Manuel António Pina – Depois

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?

Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Mary Oliver – Como é conosco, e como é com eles

Nós nos tornamos religiosos,
depois nos afastamos disso,
depois ficamos carentes e talvez voltemos atrás.
Nos dedicamos a ganhar dinheiro,
depois nos voltamos para a vida moral,
depois pensamos novamente em dinheiro.
Conhecemos pessoas maravilhosas, mas as perdemos
para os nossos negócios.
Estamos, como diz o refrão, por toda parte.
A constância, aparentemente,
tem mais a ver com os cães do que conosco.
Uma das razões pelas quais os amamos tanto.

Trad.: Nelson Santander

How it is With Us, and How it is With Them

We become religious,
then we turn from it,
then we are in need and maybe we turn back.
We turn to making money,
then we turn to the moral life,
then we think about money again.
We meet wonderful people, but lose them
in our busyness.
We’re, as the saying goes, all over the place.
Steadfastness, it seems,
is more about dogs than about us.
One of the reasons we love them so much.

Laia Noguera i Clofent – Sem título

Amo a vida simples,
sentar-me à entrada
para ver o ir e vir das pessoas,
como se move um pardal,
como se inclina a tarde
nas casas do corpo.

Já sei que morrerei
muito antes de morrerem
as árvores que amo.

Mas nada me preocupa,
porque no instante
em que se me romper o último fio
serei apenas aquela mulher
que se sentava à entrada
para observar simplesmente
e ser folha e raiz.

Trad.: Nelson Santander

Laia Noguera i Clofent

Amo la vida pequeña,
sentarse en la entrada
para ver cómo pasa la gente,
cómo se mueve un gorrión,
cómo se inclina la tarde
en las casas del cuerpo.

Ya sé que moriré
mucho antes de que hayan muerto
los árboles que quiero.

Pero no me preocupa nada,
porque en el instante
en que se me rompa el último hilo
seré sólo aquella mujer
que se sentaba en la entrada
para mirar simplemente
y ser hoja y raíz.

Nicanor Parra – Composições

I

Cuidado, todos mentimos
Mas eu proclamo a verdade.

A matemática enfada
Mas nos dá o de comer.

Por outro lado, se escreve
Poema para viver

Ninguém gosta de assumir
Culpa por vidros quebrados.

Se escreve contra si mesmo
Em virtude dos demais

Que indecente é fazer versos!
Quando menos se esperar
Darei um tiro em mim mesmo.

II

Tudo me parece mal
O sol me parece mal
O mar me parece péssimo.

Os homens estão sobrando,
As nuvens estão sobrando,
E chega de arco-íris.

Meus dentes estão com cáries
Ideias preconcebidas
Espírito inexistente.

O sol dos desesperados
Árvore cheia de micos
Desarranjo dos sentidos.

Imagens incoerentes.

Só podemos existir
De ideias emprestadas.

A arte me degenera
Ciência me degenera
O sexo me degenera.

Convença-se de que não há deus.

Trad.: Nelson Santander

Nicanor Parra – Composiciones

I

Cuidado, todos mentimos
Pero yo digo verdad.

La matemátia aburre
Pero nos da de comer.

En cambio la poesía
Se escribe para vivir.

A nadie le gusta hacerse
Cargo de los vidrios rotos.

Se escribe contra uno mismo
Por culpa de los demás.

¡Qué inmundo es escribir versos!
El día menos pensado
Me voy a pegar un tiro.

II

Todo me parece mal
El sol me parece mal
El mar me parece pésimo.

Los hombres están de más,
Las nubes están de más,
Basta con el arco iris.

Mis dientes están cariados
Ideas preconcebidas
Espíritu inexistente.

El sol de los afligidos
Un árbol lleno de micos
Desorden de los sentidos.

Imágenes inconexas.

Sólo podemos vivir
De pensamientos prestados.

El arte me degenera
La ciencia me degenera
El sexo me degenera.

Convénzase que no hay dios.

Anne Sexton – A Terra Desmorona

Se eu pudesse culpar o clima por tudo,
a neve como a mesa de dissecação,
as árvores que se tornam agulhas de tricô,
o chão, tão rijo como uma arinca congelada,
o lago vestindo seu bigode de geada.
Se eu pudesse culpar tais circunstâncias,
se eu pudesse culpar os corações de estranhos
descendo as ruas silenciosamente,
ou culpar os cães, de todas as cores,
cheirando uns aos outros
e mijando na soleira das portas…
Se eu pudesse culpar os CEOs
e os presidentes por
suas cantilenas irremissíveis​​…
Se eu pudesse culpá-los por todas
as mães e pais do mundo,
pelas suas lições, as migalhas de poder,
pelo seu amor que circunda você feito uma massa…
Culpar Deus talvez?
Pelo começo de tudo
que nos compeliu aos nossos primeiros erros?
Não, eu culparei o Homem
pois o Homem é Deus
e o homem está consumindo a terra
como a uma barra de doces
e nenhum deles pode ser deixado sozinho com o oceano,
pois sabemos que ele o engolirá inteiro.
As estrelas (possivelmente) estão a salvo.
Pelo menos por enquanto.
As estrelas são peras
que ninguém pode alcançar,
mesmo para um casamento.

Talvez por uma morte.

