Denise Levertov – Conversando com a dor

Ah, dor, eu não deveria trata-la
como um cão vira-latas
que vem à porta dos fundos
por uma migalha, por um osso descarnado.
Eu deveria confiar em você.

Eu deveria persuadi-la
a entrar em casa e dar-lhe
o seu próprio canto,
um tapete usado para se deitar,
sua própria tigela de água.

Você pensa que eu não sei que você está morando
embaixo do meu alpendre.
Você anseia que o seu verdadeiro lugar esteja preparado
antes que chegue o inverno. Você precisa
do seu nome,
da uma coleira e um identificador. Você precisa
do direito de alertar os intrusos,
de considerar minha a sua casa
e a mim sua dona
e você mesma
minha próprio cadela.

Trad.: Nelson Santander

Talking to Grief

Ah, grief, I should not treat you
like a homeless dog
who comes to the back door
for a crust, for a meatless bone.
I should trust you.

I should coax you
into the house and give you
your own corner,
a worn mat to lie on,
your own water dish.

You think I don’t know you’ve been living
under my porch.
You long for your real place to be readied
before winter comes. You need
your name,
your collar and tag. You need
the right to warn off intruders,
to consider my house your own
and me your person
and yourself
my own dog.

Denise Levertov – Peregrinações no mundo paralelo

Vivemos nossas vidas de paixões humanas,
crueldades, sonhos, ideias,
crimes e o exercício da virtude
em e ao lado de um mundo privado
de nossas preocupações, isento
de nossas apreensões — embora afetado,
certamente, por nossas ações. Um mundo
paralelo ao nosso, embora a ele sobreposto.
Nós o chamamos de “Natureza”; apenas relutantemente
admitindo que somos “Natureza” também.
Sempre que perdemos o controle de nossas próprias obsessões,
de nosso egocentrismo, porque vagamos por um minuto,
uma hora até, de pura (quase pura)
reação a essa vida despreocupada:
nuvem, pássaro, raposa, o fluxo da luz, a peregrinação
dançante da água, a profunda imobilidade
de uma ephemerae encantada sobre uma vidraça iluminada,
vozes de animais, murmúrio mineral, vento
conversando com chuva, oceano com pedra, gaguejar
de fogo para o carvão — então algo atado
a nós, manco como um burro em seu pedaço
mastigado de cardo e grama, se liberta.
Ninguém sabe
exatamente onde estávamos quando fomos apanhados novamente
em nossa própria esfera (para onde devemos
retornar, de fato, para que nosso destino evolua)
— mas nós mudamos, um pouco.

Trad.: Nelson Santander

Sojourns in the parallel world

We live our lives of human passions,
cruelties, dreams, concepts,
crimes and the exercise of virtue
in and beside a world devoid
of our preoccupations, free
from apprehension—though affected,
certainly, by our actions. A world
parallel to our own though overlapping.
We call it “Nature”; only reluctantly
admitting ourselves to be “Nature” too.
Whenever we lose track of our own obsessions,
our self-concerns, because we drift for a minute,
an hour even, of pure (almost pure)
response to that insouciant life:
cloud, bird, fox, the flow of light, the dancing
pilgrimage of water, vast stillness
of spellbound ephemerae on a lit windowpane,
animal voices, mineral hum, wind
conversing with rain, ocean with rock, stuttering
of fire to coal—then something tethered
in us, hobbled like a donkey on its patch
of gnawed grass and thistles, breaks free.
No one discovers
just where we’ve been, when we’re caught up again
into our own sphere (where we must
return, indeed, to evolve our destinies)
—but we have changed, a little.

Denise Levertov – Naquele dia

Do outro lado de um lago na Suíça, cinquenta anos atrás,
a luz duelava com uma longa lança, esgrimindo com sabres
de um lado para o outro entre picos nublados e colinas.
Observávamos de um pequeno pavilhão, minha mãe e eu,
fascinadas.
E então, eis que um feixe, uma coluna,
um corpo definido, não de luz mas de chuva prateada,
se formou e partiu da costa distante, deixou para trás
as fintas e investidas silenciosas, e avançou
firmemente, a um ritmo constante,
em nossa direção.
Eu conhecia aquilo! Eu já vira aquilo! Não a sensação
de déjà vu: era a visão de Blake em aquarela,
‘O Espírito de Deus Movendo-se sobre a Face das Águas’!
A coluna avançava firmemente
através do lago em nossa direção; em ambos os lados
não havia chuva. Levantamo-nos, sem fôlego –
e então ela nos atingiu, apanhou-nos
em seu véu de prata, envolveu-nos
na melhor trama molhada
e rimos de alegria, maravilhadas.

Trad.: Nelson Santander

That day

Across a lake in Switzerland, fifty years ago,
light was jousting with long lances, fencing with broadswords
back and forth among cloudy peaks and foothills.
We watched from a small pavilion, my mother and I,
enthralled.
And then, behold, a shaft, a column,
a defined body, not of light but of silver rain,
formed and set out from the distant shore, leaving behind
the silent feints and thrusts, and advanced
unswervingly, at a steady pace,
toward us.
I knew this! I’d seen it! Not the sensation
of déjà vu: it was Blake’s inkwash vision,
‘The Spirit of God Moving Upon the Face of the Waters’!
The column steadily came on
across the lake toward us; on each side of it,
there was no rain. We rose to our feet, breathless —
and then it reached us, took us
into its veil of silver, wrapped us
in finest weave of wet,
and we laughed for joy, astonished.

Denise Levertov – O Segredo

Duas meninas descobrem
o segredo da vida
no inesperado verso
de um poema.

Eu, que não conheço o
segredo, escrevi
esse verso. Elas me
disseram

(por um terceiro)
que o tinham achado
mas não qual era ele
nem sequer

qual o verso. É claro que
agora, uma semana
depois, já esqueceram
o segredo,

o verso e o nome do
poema. Eu as amo
por terem encontrado
o que nunca encontrei,

e por me amarem, a mim
que escrevi o verso,
e por já o terem esquecido,
de modo que,

mil vezes, até que a morte
as alcance, elas podem
tornar a descobri-lo, em outros
versos,

em outros
fatos. E as amo por
desejarem conhecê-lo,
por

presumirem que existe
tal segredo, sim,
por isso
sobretudo.

Trad.: Carlito Azevedo (?)