Francisco Brines – A Piedade do Tempo

Em que escuro recanto do tempo que morreu
vivem ainda,
a arder, aquelas coxas?

Dão luz ainda
a estes olhos tão velhos e enganados,
que voltam agora a ser o milagre que foram:
desejo de uma carne, e a alegria
do que não se nega.

A vida é o naufrágio de uma obstinada imagem
que já nunca saberemos se existiu,
pois só pertence a um lugar extinto.

Trad.: José Bento

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/03/2019

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Francisco Brines – La piedad del tiempo

¿En qué oscuro rincón del tiempo que ya ha muerto
viven aún,
ardiendo, aquellos muslos?

Le dan luz todavía
a estos ojos tan viejos y engañados,
que ahora vuelven a ser el milagro que fueron:
deseo de una carne, y la alegría
de lo que no se niega.

La vida es el naufragio de una obstinada imagen
Que ya nunca sabremos si existió,
Pues sólo pertenece a un lugar extinguido.

Arthur W. Frank – Um senso de encantamento

A única diferença real
entre as pessoas
não é saúde ou doença,
mas como cada uma mantém
um senso de valor
na vida.

Quando sinto que não tenho tempo
para sair e contemplar
a luz do sol
no rio,
minha recuperação foi longe demais.

Um pouco de medo está tudo bem.

Está tudo bem
saber
que em um mês
eu poderia estar deitado
em uma cama de hospital me perguntando
como passei o dia de hoje.

Manter essa pergunta −
como foi o seu dia? −
me faz lembrar de sentir
e ver e ouvir.

É muito fácil
ficar distraído.
Quando a rotina se torna
frustrante,

tenho que lembrar daquelas vezes
em que a rotina
me foi
proibida.

Quando estava doente,
tudo o que queria
era voltar
ao fluxo
rotineiro de atividade.

Agora que estou de volta
à rotina,
tenho que manter
um senso de
encantamento

por estar aqui.

Trad.: Nelson Santander

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A Sense of Wonder

The only real difference
between people
is not health or illness
but the way each holds
onto a sense of value
in life.

When I feel I have no time
to walk out and watch
the sunlight
on the river,
my recovery has gone too far.

A little fear is all right.

It is all right
to know
that in a month
I could be lying
in a hospital bed asking myself
how I spent today.

Holding onto that question −
how did you spend today? −
reminds me to feel
and see and hear.

It is too easy
to become distracted.
When the ordinary becomes
frustrating,

I have to remember those times
when the ordinary
was forbidden
to me.

When I was ill,
all I wanted
was to get back
into the ordinary
flux of activity.

Now that I am back
in the ordinary,
I have to retain
a sense of
wonder

at being here.

Paulo Henriques Britto – Uma nova teoria de tudo

Todas as coisas que existem no mundo
fazem sentido. Senão não teria
sentido elas serem. Ou estarem. Tudo
mais depende desse princípio. Os dias

vêm antes das noites, não depois. Nunca
faz parte de sempre, assim como zero
é apenas um número entre outros números.
Toda forma é perfeita: não só a esfera,

que é só mais redonda que as outras – nada
de mais. E todas as proposições
são verdadeiras – se tornam verdade

no instante exato em que são formuladas.
Ficam sem efeito as contradições
todas. (Pronto. Creia. Não faça alarde.)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/03/2019

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Charles Simic – Minha contenda com o Infinito

Eu preferia o fugaz,
Como a lembrança de um gole de vinho
De nobre safra
Na língua, de olhos fechados…

Quando me tocaste no ombro,
Ó luz, inexprimível em teu esplendor,
Em nada me ajudaste.
Apenas prolongaste minha insônia.

Estava absorto no espetáculo,
Secretamente lamentando o fugidio:
Todos os seus beijos e encantos
Provisórios, de vida breve.

Aqui, com o novo dia surgindo,
E um único espantalho no horizonte
Dirigindo o tráfego
De corvos e suas sombras.

Trad.: Nelson Santander

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My Quarrel with the Infinite

I preferred the fleeting,
Like a memory of a sip of wine
Of noble vintage
On the tongue with eyes closed . . .

When you tapped me on the shoulder,
O light, unsayable in your splendor.
A lot of good you did me.
You just made my insomnia last longer.

I sat rapt at the spectacle,
Secretly ruing the fugitive:
All its provisory, short-lived
Kissed and enchantments.

Here with the new day breaking,
And a single scarecrow on the horizon
Directing the traffic
Of crows and their shadows.

Joan Margarit – Esboço para um Epílogo

Diante de ti sentes um rumor de passos
que vem do futuro, essa torre
demolida antes de ser construída.
Só existe a dúvida moral: ama,
não penses na camada de pó
a que tanto aludes, ostensivamente,
quando dizes: “minha vida”.
E, do prestígio das negações,
desconfia: a vida representa
não só a vitória dos anos
sobre nós. Também nos ensina
quão gloriosa foi
nossa vitória inicial sobre o tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Esbozo para un epílogo

Ante ti sientes un rumor de pasos
que viene del futuro, esa torre
derribada antes de que la construyeran.
Sólo existe la duda moral: ama,
no pienses en la lámina de polvo
que tanto nombras, ostentosamente,
cuando dices: “mi vida”.
Y, del prestigio de las negaciones,
desconfía: la vida representa
no sólo la victoria de los años
sobre nosotros. También nos enseña
lo gloriosa que fue
nuestra inicial victoria sobre el tiempo.

