R S Thomas – Charneca

É bela e calma;
                o ar rarefeito
como o interior de uma catedral

esperando uma presença. É também onde
                 ocorre o tartaranhão,
materializando-se do nada, neve-

suave, mas com garras de fogo,
                  esquartejando a terra nua
pela presa que lhe escapa;

pairando sobre o guincho
                  incipiente, aqui por um momento, depois
não mais, como minha crença em Deus.

Trad.: Nelson Santander

Moorland

It is beautiful and still;
                the air rarefied
as the interior of a cathedral

expecting a presence. It is where, also,
                 the harrier occurs,
materialising from nothing, snow-

soft, but with claws of fire, 
                  quartering the bare earth
for the prey that escapes it;

hovering over the incipient 
                  scream, here a moment, then
not here, like my belief in God.

Antonio Cicero – O livro de sombras de Luciano Figueiredo

O livro de sombras de Luciano Figueiredo

1
Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas sim atrás de mim.
Não será a saída um desvio
e o caminho o verdadeiro fim ?

2

Não é hora de regressos
Não é hora

3
É certo que me perco em sombras
e que, isolado em minha ilha,
já não me atingem as notícias
dos jornais a falar de bolsas,
modas, cidades que soçobram,
crimes, imitações da vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias penelópicas
de horrores ou de maravilhas
que dia a dia se desfiam
e fiam sem princípio ou fim
novíssimas novas artísticas,
científicas, estatísticas…
E há na noite quente um jasmim.

4

É aqui, mais real que as notícias, na própria
matéria, na dobradura de uma folha
em que se refolha este meu coração
babilônico, na configuração
da mancha gráfica sobre a tessitura
do papel tensionado, ou onde se apura
o lusco- fusco produzido por linhas
e entrelinhas, entre o preto e o branco e o cinza,
onde cada ideia, cada ponto e vírgula
dos trabalhos e das noites se confunde
com miríades de pontos de retícula
e meios-tons de clichês, entre o passado
que jamais está passado e alguns volumes,
linhas e planos apenas esboçados,
que súbito os elementos mais dispersos
se articulam, claro-escuro filme negro,
entre a pura matemática, o acaso
e a arte (esta árvore já foi vestido
de mulher) onde o delírio é mais preciso,
transparece o meu jornal imaginário.

5

Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas sim atrás de mim.
Não será a saída um desvio
E o caminho o verdadeiro fim?

Conheça outros livros de Antonio Cicero clicando aqui

Jane Hirshfield – Hoje, outro universo

O arborista determinou:
senescência         pragas        cancro
acelerado pela seca
|                                    mas, em qualquer caso,
não podável       não tratável       não passível de escoras.

E assim.

O ramo de onde gritam o gavião-miúdo e sua companheira.

O tronco onde a formiga.

O playground de vinte e cinco metros dos esquilos vermelhos.

A casca    as camadas    a seiva-do-pinheiro    o aglomerado de formigueiros.

Os padrões japoneses        a teia-tatuada.

As manchas de determinados peixes.

Hoje, para alguns, um universo desaparecerá.
Primeiro, ruidosamente,
depois, apenas mais um silêncio.

O silêncio do depois, de quando o teatro se esvazia.

Da perplexidade após a Era Glacial,
a espécie, a estrela.

Outra coisa, na escala das coisas velozes,
irá substituí-la,

este vazio de luz na luz, os pássaros confusos desviando-se dele.

Trad.: Nelson Santander

 

Today, another universe

The arborist has determined:
senescence         beetles        canker
quickened by drought
|                                    but in any case
not prunable       not treatable       not to be propped.

And so.

The branch from which the sharp-shinned hawks and their mate-cries.

The trunk where the ant.

The red squirrels’ eighty-foot playground.

The bark    cambium    pine-sap    cluster of needles.

The Japanese patterns        the ink-net.

The dapple on certain fish.

Today, for some, a universe will vanish.
First noisily,
then just another silence.

The silence of after, once the theater has emptied.

Of bewilderment after the glacier,
the species, the star.

