Marie Howe – O que os vivos fazem

Johnny, a pia da cozinha está entupida há dias, algum utensílio provavelmente caiu lá embaixo. E o Drano não está resolvendo mas cheira perigosamente, e a louça incrustada se amontoou

esperando pelo encanador que eu ainda não chamei. Este é o dia a dia de que falávamos. Estamos no inverno de novo: o céu é de um profundo e vigoroso azul, e a luz do sol flui através

das janelas abertas da sala porque o calor está excessivo por aqui e não posso desliga-lo. Por semanas, dirigindo, ou deixando cair e rasgar-se uma sacola com compras na rua,

estive pensando: isso é o que os vivos fazem. E ontem, andando apressada sobre aqueles ladrilhos instáveis da calçada de Cambridge, derramando meu café no pulso e na manga,

pensei de novo, e de novo mais tarde, quando comprava uma escova de cabelo: é isso. Estacionar. Bater a porta do carro no frio. O que você chamou de esse anseio.

Aquilo de que você finalmente desistiu. Queremos que a primavera chegue e o inverno passe. Queremos de quem quer que ligue ou não ligue uma carta, um beijo — queremos mais e mais e depois mais ainda.

Mas há momentos, caminhando, em que vislumbro minha imagem no vidro da vitrine, digamos, da vitrine da videolocadora, e sou dominada por um carinho tão profundo por meu próprio cabelo esvoaçante, rosto rachado e casaco desabotoado que fico sem palavras: eu estou vivendo. Eu me lembro de você.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Johnny era o irmão mais novo de Marie Howe, do qual ela era muito próxima. Ele morreu em 1989 por complicações decorrentes da AIDS, o que previsivelmente a deixou devastada:

“Depois que John morreu, o mundo ficou muito claro – como se uma janela tivesse se partido – o mundo se tornou ele próprio muito caro. Era o lugar onde John tinha vivido e, enquanto eu ainda andasse por aí, poderia ter alguns vislumbres dele. Mais do que isso, porém, quando John morreu, senti como se finalmente tivesse entrado na comunidade mais ampla dos humanos. Agora eu conhecia uma dor insuportável e era como outras pessoas neste mundo que também haviam conhecido essa dor.”

Alguns anos depois, Marie Howe escreveu-lhe este poema em forma de carta, como forma de exorcizar-se de sua perda e achar um sentido para a vida vivida além desta perda. O resultado é essa magnífica elegia.

What the Living Do

Johnny, the kitchen sink has been clogged for days, some utensil probably fell down there. And the Drano won’t work but smells dangerous, and the crusty dishes have piled up

waiting for the plumber I still haven’t called. This is the everyday we spoke of. It’s winter again: the sky’s a deep, headstrong blue, and the sunlight pours through

the open living-room windows because the heat’s on too high in here and I can’t turn it off. For weeks now, driving, or dropping a bag of groceries in the street, the bag breaking,

I’ve been thinking: This is what the living do. And yesterday, hurrying along those wobbly bricks in the Cambridge sidewalk, spilling my coffee down my wrist and sleeve,

I thought it again, and again later, when buying a hairbrush: This is it. Parking. Slamming the car door shut in the cold. What you called that yearning.

What you finally gave up. We want the spring to come and the winter to pass. We want whoever to call or not call, a letter, a kiss — we want more and more and then more of it.

But there are moments, walking, when I catch a glimpse of myself in the window glass, say, the window of the corner video store, and I’m gripped by a cherishing so deep for my own blowing hair, chapped face, and unbuttoned coat that I’m speechless: I am living. I remember you.

Marie Howe – Singularidade

Singularidade

(depois de Stephen Hawking)

Você às vezes não gostaria de acordar para a singularidade
que um dia fomos?

tão compactos ninguém
precisava de cama, ou comida, ou dinheiro —

ninguém se escondendo no banheiro da escola
ou sozinho em casa

abrindo a gaveta
onde os comprimidos são guardados.

Pois cada átomo que pertence a mim
Pertence a você. Lembra-se?

Não havia Natureza. Não havia
eles. Nem testes

para determinar se o elefante
sofre por sua cria ou se

o recife de coral sente dor. Oceanos
arruinados não falam Inglês ou Farsi ou Francês;

se pudéssemos acordar para o que éramos
— quando éramos oceano e antes disso

quando o céu era terra, e o animal, energia, e a rocha era
líquida e as estrelas eram espaço e espaço não era

nada — nada

antes de começarmos a acreditar que os humanos eram tão importantes
diante desta terrível solidão.

