantina, transformándote
en luz de aquel entonces feliz, o eso quisieron
creer años atrás aquellos dos que fuimos.

Estabas allí, tú de pronto y sin aviso
previo, con una tímida sonrisa, recargada
en el hombro de un tipo de aspecto deleznable
que podría haber sido yo. No reconociste
mi rostro entre la gente del bar. Aunque tal vez,
supongo, pretendías saber adónde y cuándo
miraste mis facciones, en qué sitio más joven
hiciste un alto, bajo qué extrañas circunstancias
coincidiste con alguien que se me parecía
de lejos. Pero no recordaste, si acaso
lo intentabas, a quien le prometiste un sueño
que no ibas a cumplir, cuando nos despedimos
tras una ventanilla. De vuelta en este ahora,
tu cara era la misma donde vi el resplandor
del ángelus y el tacto de un crepúsculo gris
y hermético. Llevabas rubor en las mejillas
y el cabello más negro que alguna vez tocaron
mis manos por el valle lunar de tu cintura.

La bienaventuranza fue nuestra compañera
de viaje a las estrellas tan próximas al hambre
de nuestros corazones y su dolor difuso.
Era la edad del bronce pulido de tus pechos.
Las noches fueron lentas palabras inaudibles
del mundo que brotaba sin encajes. Bebíamos
la vida entre los versos de una poeta árabe
y bailaba desnuda la luz en la terraza.

Tú entonces te encendías y el viento iba contigo
por algún callejón a sórdidas tabernas,
levantando tu falda minúscula, mostrándome
las rutas que de súbito me alzaban al misterio.
Sin duda eras feliz de forma ingobernable.
También lo fui. Lo fuimos. Te dije, lo recuerdo
como si fuera ayer, que un dios haría suyos
los rasgos de tu nombre y el vino tu sabor
de almendra y paraíso. Sigues igual, incluso
me has parecido más hermosa, quizá menos
alegre que la imagen que de ti conservé
todo este tiempo en vano. Detrás de tu mirada
no encontré el resplandor de aquella chica insomne,
sino una palidez ceniza de rescoldos
que aún parecen guardar el vértigo del fuego.

No puedo asegurarlo. Y ya tan poco importa.

Wislawa Szymborska – Terroristas

Dias inteiros eles ficam pensando
como matar, para matar,
e quantos matar para matar muitos.
Fora isso comem com apetite,
rezam, lavam os pés, alimentam os pássaros,
dão telefonemas coçando o sovaco,
estancam o sangue quando machucam o dedo,
se são mulheres, compram absorventes,
sombra para as pálpebras, flores para os vasos,
todos gracejam um pouco quando de bom humor,
bebem suco cítrico da geladeira,
à noite olham a lua e as estrelas,
colocam fones de ouvido com música suave
e adormecem gostosamente até a aurora
— a menos que o que estão pensando devam fazer à noite.

Trad.: Regina Przybycien

Zamachowcy

Calymi dniami mysla
jak zabic, zeby zabic,
i ilu zabic, zeby wielu zabic.
Poza tym z apetytem zjadaja swoje potrawy,
modla sie, myja nogi, karmia ptaki,
telefonuja drapiac sie pod pacha,
tamuja krew, kiedy skalecza sie w palec,
jesli sa kobietami, kupuja podpaski,
szminke do powiek, kwiatki do wazonow,
wszyscy troche zartuja, kiedy sa w humorze,
popijaja z lodowek soki cytrusowe,
wieczorem patrza na ksiezyc i gwiazdy,
zakladaja na uszy sluchawki z cicha muzyka
i zasypiaja smacznie do bialego rana
– chyba ze to, co mysla, maja zrobic w nocy.

Ivan Junqueira – Vésperas

A tarde descortina
uma paisagem híspida:
no galho seco, o ninho
é uma inútil relíquia
que a luz do sol calcina
até a estrita cinza.
Gota a gota, o alambique
das horas se esvazia,
e dilui-se a vertigem
do álcool que lhe mordia
as veias retorcidas.
Êxtase da agonia
no crepúsculo a pino.
Sob o céu que definha,
alguém lê, num papiro,
o que afligiu o espírito
de Plotino e Agostinho,
e relembra a lascívia
do fogo que engoliu
Cartago e Alexandria.

Rui Caeiro – Espero um dia

Espero um dia ter de esperar-te, com a ansiedade
dos que perderam tudo ou quase, menos talvez a memória
E espero humildemente vir a merece-te, cometer um ato heroico
e merecer-te, ser outra e a mesma pessoa – e merecer-te
Espero estar bem triste para quando enfim chegares
poder dar-te o mais autêntico: a memória, a tristeza
Espero a grande disponibilidade de poder esperar à vontade
quero o espaço, todo o espaço – e muita falta de ar
Espero a paciência de adivinhar-te e a sufocação de ver-te
ou a graça de poder continuar à espera – indefinidamente
Espero, ardentemente espero que o tempo passe e a morte não exista
e eu apenas à tua espera rodeado de livros, sem perceber nada
Espero, já agora, que no final, como quem completa um puzzle
afinal mais simples do que parecia, tu simplesmente venhas