Something else, in the scale of quickening things,
will replace it,

this hole of light in the light, the puzzled birds swerving around it.

Ahmad ‘Abd al-Mu’ti Hijazi – Morte súbita

trago comigo o meu número de telefone
o meu nome e endereço
e assim se de súbito cair morto
podereis identificar-me
e meus amigos virão

Fancy, aconteça o que acontecer
não venhas.
ficarei na morgue duas longas noites
frios fios de telefone agitar-se-ão na noite.
a campainha começará.
sem resposta… uma vez… duas.

alguém irá ter com a minha mãe
e lhe dirá que eu morri
minha mãe essa triste camponesa
como caminhará só pela cidade
levando o meu endereço!
como passará a noite a meu lado
no átrio completamente mudo
subjugada pela solidão
confortada pelo seu recolhimento em dor
quando pondera só
por sobre as suas penas secretas
em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas

quem dera que a minha mãe tivesse
tatuado o meu braço de rapaz
assim não me perderia
assim não trairia meu pai
assim o meu primeiro rosto
não se perderia sob o meu segundo rosto.
quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio
depois de terem passado duas horas diante de mim
durante as quais não trocamos olhares
ou vimos diferentes cenários
quando vi que a vida não tem loucura
e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos
sinto como se estivesse realmente morto
jazendo silenciosamente
contemplando este mundo agonizante.

Trad.: Adalberto Alves

Daqui: https://canaldepoesia.blogspot.com/2021/02/ahmad-abd-al-mu-ti-hijazi-morte-subita.html

Galway Kinnell – Aquela noite silenciosa

Eu voltarei àquela noite silenciosa
em que nos deitamos juntos e conversamos em vozes baixas, silenciosas,
enquanto do lado de fora caíam lentos fragmentos de neve
suave, silenciando ao se aproximar do solo,
com um incêndio no quarto, onde séculos
de árvores evolaram-se em contínuas almas-ausentando-se,
sem um estalido, até a luz da manhã.
Só dormimos quando o que se apressava mais lento se tornou.
Quando chegamos em casa, nos viramos e olhamos para trás,
para nossos entrelaçados rastros fora da floresta,
onde os ramos em que roçamos deixavam cair
porções de neve cintilante, rapidamente, em silêncio,
como beijos roubados, e onde o tuim tuim tuim
entre as árvores, que é o som que morre
no interior das fagulhas da cunha quando a marreta
atinge-a fora do centro dizendo que tudo dentro
dela é lume, pulou para um galho escuro, orgulhoso
mas sem braços e, por isso, para os nossos olhos solitários,
e ainda assim – como poderíamos sabe-lo? – feliz!
na forma de um chapim. Deitados ainda na neve,
nenhuma vontade férrea, como trilhos de ferrovia dispostos
a não se encontrar até o céu, mas aqui e ali
fazendo paradas para molhados beijos no campo,
nossas rastros agitam na neve seu longo rabisco.
Tudo o que aqui acontece é realmente pouco mais,
se assim for, do que um rabisco, igualmente. As palavras, em nossas bocas,
estão quase prontas, já, para envolver aquele
a quem os tuim tuim tuim, que significam se como quando
podemos perder um ao outro, riscam riscam riscam
de um momento para o outro. Então eu voltarei
àquela noite silenciosa, em que o passado simplesmente logrou
sobrepor-se ao futuro, ainda que apenas por um triz,
e em que a luz redobra e reluz
na escuridão a cintilação que elevou aos céus a terra.