Podem as moléculas se lembrar?
o que uma vez foi? antes de algo acontecer?

Não Eu, não Nós, ninguém. Não havia
o verbo, nem o substantivo
só um ponto muito minúsculo repleto de

é é é é é

A totalidade de tudo em casa

Trad.: Nelson Santander

Singularity


(after Stephen Hawking)

Do you sometimes want to wake up to the singularity
we once were?

so compact nobody
needed a bed, or food or money —

nobody hiding in the school bathroom
or home alone

pulling open the drawer
where the pills are kept.

For every atom belonging to me as good
Belongs to you. Remember?

There was no Nature. No
them. No tests

to determine if the elephant
grieves her calf or if

the coral reef feels pain. Trashed
oceans don’t speak English or Farsi or French;

would that we could wake up to what we were
— when we were ocean and before that

to when sky was earth, and animal was energy, and rock was
liquid and stars were space and space was not

at all — nothing

before we came to believe humans were so important
before this awful loneliness.

Can molecules recall it?
what once was? before anything happened?

No I, no We, no one. No was
No verb no noun
only a tiny tiny dot brimming with

is is is is is

All everything home

Marie Howe – Quantas vezes

Não importa quantas vezes eu tente, não consigo impedir meu pai
de entrar no quarto da minha irmã

e não consigo ver melhor, inclinando-me daqui para olhar
em seus olhos. Está escuro no corredor

e todos estão dormindo. Este é o passado
onde tudo já está perfeito e nada muda,

onde o copo de água cai no chão do banheiro
e quica uma vez antes de quebrar.

Nada. Nem o som baixo que minha irmã emite, ao virar,
nem o baque da cauda do cachorro

que abre um olho para vê-lo cambaleando de volta para a cama
ainda bêbado, um pouco desorientado.

Isto é exatamente como eu sabia que seria.
E se eu murmurar o nome dela, sibilando um alerta,

o que tenho feito há anos, o cachorro ainda
se assusta e rosna até perceber

que é o nosso pai, e a porta ainda se abre, e ela
ainda emite aquele pequeno oh ao virar.

Trad.: Nelson Santander

How many times

No matter how many times I try I can’t stop my father
from walking into my sister’s room

and I can’t see any better, leaning from here to look
in his eyes. It’s dark in the hall

and everyone’s sleeping. This is the past
where everything is perfect already and nothing changes,

where the water glass falls to the bathroom floor
and bounces once before breaking.

Nothing. Not the small sound my sister makes, turning
over, not the thump of the dog’s tail

when he opens one eye to see him stumbling back to bed
still drunk, a little bewildered.

This is exactly as I knew it would be.
And if I whisper her name, hissing a warning,

I’ve been doing that for years now, and still the dog
startles and growls until he sees

it’s our father, and still the door opens, and she
makes that small oh turning over.

Marie Howe – Meus amigos mortos

Comecei,
quando estou cansada e não consigo decidir a resposta que devo dar a uma pergunta desconcertante,

a pedir a opinião dos meus amigos mortos
e frequentemente a resposta é imediata e clara.

Devo aceitar o emprego? Mudar-me para a cidade? Devo tentar conceber um filho
em minha meia idade?

Em uníssono, eles balançam suas cabeças e sorriem – o que quer que conduza
à felicidade, eles sempre respondem,

a mais vida e menos preocupação. Eu olho para a urna onde estavam as cinzas de Billy –
é verde ali, uma urna verde,

e pergunto-lhe se devo retornar a complicada ligação, e ele diz: sim.
Billy já passou pelo apavorante portal,

o que quer que ele diga, eu farei.

Trad.: Nelson Santander

My Dead Friends

I have begun,
when I’m weary and can’t decide an answer to a bewildering question

to ask my dead friends for their opinion
and the answer is often immediate and clear.

Should I take the job? Move to the city? Should I try to conceive a child
in my middle age?

They stand in unison shaking their heads and smiling — whatever leads
to joy, they always answer,

to more life and less worry. I look into the vase where Billy’s ashes were –
it’s green in there, a green vase,

and I ask Billy if I should return the difficult phone call, and he says, yes.
Billy’s already gone through the frightening door,

whatever he says, I’ll do.