Mark Strand – O guardião

O sol se pondo. Os gramados em chamas
O dia perdido, a luz que se apagou.
Por que amo o que desvanece?

Tu que partiste, que estavas partindo,
que quartos escuros habitas?
Guardião da minha morte,

preserva minha ausência. Eu estou vivo.

Trad.: Nelson Santander

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The guardian

The sun setting. The lawns on fire.
The lost day, the lost light.
Why do I love what fades?

You who left, who were leaving,
what dark rooms do you inhabit?
Guardian of my death,

preserve my absence. I am alive.

Israel Zangwill – [Um dia, estando entre nós dois o Atlântico]

Um dia, estando entre nós dois o Atlântico,
senti a tua mão na minha;
Agora, tendo a tua mão na minha,
sinto entre nós dois o Atlântico.

Trad.: Cecília Meireles

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 27/02/2019

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Dan Albergotti – Considere as flores do campo

Os grãos
espalhados no chão
buscam um ponto de arrimo
que consigam encontrar no terreno,
abrem-se, estendendo pés embrionários
como luminescentes raios e passos retardatários
para achar o nutrimento mais próximo e sugá-lo. Ou tal
se presumiria, observando a passagem do tempo. Mas nada é intencional.
É mais como tinta derramada a esmo. Não há design. Nutrientes despropositados
chegam aos grãos, pelo menos os poucos que são enxaguados
debaixo do chão. Todos os demais são perdidos.
Como muitos, os grãos são esparzidos.
A maior parte é um crasso
fracasso.

Trad.: Nelson Santander

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Consider the Flowers of the Field

The seeds
tossed among weeds
seek out any foothold
they can find in the soil, unfold
themselves, extending embryonic feet
like luminescent, slow-mo lightning strikes to meet
the nearest nourishment and suck it up. Or so you’d think,
watching the time-lapse. But there’s no will there. It’s more like ink
spilled artlessly. No design. Senseless nutrients
come to the seeds, at least the few ones rinsed
beneath the dirt. The rest are lost.
Like lots, the seeds are tossed.
Most of it’s pure
failure.

Manuel António Pina – Numa Estação de Metrô

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distração!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo úmido, escuro*.

N. do. T.: o último verso faz menção ao famoso dístico In a Station of the Metro, de Ezra Pound, já publicado na página.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 26/02/2019

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Dorianne Laux – Da gentileza de estranhos

Não importa a dor, seu peso,
somos obrigados a carregá-la.
Erguemo-nos e ganhamos impulso, a força monótona
que nos empurra através da multidão.
Mas então um garoto me dá instruções
com tanto entusiasmo. Uma mulher segura a porta de vidro aberta,
pacientemente esperando meu corpo vazio passar por ela.
Ao longo do dia, isso continua, cada ato de bondade
se estendendo em direção a outro — um estranho
cantando para ninguém enquanto passo pelo caminho, árvores
ofertando suas flores, uma criança
que ergue seus olhos amendoados e sorri.
De alguma forma, eles sempre me encontram, até parecem
estar à espera, determinados a me afastar
de mim mesma, daquilo que me chama,
como deve ter um dia chamado por eles —
esta tentação de afastar-me da borda
e cair sem peso, longe do mundo.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: a tradução literal do título do poema – “For the sake of strangers” – seria: “Pelo amor de estranhos” ou “Pela bondade de estranhos”. Optei por traduzi-lo como “Da gentileza de estranhos” por duas razões. Primeiro, porque analisando o poema como um todo, o título não se torna incorreto ao ser traduzido desta forma. Além disso, essa tradução possibilita uma referência direta à famosa frase “Whoever you are—I have always depended on the kindness of strangers” (“Seja você quem for, eu sempre dependi da gentileza de estranhos“, na tradução de Vadim Nikitin), proferida pela personagem Blanche DuBois na peça “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams. Explica-se: o poema e a peça possuem inúmeros pontos de convergência temática, tais como o isolamento e a busca por conexão humana, a ênfase na importância da gentileza e da compaixão nas interações humanas, as lutas mentais e emocionais travadas tanto pelo eu poético quanto pela personagem da peça, a jornada interna pela busca de significado e aceitação e a complexidade da natureza humana e das relações sociais, de modo que não me pareceu completamente desarrazoado cometer esse pequeno deslize.

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For the Sake of Strangers

No matter what the grief, its weight,
we are obliged to carry it.
We rise and gather momentum, the dull strength
that pushes us through crowds.
And then the young boy gives me directions
so avidly. A woman holds the glass door open,
waiting patiently for my empty body to pass through.
All day it continues, each kindness
reaching toward another—a stranger
singing to no one as I pass on the path, trees
offering their blossoms, a child
who lifts his almond eyes and smiles.
Somehow they always find me, seem even
to be waiting, determined to keep me
from myself, from the thing that calls to me
as it must have once called to them—
this temptation to step off the edge
and fall weightless, away from the world.