Trad.: Nelson Santander

That Silent Evening

I will go back to that silent evening
when we lay together and talked in low, silent voices,
while outside slow lumps of soft snow
fell, hushing as they got near the ground,
with a fire in the room, in which centuries
of tree went up in continuous ghost-giving-up,
without a crackle, into morning light.
Not until what hastens went slower did we sleep.
When we got home we turned and looked back
at our tracks twining out of the woods,
where the branches we brushed against let fall
puffs of sparkling snow, quickly, in silence,
like stolen kisses, and where the scritch scritch scritch
among the trees, which is the sound that dies
inside the sparks from the wedge when the sledge
hits it off center telling everything inside
it is fire, jumped to a black branch, puffed up
but without arms and so to our eyes lonesome,
and yet also – how could we know this? – happy!
in shape of chickadee. Lying still in snow,
not iron-willed, like railroad tracks, willing
not to meet until heaven, but here and there
making slubby kissing stops in the field,
our tracks wobble across the snow their long scratch.
Everything that happens here is really little more,
if even that, than a scratch, too. Words, in our mouths,
are almost ready, already, to bandage the one
whom the scritch scritch scritch, meaning if how when
we might lose each other, scratches scratches scratches
from this moment to that. Then I will go back
to that silent evening, when the past just managed
to overlap the future, if only by a trace,
and the light doubles and shines
through the dark the sparkling that heavens the earth.

Barbara Crooker – No meio

de uma vida que é tão complicada quanto a de todo mundo,
batalhando por equilíbrio, equilibrando o tempo.
O relógio de lareira que foi do meu avô
parou às 9:20; não tivemos tempo
de conserta-lo. O pêndulo de bronze está imóvel,
os sinos não soam. Um dia eu olho pela janela,
verde verão, no outro, as folhas já caíram
e um céu cinza baixa no horizonte. Nossos filhos quase crescidos,
nossos pais se foram, aconteceu tão rápido. Diariamente, devemos aprender
novamente como amar, entre o célere café da manhã
e o demorado regresso da noite. Sobe o vapor de uma panela de sopa,
mesclando-se ao cheiro fermentado de pão de forno. Nossos corpos
se enroscam, e o grande cão preto pressiona sua grande cabeça entre eles;
sua cauda, um metrônomo, compasso ternário. Nós nunca chegaremos lá,
o Tempo está sempre à nossa frente, correndo pela praia, impelindo-
nos a ir mais rápido, mais rápido, mas, às vezes, despimo-nos de nossos relógios,
às vezes deitamos na rede, aprisionados entre a malha
de corda e a rede de estrelas, suspensos, enredados
no amor, esgotando o tempo.

Trad.: Nelson Santander

In the Middle

of a life that’s as complicated as everyone else’s,
struggling for balance, juggling time.
The mantle clock that was my grandfather’s
has stopped at 9:20; we haven’t had time
to get it repaired. The brass pendulum is still,
the chimes don’t ring. One day I look out the window,
green summer, the next, the leaves have already fallen,
and a grey sky lowers the horizon. Our children almost grown,
our parents gone, it happened so fast. Each day, we must learn
again how to love, between morning’s quick coffee
and evening’s slow return. Steam from a pot of soup rises,
mixing with the yeasty smell of baking bread. Our bodies
twine, and the big black dog pushes his great head between;
his tail, a metronome, 3/4 time. We’ll never get there,
Time is always ahead of us, running down the beach, urging
us on faster, faster, but sometimes we take off our watches,
sometimes we lie in the hammock, caught between the mesh
of rope and the net of stars, suspended, tangled up
in love, running out of time.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Conheça outros livros de Sophia de Mello Breyner Andresen clicando aqui

Juan Vicente Piqueras – O testemunho do gajeiro

Para falar a verdade, 
pareceu-me outro gesto de presunção,
muito dele,
aquela urgência com que nos pediu
que o amarrássemos ao mastro
para escapar do canto das sereias.

As sereias estavam cantando, isso é verdade,
mas não exatamente para seduzi-lo.

E por que não a qualquer um de nós?
Por que elas deveriam tentar seduzir alguém?
Quem pode garantir que não estavam simplesmente cantando?
Ou que guardavam silêncio e cada um ouvia
seu próprio canto de sereia interior?

Era ele quem lutava contra sua vocação de perdedor.
Era ele quem acreditava que as sereias o amavam.
Era ele quem, sob qualquer pretexto,
nos colocava sob suas ordens.
Era ele quem não sabia mais o que inventar
para atrasar nosso retorno a Ítaca.

Eu queria regressar à minha pátria, abraçar minha esposa,
cuidar dos meus pais, já idosos,
ver meus filhos crescerem.