Trad.: Nelson Santander

 

Anne Sexton – The Earth Falls Down

If I could blame it all on the weather,
the snow like the cadaver’s table,
the trees turned into knitting needles,
the ground as hard as a frozen haddock,
the pond wearing its mustache of frost.
If I could blame conditions on that,
if I could blame the hearts of strangers
striding muffled down the street,
or blame the dogs, every color,
sniffing each other
and pissing on the doorstep…
If I could blame the bosses
and the presidents for
their unpardonable songs…
If I could blame it on all
the mothers and fathers of the world,
they of the lessons, the pellets of power,
they of the love surrounding you like batter…
Blame it on God perhaps?
He of the first opening
that pushed us all into our first mistakes?
No, I’ll blame it on Man
For Man is God
and man is eating the earth up
like a candy bar
and not one of them can be left alone with the ocean
for it is known he will gulp it all down.
The stars (possibly) are safe.
At least for the moment.
The stars are pears
that no one can reach,
even for a wedding.

Perhaps for a death.

Aldo Oliva – O Elevador de Hera

Dizem os insetos sensatos e sensíveis
que as paredes e os grandes
muros são apenas um hausto veemente
conjurando o nada, o infinito.
Por estes ladrilhos de não-ser
ascendem, como habitáculos
de fúria, os corpos corrompidos
das palavras. Quem me impôs,
rasgando minha inocência animal
na base da minha profundidade biológica,
esta ascensão conjetural?
Só o vazio que vem
do alto, que vem e obstina
(furacão espiralado)
a massa dos bem criados,
a queda na plenitude
da escuridão, chamada,
às vezes, vida.

Trad.: Nelson Santander

Aldo Oliva – El Ascensor de Hiedra

Dicen los insectos sensatos y sensibles
que las paredes y los grandes
muros son apenas un hálito vehemente
conjurando la nada, el infinito.
Por esos ladrillos del no ser
ascienden, como habitáculos
de furia, los cuerpos corrompidos
de las palabras. ¿Quién me impuso,
rasgando mi inocencia animal
en el sillar de mi hondura biológica,
esta ascensión conjetural?
Sólo lo vacuo que adviene
de lo alto, que adviene y obstina
(huracán espiralante)
la masa de los bienes creados,
la caída en la plenitud
de lo oscuro, llamada,
a veces, vida.

Carlos Saraiva Pinto – Sem Título

a mulher que me deu mais prazer
perdi-a um dia.

às vezes via a sua magreza
através da elegância das saias.

eu conhecia os relicários dos santos
os seus ossos distribuídos por
gavetas de prata
e sabia que um relógio
cria no cão pequeno
a ilusão do bater do coração da mãe.

o que eu beijava nessa mulher
era a sua respiração
o ar da sua santidade
que lhe impulsionava as ancas.

e ao seu lado eu dormia
como um cão enrolado
ouvindo o bater do coração.

José Lino Grünewald – Soneto Burocrático

Salvo melhor juízo doravante,
Dessarte, data vênia, por suposto,
Por outro lado, maximé, isso posto,
Todavia deveras, não obstante

Pelo presente, atenciosamente,
Pede deferimento sobretudo,
Nestes termos, quiçá, aliás, contudo
Cordialmente alhures entrementes

Sub-roga ao alvedrio ou outrossim
Amiúde nesse ínterim, senão
Mediante qual mormente, oxalá quão

Via de regra te-lo-ão enfim
Ipso facto outorgado, mas porém
Vem substabelecido assim, amém.

Marcelo Montenegro – Forte Apache

Noel Rosa dizia que era universal sem sair de
seu quarto. Elvis Costello disse que o rock ‘n’ roll
não morrerá porque sempre vai ter um garoto
trancado em seu quarto fazendo algo que ninguém
nunca viu. Laura Riding, por seu turno, falava
da pretensão de “escrever sobre um assunto/
que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão
compacta do quarto/ Lotando o mundo entre meus
cotovelos”. Já François Truffaut considerava-se
pertencente a uma família de cineastas que
praticava uma espécie de “cinema do quartinho
dos fundos, que recusa a vida como ela é” —
como “nas brincadeiras de crianças, quando
refazíamos o mundo com nossos brinquedos”.
Como escreveu Ferreira Gullar no Poema sujo,
“que me ensinavam essas aulas de solidão”?
Aliás, é Pascal quem avisa: todos os males
derivam do fato de que não somos capazes
de permanecer tranquilos em nossos quartos.

Charles Bukowski – Agarre o Escuro

estou sentado aqui
agora bêbado
escutando as
mesmas sinfonias
que me deram a
vontade de seguir em frente
quando eu tinha 22 anos.

40 anos depois
elas e eu já não somos mais tão
mágicos.

você deveria ter-me
visto
tão
esbelto
sem
barriga
eu era
um pedaço de
homem:
flamejante, forte,
insano.

dissesse uma palavra
errada
para mim
e eu quebrava a sua cara
na hora.

eu não queria ser
incomodado
com qualquer coisa
ou por qualquer um.
eu parecia estar
sempre a caminho de alguma
cela
depois de ser fichado
por fazer coisas
na avenida
ou fora dela.

agora eu estou aqui
bêbado.
sou
uma série de
pequenas vitórias
e grandes derrotas
e estou tão
espantado
quanto qualquer outro
por
ter conseguido
chegar
até aqui
sem cometer um assassinato
ou ser
assassinado:
sem
ter acabado no
hospício.
enquanto bebo sozinho
de novo esta noite
minha alma apesar da agonia
passada
agradece a todos os deuses
que não estavam

por mim
então.

Trad.: Claudio Willer