Ele determinou e nós o amarramos.
Se dependesse de mim, o teríamos abandonado em alto mar,
seguido para Ítaca e ali ele teria ficado,
atado ao mastro, sozinho, novamente à deriva.

E teria morrido assim, atado à sua insensatez,
enquanto as sereias continuavam, continuarão,
cantando para ninguém, como sempre.

Trad.: Nelson Santander

Testimonio del gaviero

Si he de decir la verdad, 
me pareció otro gesto de presunción,
muy suyo,
aquella urgencia con que nos pidió
que lo atásemos al mástil
para escapar al canto de las sirenas.

Las sirenas cantaban, eso es cierto,
pero no precisamente para seducirlo a él.

¿Y por qué no a cualquiera de nosotros?
¿Por qué tendrían que pretender seducir a alguien?
¿Quién puede asegurar que no cantaban simplemente?
¿O que guardaban silencio y cada uno oía
su propio canto de sirenas dentro?

Era él quien luchaba contra su vocación de perdidizo.
Era él quien creía que las sirenas lo amaban.
Era él quien, con cualquier pretexto,
nos ponía a sus órdenes.
Era él quien no sabía qué inventarse
con tal de demorar nuestro regreso a Ítaca.

Yo quería volver a mi patria, abrazar a mi esposa,
cuidar de mis padres ya ancianos,
ver crecer a mis hijos.

Nos lo ordenó y lo atamos.
Si hubiera sido por mí lo habríamos dejado en alta mar,
hubiésemos puesto rumbo a Ítaca y allí se habría quedado,
atado al mástil, solo, de nuevo a la deriva.

Y habría muerto así, atado a su extravío,
mientras que las sirenas seguían, seguirán,
cantando para nadie, como siempre.

Nelson Santander – O dia em que meu pai ouviu a voz de Deus

O conhecido escritor de ficção científica Arthur C. Clarke formulou três “leis” acerca da relação entre o homem e a tecnologia que ficaram muito famosas. Dentre elas, a mais conhecida é a terceira, que reza:

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”

Lembrei dessa Lei quando, em um certo domingo, fui visitar meus pais. Antes mesmo que eu tivesse tempo de tomar um café, meu pai disparou, com um olhar esquisito:

“Eu sei que você não acredita em sobrenatural, mas aconteceu uma coisa estranha comigo”.

Normalmente, quando alguém que conhece meu ceticismo tenta me convencer de algo sobrenatural, costuma me lançar um olhar que é um misto de temor e desafio. Mas não era esse o olhar do meu pai. Para mim a princípio me pareceu o olhar de quem, em face do desconhecido, quer ser convencido de que nada de extraordinário aconteceu, e que o mundo pode seguir seu curso regular novamente.

Ele então me contou que na semana anterior havia ligado a TV e que, inusitadamente, o aparelho não sintonizou no “Brasil Urgente” (seu programa favorito de todas as tardes). De forma surpreendente, a tela ficou escura e então os auto-falantes da TV começaram a reproduzir uma música, segundo ele, “maravilhosa”. Meu pai ficou paralisado, confuso. Ele tentou voltar para o Datena, mas não conseguiu. Vencido pela beleza da orquestração, sentou-se no sofá e pôs-se a ouvir o que saía da TV. Depois daquela música, outra se seguiu. E outra. E outra. Todas completamente desconhecidas pra ele, mas absurdamente lindas (ele não usou precisamente essas palavras, mas era isso que seus olhos diziam).

E assim se passaram mais de três horas em que meu pai, embora meio assustado por estar testemunhando um evento estranho, não conseguia deixar de apreciar o momento. Depois que o som cessou, ele tentou que a TV tocasse novamente aquelas canções, mas tudo o que conseguiu foi dar de cara com o Datena narrando a história de mais um esquartejamento. Para sua decepção, meu pai não mais conseguiu fazer a TV falar com ele com aquelas melodias.

Quando concluiu sua narrativa, ele me perguntou, genuinamente curioso, mas ainda um tanto quanto espantado: “E aí?”, o olhar desafiador finalmente surgindo.

À essa altura, eu já estava com um meio-sorriso no rosto. Chamei-o à sala, fui até a TV, liguei o aparelho, fiz a minha “magia” e de repente, o adágio do Concerto para Clarineta em A maior, K.622, de Mozart, inundava a sala, sob o olhar atento e extasiado do meu pai. Na sequência, veio a famosa Ária na corda sol, de Bach, seguida do Adágio em Sol Menor, de Albinoni. Só então ele se lembrou de me perguntar como eu tinha conseguido fazer aquilo.

Desliguei a TV, estiquei a mão e, tateando na parte de trás do aparelho, retirei o pendrive que eu havia colocado lá na última visita que fizera à casa dele, um mês antes. Na ocasião, eu havia tentado de toda forma ensinar meu pai a acessar o pendrive pelo controle remoto para que pudesse ouvir uma playlist de músicas clássicas em MP3 que eu havia criado especialmente pra ele. Sem sucesso. Meu pai sempre foi uma nulidade com equipamentos eletrônicos, mal e mal sabendo ligar a TV e colocar nos canais que ele gosta de assistir. Desisti de explicar e acabei esquecendo o pendrive lá. De alguma maneira, ao tentar sintonizar em seu programa na TV, ele apertou algum botão errado no controle e acessou a pasta com a playlist que eu havia criado. Como não conhecia aquelas músicas e como a TV não estava ligada em nenhum canal, ele ficou tentando imaginar o que acontecera, e não chegou a nenhuma conclusão lógica. Portanto, concluiu, só podia ser algo sobrenatural.

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”

Depois que mostrei que não havia nada de extraordinário no que acontecera com ele, a reação do meu pai foi muito interessante. Claramente, ele ficou um pouco envergonhado por ter pensado que havia testemunhado um milagre quando tudo não passara de um feito tecnológico. De entremeio com a vergonha, percebi também uma genuína frustração. Não sei se traduzo adequadamente, mas minha intuição é a de que ele talvez tenha imaginado que algo, ou “A Voz”, o havia escolhido para lhe mostrar a Sua obra: músicas divinas que ninguém jamais ouvira, a não ser o meu pai.

Mas o mais interessante foi que, depois de ter descoberto que não eram divinas, mas humanas as canções que o haviam arrebatado, seu interesse por elas claramente diminuiu:

– São bonitas sim, Nelsinho. Mas você sabe, eu gosto é de música orquestrada, Glenn Miller, Billy Vaughn. E Ray Conniff. Conhece? “Besame Mucho” é que é música!

Não sei se existe alguma lição a se tirar do episódio. Meu olhar cético para as coisas tende a achar graça na necessidade que as pessoas têm de encontrar o divino em qualquer fenômeno natural ou humano desconhecido ou inusitado com o qual se deparam. Meu velho pai achava que estava ouvindo a voz de Deus, quando na verdade eram os humanos Mozart, Beethoven, Chopin e etc. quem lhe falavam por meio de suas árias, adágios e andantes.

Mas minha visão seria totalmente limitada se eu negasse que uma outra leitura desse tipo de evento é também possível: não seriam essas canções uma forma que o Incognoscível encontrou para falar com os seres humanos? E, nesse contexto, não seriam os compositores e músicos apenas como aparelhos de TV nos quais Ele espetou Seu pendrive divino para emitir o Seu som e a Sua voz?

(relato retirado da página de perfil do autor no Facebook)

Gastão Cruz – Pedro Hestnes

Passou a alguns metros de onde eu
estava; não o via
há anos e nem sei
qual a última vez que com ele falara

Não o reconheci de imediato e bastou
essa dúvida para criar um hiato
na linha dos olhares de repente cruzados
dentro da tarde; receara

decerto não ter sido por mim reconhecido
enquanto que eu não fora já a tempo
de lhe mostrar que o vira e me lembrava
do seu rosto mesmo que um pouco menos

luminoso que outrora; e um remorso
absurdo me tomou por ter perdido
esse olhar hesitante
no desconcerto breve de uma tarde